REVISÃO DE LITERATURA

 

Sentidos e Percepções das Mulheres acerca das Práticas Preventivas do Câncer do Colo do Útero: Revisão Integrativa da Literatura

Women's Feelings and Perceptions about Cervical Cancer Preventive Practices: Integrative Literature Review

Sentidos y Percepciones de las Mujeres sobre las Prácticas Preventivas del Cáncer del Cuello Uterino: Revisión Integradora de la Literatura

 

doi: https://doi.org/10.32635/2176-9745.RBC.2022v68n2.1632

 

Jeferson Nascimento dos Santos1; Rosilene Souza Gomes2

 

1,2Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA). Hospital do Câncer II. Seção de Psicologia. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mails: jefersonmcr@gmail.com; rosilenegomespsi@gmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-8183-2962; Orcid iD: https://orcid.org/0000-0003-0733-9544

 

Endereço para correspondência: Jeferson Nascimento dos Santos. INCA II. Via Binário do Porto, 831, Santo Cristo ‒ Rio de Janeiro (RJ), Brasil. CEP 20081-250. E-mail: jefersonmcr@gmail.com

 

 

RESUMO

Introdução: O exame do Papanicolaou, caso seja realizado periodicamente, permite identificar alterações celulares que podem evoluir para o câncer. A baixa adesão ao preventivo é uma das causas que transforma o câncer do colo do útero na quarta causa mais frequente de morte de mulheres por câncer no Brasil. As percepções que elas têm sobre preventivo são variadas e podem ter relação direta com a adesão ao exame. Objetivo: Identificar estudos sobre sentidos e percepções das mulheres acerca do exame preventivo do câncer do colo do útero. Método: Revisão integrativa da literatura nas bases de dados do MEDLINE e LILACS, sem delimitação de tempo. Resultados: Os estudos mostraram que as mulheres, em sua maioria, desconhecem o objetivo principal do preventivo, referem medo em relação a um possível diagnóstico de câncer e ao desconforto físico decorrente do exame, além de apresentarem sentimentos como vergonha em expor o próprio corpo, associando à sexualidade. Barreiras institucionais, sociais e a falta de acolhimento por parte do profissional comprometem a adesão da mulher ao exame. Conclusão: As mulheres atribuem sentimentos considerados negativos como vergonha e medo do preventivo, bem como desconhecimento da importância e do objetivo principal do exame, contribuindo para a baixa adesão ao rastreamento. Portanto, torna-se necessário que os profissionais saibam quais são as dúvidas e os receios das mulheres, considerando seus aspectos socioculturais e econômicos, para potencializar o vínculo terapêutico e possibilitar melhor compreensão do significado e da importância do exame.

Palavras-chave: percepção; neoplasias do colo do útero; teste de Papanicolaou.

 

 

ABSTRACT

Introduction: The Pap smear, if performed periodically, allows the identification of cellular changes that can progress to cancer. Low adherence to preventive care is one of the causes that makes cervical cancer the fourth most frequent cause of death in women by cancer in Brazil. They have multiple perceptions about the preventive exam and may be directly related to the adherence to the exam. Objective: To identify studies about women's feelings and perceptions about cervical cancer preventive exam. Method: Integrative literature review in MEDLINE and LILACS databases, without time limit. Results: The studies showed that most women are unaware of the main purpose of the preventive exam, they report fear in relation to a possible diagnosis of cancer and the physical discomfort from the exam, in addition to feelings such as embarrassment in exposing their own body, associating with sexuality. Institutional and social barriers and unacceptance by the professional compromise women's adherence to the exam. Conclusion: Women attribute negative feelings as embarrassment and fear of the preventive, and ignorance of the importance and main objective of the test, contributing to the low adherence to screening. Therefore, it is necessary for professionals to know women’s fears and doubts, considering their sociocultural and economic aspects, to enhance the therapeutic bond and favor a better understanding of the meaning and importance of the exam.

Key words: perception; uterine cervical neoplasms; Papanicolaou test.

 

 

RESUMEN

Introducción: La prueba de Papanicolaou, si se realiza periódicamente, permite la identificación de cambios celulares que pueden progresar a cáncer. La baja adherencia a los cuidados preventivos es una de las causas que convierte al cáncer de cuello uterino en la cuarta causa más frecuente de muerte en mujeres por cáncer en Brasil. Las percepciones que le dan al preventivo son variadas y pueden estar directamente relacionadas con la adherencia al examen. Objetivo: Identificar estudios sobre los sentidos y las percepciones de las mujeres sobre el examen preventivo del cáncer de cuello uterino. Método: Revisión integrativa de la literatura en las bases de datos MEDLINE y LILACS, sin límite de tiempo. Resultados: Los estudios mostraron que la mayoría de las mujeres desconocen el propósito principal del preventivo, reportan miedo en relación a un posible diagnóstico de cáncer y el malestar físico derivado del examen, además de presentar sentimientos como vergüenza al exponer los propios. cuerpo, asociándose con la sexualidad. Las barreras institucionales y sociales y la falta de aceptación por parte del profesional comprometen la adherencia de las mujeres al examen. Conclusión: Las mujeres atribuyen sentimientos negativos como la vergüenza y el miedo al preventivo, así como el desconocimiento de la importancia y objetivo principal de la prueba, contribuyendo a la baja adherencia al cribado. Por tanto, es necesario que los profesionales aprendan a recoger las dudas y miedos de las mujeres, considerando sus aspectos socioculturales y económicos, para potenciar el vínculo terapéutico y así posibilitar una mejor comprensión del significado e importancia del examen.

Palabras clave: percepción; neoplasias del cuello uterino; prueba de Papanicolaou.

 

 

INTRODUÇÃO

O câncer do colo do útero é um importante problema de saúde que atinge mulheres em todo o mundo. Entretanto, os países em desenvolvimento são responsáveis por 80% desses casos, e o Brasil representa uma taxa expressiva dessa estatística1. O número de casos novos de câncer do colo do útero esperado para o país, para cada ano do triênio 2020-2022, será de 16.710, com um risco estimado de 16,35 casos a cada 100 mil mulheres2.

 

Em 2019, no Brasil, ocorreram 6.596 óbitos por câncer do colo do útero, representando uma taxa de mortalidade de 6,10/100 mil mulheres, sendo o terceiro tipo de câncer mais incidente na população feminina brasileira, excetuando-se os casos de câncer de pele não melanoma3. As taxas nacionais de incidência estimada e mortalidade apresentam valores intermediários em relação aos países em desenvolvimento, porém são elevadas quando comparadas às de países desenvolvidos, com programas de detecção precoce bem estruturados. Segundo as estimativas do Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA)2, o câncer do colo do útero é o primeiro mais incidente na Região Norte (26,24/100 mil), sendo o segundo nas Regiões Nordeste (16,10/100 mil) e Centro-Oeste (12,35/100 mil). Já na Região Sul (15,38/100 mil), ocupa a quarta posição e, na Região Sudeste (8,61/100 mil), a quinta posição.

 

A ocorrência do câncer do colo do útero está intrinsecamente associada à infecção persistente pelo papilomavírus humano (HPV), além de outros fatores, como infecções sexualmente transmissíveis (IST), uso prolongado de anticoncepcionais e tabagismo4. O câncer do colo do útero apresenta um longo período de evolução, com lesões precursoras que podem ser detectadas em fase inicial, gerando alta curabilidade. Entretanto, para que isso ocorra, é necessária a realização do exame preventivo regular e de qualidade5. Quando não ocorre a detecção precoce, as lesões que, antes teriam um alto índice de cura, desenvolvem-se para o câncer, podendo comprometer outros órgãos e mudar o percurso de tratamento6.

 

O rastreamento é o processo de identificação de pessoas aparentemente saudáveis que podem estar sob risco de serem acometidas por doenças, como o câncer do colo do útero. O método de rastreamento do câncer do colo do útero e de suas lesões precursoras é o exame citopatológico, sendo realizado na unidade básica, pelos profissionais de saúde, que devem conhecer o método, a periodicidade e a população-alvo, devendo orientar e encaminhar para confirmação do diagnóstico e tratamento, de acordo com os resultados dos exames, garantindo seu seguimento7.

 

O exame citopatológico, conhecido popularmente como preventivo, possibilita o reconhecimento das lesões precursoras (lesões escamosas de alto grau e adenocarcinoma in situ), que podem ser detectadas e tratadas, impedindo a progressão para o câncer8. Segundo o INCA7, toda mulher entre 25 e 64 anos e que já iniciou vida sexual deve submeter-se ao exame preventivo periódico. Após dois exames seguidos (com um intervalo de um ano), apresentando resultado sem alterações, o preventivo pode ser realizado a cada três anos, segundo a normativa. O exame tem sido oferecido nas consultas de planejamento familiar, pré-natal e ginecológica, nos serviços de saúde, especialmente na Estratégia Saúde de Família (ESF)9.

 

As práticas de prevenção do câncer do colo do útero (PCCU) consistem na adesão ao exame Papanicolaou e na vacinação contra o HPV. A vacina deve ser aplicada em meninas de 9 a 14 anos e meninos de 11 a 14 anos. A baixa adesão à vacinação e ao exame representam um desafio à saúde pública e contribuem negativamente para a redução dos indicadores de sobrevida associados a esse tipo de câncer. Um estudo com 230 mulheres adultas, com faixa etária de 25 a 59 anos, demonstrou menor adesão ao Papanicolaou entre mulheres que nunca frequentaram escola, com quatro ou mais filhos, história de quatro ou mais partos, que não usavam método contraceptivo e tinham conhecimento insuficiente sobre o exame10.

 

A dificuldade das mulheres em realizar o exame ou a ausência destas no serviço podem estar associadas ao modo como as usuárias percebem o exame preventivo11. Alguns fatores como baixos níveis de escolaridade, baixa renda familiar, uso de contraceptivo oral, ausência de problemas ginecológicos, sentimentos como vergonha ou medo em relação ao exame, dificuldade de acesso à assistência médica e falta de informação sobre a importância do exame podem estar associados à baixa adesão à realização do exame preventivo12,13.

 

O câncer do colo do útero é uma doença que atinge um órgão com uma representação simbólica significativa, pois envolve questões inerentes à sexualidade, à feminilidade e à reprodução. A exposição e manipulação dessa parte do corpo pelo profissional de saúde durante o exame pode ensejar sentimentos de constrangimento e vergonha, pela associação das partes íntimas com a sexualidade14,15.

 

Identificar como as mulheres percebem o Papanicolaou e os sentidos que atribuem ao exame, a partir das próprias experiências, pode contribuir para a compreensão de suas dificuldades em realizar o preventivo. Diante do exposto, o estudo teve como objetivo identificar, por meio de uma revisão integrativa, os sentidos e as percepções das mulheres acerca do exame preventivo do câncer do colo do útero.

 

 

MÉTODO

A revisão integrativa é um método que promove a síntese de conhecimento e a incorporação da aplicabilidade de resultados de estudos significativos na prática, permitindo incluir estudos experimentais e não experimentais para uma compreensão do fenômeno analisado16.

 

As etapas da revisão integrativa no estudo foram utilizadas segundo Souza et al.16.

 

A primeira fase consistiu na elaboração da pergunta norteadora: “quais são as percepções e os sentidos atribuídos pelas mulheres ao exame preventivo do câncer do colo do útero?”.

 

Na segunda fase, foi realizada a busca em base de dados, sendo utilizadas, no presente trabalho, as bases MEDLINE, via Portal de pesquisa da BVS e LILACS, sem delimitação de tempo, com os operadores booleanos AND e OR e com os seguintes descritores: “câncer cervical”, “percepção”, “sexualidade” e “exame Papanicolaou”. Decidiu-se utilizar o descritor “sexualidade” a fim de verificar se as questões relativas à sexualidade aparecem nas pesquisas que discutem os sentidos dos exames para as mulheres. Os critérios de inclusão foram estudos que versavam sobre as percepções e os sentidos atribuídos pelas mulheres acerca do exame preventivo para o câncer do colo do útero (Papanicolaou); e os critérios de exclusão foram estudos com mulheres diagnosticadas com câncer do colo do útero e que não foram realizados com mulheres brasileiras. As buscas foram executadas com os descritores em português, inglês e espanhol, no período de abril de 2020 a janeiro de 2021.

 

Na terceira fase, assegurou-se que a totalidade dos dados relevantes fosse extraída, garantindo precisão na checagem das informações, a fim de controlar e excluir qualquer forma de viés que pudesse ocorrer.

 

Na quarta fase, realizou-se a análise crítica dos estudos incluídos de modo organizado para ponderar o rigor e as características de cada estudo.

 

A quinta fase consistiu na discussão dos resultados a partir da interpretação e síntese dos resultados.

 

Por último, na sexta fase, a apresentação da revisão integrativa deve ser clara e completa para permitir ao leitor avaliar criticamente os resultados.

 

 

RESULTADOS

Identificaram-se 131 artigos ao total, sendo excluídos 95 de acordo com os critérios de exclusão, totalizando 36 estudos. Em seguida, foram excluídos 25 artigos após a leitura na íntegra, ainda de acordo com os critérios. Por fim, ao final da busca, foram identificados 11 estudos para serem analisados, como consta no Fluxograma 1.

 

Figura 1. Fluxograma de seleção dos artigos da revisão integrativa literatura

 

Verificou-se que todos os artigos apresentaram como método de pesquisa a abordagem qualitativa (n=11). A maioria dos estudos (n=9) informou que as percepções das mulheres em relação ao preventivo do câncer do colo do útero geram sentimentos como ansiedade e medo diante da possibilidade de desenvolver a doença. Nesses estudos, muitas mulheres relataram que não recebiam informação sobre como seria o exame no momento da própria consulta, o que provocava mais ansiedade e medo de sentir dor. Outro aspecto identificado nos estudos (n=8) foi a associação do exame preventivo às questões sexuais, relacionadas à exposição e à falta de conhecimento do próprio corpo, gerando sentimentos como vergonha e constrangimento por parte das mulheres. A seguir, no Quadro 1, constam os artigos identificados na revisão.

 



 

Quadro 1. Artigos analisados na revisão integrativa

Autores/ano

Método

Objetivos

Principais achados

Acosta et al., 2017

Estudo descritivo de abordagem qualitativa

Analisar a percepção de usuárias de uma unidade de Estratégia Saúde da Família sobre o exame preventivo do câncer do colo uterino

Desconhecimento acerca da finalidade do preventivo. Vergonha em expor o corpo, medo de sentir dor durante a coleta do exame. Realizam o preventivo a partir de sinais e sintomas ginecológicos. Dificuldades na realização do preventivo pelas barreiras institucionais

Souza et al., 2015

Pesquisa-ação com abordagem qualitativa

Avaliar a percepção de mulheres sobre o câncer do colo do útero, por meio da prática de educação popular como instrumento participativo

Barreiras sociais e institucionais. Vergonha e medo ao mostrar o corpo e sentir desconforto, como dor. Desconhecem a importância e a necessidade da realização do exame

Rico e Iriart, 2013

Estudo qualitativo, conteúdo de entrevista semiestruturada

Compreender os significados das práticas preventivas do câncer do colo do útero entre mulheres de bairros populares de Salvador, Bahia, Brasil

Associação do preventivo à feminilidade, responsabilidade e a maturidade. Valores morais e afetivos atravessados pela sexualidade. A prática em realizar o exame mostra maturidade e responsabilidade pessoal pelo próprio cuidado

Duavy et al., 2007

Estudo de caso tendo a observação e a entrevista semiestruturada como técnicas de coleta das informações

Descrever a percepção das mulheres ante o exame de prevenção de câncer cervicouterino

Busca do preventivo a partir de sintomas. Vergonha pela exposição do corpo, medo de dor, desconhecimento pelo procedimento do exame

Ferreira e Oliveira, 2006

Pesquisa com questionários abertos e fechados

Verificar o conhecimento sobre o exame preventivo do câncer cervicouterino e compreender os sentimentos e significados atribuídos pelas mulheres ao serem submetidas

Alívio e segurança após realizar o preventivo (medo da morte). Vergonha em expor o corpo, medo do diagnóstico de câncer e de sentir dores físicas. Pouca informação sobre a importância do exame. Fazer o preventivo é ser mãe e sentir-se útil no trabalho. A assimilação da prática do Papanicolaou passa pela assimilação dos benefícios de sua eficácia e importância

Barbosa e Lima, 2016

Estudo descritivo exploratório de abordagem qualitativa

Avaliar a compreensão das mulheres, na faixa etária de 25 a 59 anos, sobre o câncer do colo do útero e suas formas de prevenção

Pouca informação sobre o preventivo e os fatores de risco. Medo e ansiedade em relação ao diagnóstico. Vergonha pela exposição do corpo. Falta de acolhimento pelo profissional de saúde. Apropriação do corpo da mulher pela medicina. Barreiras do serviço

Santos et al., 2015

Estudo observacional, de coorte transversal e descritivo

Analisar o conhecimento das mulheres em relação à prevenção do câncer do colo do útero e os fatores dificultadores acerca da realização da prática do exame preventivo

Pouca informação sobre a finalidade sobre o preventivo do câncer do útero. Vergonha do procedimento e o corpo à mostra atrelado à sexualidade. Busca do preventivo a partir dos sintomas e sinais ginecológicos

Thum et al., 2008

Entrevista qualitativa

Investigar o conhecimento das mulheres sobre prevenção do câncer do colo uterino

Sentimento de vergonha relacionado com a impessoalidade do procedimento que envolve a exposição do corpo e a sexualidade. Nervosismo e medo em relação ao exame e ao resultado. O preventivo é visto como imperativo a cuidar de si (obrigatório pela mídia). Pouca informação sobre o exame preventivo

Dias et al., 2015

Estudo descritivo com abordagem qualitativa

Avaliar o conhecimento em relação à prevenção do câncer do colo do útero entre mulheres de uma Unidade Básica de Saúde do estado de Minas Gerais

Desconforto e sentimento de vergonha relacionados à impessoalidade da exposição do corpo e à sexualidade, principalmente ao sexo masculino. Consideram o exame muito importante, mas não há conhecimento acerca do seu significado

Paula et al., 2019

Estudo qualitativo a partir de entrevista semiestruturada

Apreender os saberes de mulheres sobre a prevenção do câncer do colo uterino por meio do exame de Papanicolaou

Vulnerabilidade no exame e presença de sentimentos como dor, medo, desconforto e vergonha do corpo diante do exame e pela impessoalidade (importância do vínculo) e falta de conhecimento sobre o preventivo

Campos, 2018

Pesquisa qualitativa, com abordagem etnográfica

Compreender os sentidos do Papanicolaou para um grupo de mulheres que realizou a prevenção do câncer cervical

O Papanicolaou carrega significados físicos e morais, tornando-se visível no corpo feminino e reforçando as relações entrelaçadas pelos aspectos de gênero e o contexto sociocultural. Presença de acolhimento pelo profissional de saúde

 

 



DISCUSSÃO

Os resultados obtidos nos estudos avaliados permitiram constatar que os sentidos e as percepções que as mulheres atribuem às práticas preventivas do câncer do colo do útero são múltiplos e estão correlacionados. O estudo de Rico e Iriart17 elucida que o preventivo, para algumas mulheres, está associado às ideias de autocuidado e feminilidade, mas, para outras, gera uma sensação de obrigatoriedade e sentimento de culpa, caso não realizem o exame periodicamente e sejam diagnosticadas com câncer. O rastreamento pode representar a possibilidade de as mulheres controlarem seus corpos, entretanto, as ideias difundidas sobre a prevenção e responsabilidade individual da mulher podem evidenciar o peso pelo cuidado à saúde18. O discurso sobre o exame concede uma marca moral, que associa a sua realização com a normalidade e um dever da mulher, reprovando as que não cumprem com a ideia de uma obrigação feminina18,19.

 

Percebe-se, também, que muitas mulheres associam a doença como algo impuro, sujo, proveniente de condutas moralmente erradas atreladas ao sexo, e sentimentos de vergonha, a depender do órgão acometido pelo câncer. A oposição entre limpo e impuro assume um valor moral capaz de qualificar a experiência que a mulher vive em relação à sexualidade20. Por isso, é comum referir-se à doença como “sujeira”, algo ruim, visto que está associado à sexualidade por mitos, preconceitos e fantasias21.

 

Em quatro estudos identificados na pesquisa, as mulheres relataram sentimentos de vergonha e constrangimento pela exposição do corpo, pois muitas descrevem o exame como algo íntimo, associado à sexualidade9,22-24. Os estudos ainda discorrem sobre os sentimentos de insegurança, vergonha e medo, vividos de modo singular por cada uma das mulheres entrevistadas em relação ao exame24.

 

Expor o próprio corpo e tê-lo manipulado e examinado por um profissional gera, além de sentimentos de vergonha, a possibilidade de sensação de impotência, desproteção e falta de domínio do próprio corpo, pois trata-se de o profissional de saúde manusear órgãos e zonas erógenas geralmente associadas à sexualidade9. Experiências restritivas no âmbito da sexualidade, falta de informação acerca do próprio corpo e experiências de violência também podem estar associadas à temática25.

 

Nesse sentido, discutir sobre como a mulher percebe o preventivo é lidar com um tema amplo e complexo, que considera como cada mulher vivencia o assunto, construído por mitos, preconceitos e fantasias envolvendo a sexualidade e sentimento de impotência, desproteção e perda do domínio sobre o próprio corpo que a posição ginecológica pode provocar26. Os estudos demonstram que, embora algumas mulheres reconheçam a importância e a necessidade do exame, considera-se que os sentimentos de vergonha e medo podem ser ocasionados também pelos instrumentos usados no preventivo, pelo toque ginecológico, pela introdução do espéculo e pela utilização do foco luminoso em suas partes íntimas26,27.

 

A ausência de acolhimento por parte do profissional de saúde pode contribuir para o aumento dos sentimentos de vergonha e medo durante o preventivo e influenciar diretamente no modo como as mulheres percebem o exame. Os estudos de Barbosa e Lima28, e Campos29 identificaram que a falta de acolhimento por parte dos profissionais de saúde pode ser um fator contribuinte para gerar sentimentos desconfortáveis e distanciar a mulher da realização do preventivo.

 

A falta de diálogo entre profissional e paciente durante o exame pode ser decorrente de um tipo de formação profissional que não valoriza a relação pessoal, mas apenas o modelo biomédico tradicional, o qual restringe a qualidade do diálogo e não considera outros aspectos essenciais na relação médico-paciente, como a escuta ativa, a valorização da singularidade de cada mulher e o vínculo terapêutico30. Essas posturas biomédicas podem contribuir para baixa adesão das mulheres na realização do preventivo em virtude das experiências de desconforto e sofrimento. O modo como o profissional acolhe e se direciona ao paciente no momento do exame pode propiciar conforto e tranquilidade, contribuindo, assim, para amenizar os sentimentos de vergonha decorrentes da exposição do corpo durante a realização do preventivo28,31.

 

O preventivo também foi associado a um momento de desconforto físico para as mulheres. Parte dos profissionais não explicava como seria realizado, aumentando as dúvidas e os medos em relação ao exame6,9,17,28,32. O estudo de Amorim27 relata que as mulheres sentem desconforto físico provocado pelo modo como o profissional realizava o toque vaginal. Portanto, entre os fatores que podem contribuir para a adesão e compreensão acerca da importância da realização do exame preventivo, está possibilitar conforto e orientação à mulher, considerando o encontro como único para cada uma26,28,30,31.

 

O desconhecimento das mulheres sobre a doença e sua relação com o HPV pode reforçar que, quanto menos se conhece sobre este vírus, menos se tem a capacidade de prevenir contra o câncer do colo do útero e compreender a importância da realização do exame preventivo. Outra temática identificada nos estudos analisados foi que a maioria das mulheres participantes desconhecia a finalidade principal do exame ou tinha pouca informação sobre a importância da realização regular do preventivo10,22-24,26,28,31-33.

 

No estudo de Iglesias et al.11, realizado com 99 mulheres, ficou evidente um nível de conhecimento melhor sobre o exame de Papanicolaou das residentes de bairros com melhores condições socioeconômicas e das mulheres mais jovens. Entretanto, evidenciou-se que, também nesse grupo, muitas mulheres fazem o exame sem saber o devido objetivo do procedimento. Percebe-se que a falta de informação acerca da finalidade e da importância do exame pode estar relacionada a uma maior vulnerabilidade social, considerando aspectos advindos do baixo nível socioeconômico, aspectos culturais e geográficos na acessibilidade aos serviços de saúde.

 

Já os estudos de Duavy et al.9, Santos et al.22 e Acosta et al.32 constataram a realização do exame apenas a partir do surgimento de sinais e sintomas ginecológicos, portanto, apenas quando se manifestava alguma alteração como sangramentos, corrimentos e dores físicas. Esse fato pode contribuir para as mulheres associarem a realização do preventivo à identificação de doenças e à sua cura, ou seja, o exame se torna uma ação diagnóstica e não preventiva17,34,35. Quando a mulher não sabe sobre os sintomas da doença ou não compreende a importância do exame, a não adesão ao preventivo fica mais evidente36,37, o que pode resultar em significativo aumento da incidência e mortalidade de mulheres com câncer do colo do útero diagnosticadas tardiamente.

 

A falta de acesso aos serviços de saúde também foi relatada como motivo de dificuldade na realização do preventivo, provocando o distanciamento das mulheres a esse serviço17,28,32,33. As barreiras de acessibilidade podem gerar descontentamento e indignação pela demora no atendimento ou agendamento do exame, desestimulando as mulheres a procurarem os serviços de saúde e influenciando as próprias ações em relação à prática regular do preventivo9,17,35.

 

O acesso aos serviços de saúde tem sido considerado fundamental para as práticas preventivas ao câncer do colo do útero, tendo o aspecto sócio-organizacional em relação à acessibilidade e à organização do serviço como facilitadores ou obstáculos nos esforços das mulheres em obter o próprio cuidado38. Portanto, é necessária a adaptação do serviço às necessidades da população, garantindo a sua acessibilidade e contribuindo para uma maior compreensão acerca do exame preventivo.

 

Em suma, os sentidos, as percepções e as ideias das mulheres acerca do exame preventivo do câncer do colo do útero são constituídos por questões morais, afetivas e socioculturais, mas também sofrem influência das adversidades na acessibilidade aos serviços de saúde, podendo ter impacto direto na baixa adesão ao exame.

 

 

CONCLUSÃO

Ao longo do estudo, foi possível identificar que as percepções das mulheres acerca das práticas preventivas do câncer do colo do útero estão correlacionadas a um conjunto de fatores, como a falta e a dificuldade de acesso aos serviços de saúde, a falta de acolhimento do profissional e o desconhecimento da importância e do objetivo principal do exame.

 

Sentimentos considerados negativos, como o medo de ser diagnosticada com câncer e a vergonha em expor o próprio corpo, associados a questões de sexualidade, contribuem para que a mulher tenha atitudes de distanciamento ao exame do preventivo. Esse sentimento pode estar relacionado à falta de informação e ao fato de que muitas mulheres buscam realizar o exame a partir dos sinais e sintomas, quando provavelmente a doença está avançada.

 

Durante o exame, é necessário que o profissional possibilite que a mulher expresse seus receios e suas dúvidas acerca do preventivo por meio de uma postura ética e acolhedora e sem juízo de valores. Considerar a singularidade de cada mulher que realiza o exame preventivo é fundamental para potencializar os encontros e a compreensão do que cada mulher sente e pensa sobre o exame.

 

Portanto, é necessário (re)pensar e discutir sobre as práticas do exame preventivo e como essas ações têm relação com a forma como as mulheres percebem o exame, geralmente marcada por valores morais, socioculturais, econômicos, barreiras no acesso aos serviços de saúde e pela falta de acolhimento que o profissional realiza o preventivo.

 

 

CONTRIBUIÇÕES

Jeferson Nascimento dos Santos contribuiu substancialmente na concepção e/ou no planejamento do estudo; na obtenção, análise e interpretação dos dados; assim como na redação e revisão crítica com contribuição intelectual. Rosilene Souza Gomes contribuiu na redação e revisão crítica com contribuição intelectual. Ambos os autores aprovaram a versão final publicada.

 

DECLARAÇÃO DE CONFLITO DE INTERESSES

Nada a declarar.

 

FONTES DE FINANCIAMENTO

Não há.

 

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em 25/3/2021

Aprovado em 4/8/2021

 

Editor-associado: Fernando Lopes Tavares de Lima. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-8618-7608

Editora-científica: Anke Bergmann. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1972-8777

 

 

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