ARTIGO ORIGINAL

 

Qualidade de Vida e Saúde Bucal em Crianças submetidas à Terapia Antineoplásica

Quality of Life and Oral Health in Children undergoing Antineoplastic Therapy

Calidad de Vida y salud Oral de los Niños sometidos a Terapia Antineoplásica

 

doi: https://doi.org/10.32635/2176-9745.RBC.2022v68n2.2164

 

Alana Kelly Maia Macêdo Nobre de Lima1; Alana Cândido Paulo2; Danilo Antonio Duarte3

 

1Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Cajazeiras (PB), Brasil. E-mail: alana.nobre@hotmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0003-3246-0610

2Universidade de São Paulo (USP). Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto (FORP). Ribeirão Preto (SP), Brasil. E-mail: alanacandido@usp.br. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-7119-4039

3Faculdade São Leopoldo Mandic (SLMANDIC). Campinas (SP), Brasil. E-mail: daniloantduarte@gmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-2291-5434

 

Endereço para correspondência: Alana Kelly Maia Macêdo Nobre de Lima. Avenida Padre Cícero, 3921, apt. 302 – São José. Juazeiro do Norte (CE), Brasil. CEP 63040-140. E-mail: alana.nobre@hotmail.com

 

 

RESUMO

Introdução: O câncer é uma doença grave cujo protocolo de tratamento pode produzir severos efeitos colaterais de ordem psicossocial e física. Os principais efeitos do tratamento antineoplásico podem acometer a cavidade oral, especialmente em crianças, comprometendo a sua qualidade de vida e a do núcleo familiar. Objetivo: Identificar e descrever as lesões bucais relacionadas aos efeitos colaterais produzidos pelo tratamento antineoplásico e avaliar seu impacto sobre a qualidade de vida da criança e da sua família. Método: Estudo qualitativo e transversal, com a participação de 117 crianças pré-escolares atendidas em hospital de referência (Paraíba), por meio do questionário B-ECOHIS, de exames clínicos odontológicos e de prontuários médicos. O tratamento estatístico fundamentou-se na análise descritiva e regressão de Poisson com variância robusta no método Stepwise (p<0,05). Resultados: As manifestações mais observadas foram mucosite e xerostomia (66,7% e 54,7%, respectivamente). Relativo ao impacto na qualidade de vida da criança, o domínio de maior média foi limitação funcional 3,0 (±1,8) e, na família, função familiar 1,0 (±1,0). Conclusão: O impacto na qualidade de vida das crianças se revelou fraco e, no núcleo familiar, não foi significativo.

Palavras-chave: neoplasias; antineoplásicos/efeitos adversos; manifestações bucais; qualidade de vida; criança.

 

 

ABSTRACT

Introduction: Cancer is a burdensome disease whose treatment protocol can produce severe psychosocial and physical side effects. The main effects of antineoplastic treatment may affect the oral cavity, especially in children, compromising theirs and their family quality-of-life. Objective: To identify and describe side effects-related antineoplastic treatment and to assess its impact on the children’s and their families’ quality-of-life. Method: Qualitative and cross-sectional study, with the participation of 117 children, preschoolers, consulted at a referral hospital in the State of Paraíba, through the B-Ecohis questionnaire, dental clinical exams and medical records. The statistical treatment was based on descriptive analysis and Poisson Regression with robust variance in the Stepwise method (p<0.05). Results: The most common manifestations were mucositis and xerostomia (66.7% and 54.7% respectively). The impact on the children's quality-of-life affected mostly the domain of functional limitation with mean of 3.0 (±1.8) and 1.0 (±1.0) for the family function in the family. Conclusion: The impact on the quality-of life in children was weak and not significant in the family.

Key words: neoplasms; antineoplastic agents/adverse effects; oral manifestations; quality of life; child.

 

 

RESUMEN

Introducción: El cáncer es una enfermedad grave cuyo protocolo de tratamiento puede producir efectos secundarios psicosociales y físicos graves. Entre los principales efectos del tratamiento antineoplásico, algunos afectan la cavidad bucal, especialmente en los niños, comprometiendo su calidad de vida y el núcleo familiar. Objetivo: Identificar los efectos secundarios producidos por el tratamiento antineoplásico y evaluar su impacto en la calidad de vida del niño y su familia. Método: Estudio cualitativo y transversal, con la participación de 117 niños, preescolares, atendidos en un hospital de referencia (Paraíba), mediante el cuestionario B-Ecohis, exámenes clínicos dentales y registros médicos. El tratamiento estadístico se basó en análisis descriptivo y Regresión de Poisson con varianza robusta en el método Stepwise (p<0,05). Resultados: Las manifestaciones más observadas fueron mucositis y xerostomía (66,7% y 54,7% respectivamente). En cuanto al impacto en la calidad de vida del niño, el dominio con mayor promedio fue la limitación funcional 3,0 (±1,8) y la función familiar 1,0 (±1,0) en la familia. Conclusión: El impacto en la calidad de vida de los niños fue débil y en la familia no significativo.

Palabras clave: neoplasias; antineoplásicos/efectos adversos; manifestaciones bucales; calidad de vida; niño.

 

 

INTRODUÇÃO

A taxa de morbimortalidade por câncer infantil tem exigido uma ampla atenção na área da saúde humana. Estima-se, para cada ano do triênio 2020-2022, a ocorrência de 8.460 novos casos de câncer, sendo a incidência de câncer infantojuvenil de aproximadamente 276 mil novos casos por milhão de crianças1.

 

A maioria das crianças diagnosticadas com neoplasias é submetida ao tratamento antineoplásico que envolve quimioterapia, radioterapia e intervenções cirúrgicas2. Agentes quimioterápicos em especial, dependendo da dosagem e da frequência, podem atingir a mucosa oral, produzindo alterações bucais. Essas manifestações orais, consequentes da intensa imunossupressão advinda da quimioterapia, podem interferir nos resultados da terapêutica médica, causando complicações relevantes, aumentando significativamente o tempo de internação hospitalar e o custo econômico do tratamento. Além disso, afetam diretamente a qualidade de vida da criança e do seu núcleo familiar3,4.

 

A qualidade de vida é definida conforme a percepção do indivíduo em relação à sua posição na vida, no contexto de cultura, valores, expectativas e objetivos1. Entre os instrumentos criados para mensurar a qualidade de vida relacionada à saúde bucal (QVRSB), a Early Childhood Oral Health Impact Scale (ECOHIS) é o mais utilizado para avaliar crianças pré-escolares e seus familiares. Esse instrumento foi validado e encontra-se disponível para a utilização no Brasil (B-ECOHIS) e permite medir o impacto das doenças/desordens bucais e experiências de tratamentos dentários na QVRSB de crianças e seus familiares5,6.

 

Considerando o impacto que o diagnóstico de câncer por si só provoca na família e na criança, além do tratamento invariavelmente prolongado, doloroso e com consequências biopsicossociais, justifica-se plenamente avaliar a qualidade de vida de crianças nessas condições juntamente com suas famílias, bem como identificar as manifestações orais mais frequentes.

 

 

MÉTODO

O delineamento deste estudo é quantitativo, transversal e de dados secundários, sendo realizado no período de junho de 2019 a março de 2020, no Hospital Napoleão Laureano, filantrópico e de referência no tratamento do câncer e de doenças do sangue, localizado no município de João Pessoa (PB), após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Campina Grande e com coparticipação da Faculdade São Leopoldo Mandic, sob o número de protocolo 3.269.555/2019, CAAE: 10933119.2.0000.5575, atendendo às exigências éticas e científicas fundamentais da Resolução 466/20127 do Conselho Nacional de Saúde.

 

Foram avaliadas crianças na faixa etária de dois a seis anos de idade, registradas no prontuário do hospital e submetidas à terapia antineoplásica, cujos pais assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e que não manifestaram atitudes negativas para a execução da pesquisa. Excluíram-se da amostragem crianças que realizavam o primeiro ciclo de quimioterapia no momento do estudo, por não apresentarem manifestações bucais como xerostomia, mucosite e infecções fúngicas e virais.

 

Os questionários foram direcionados aos pais por meio de entrevista pessoal, a fim de garantir que todas as perguntas fossem respondidas. Previamente à aplicação do questionário B-ECOHIS, a pesquisadora orientou os pais sobre as questões contidas: de que se referiam à saúde bucal de seus filhos, da sua importância e das diferenças entre as perguntas aparentemente iguais. Dessa maneira, foram minimizados os erros de interpretação e suprimidas as variáveis que poderiam comprometer a correta obtenção de dados. Realizaram-se, em média, seis entrevistas semanais com um tempo de 30 minutos de duração.

 

O questionário com informações sobre sexo, idade, localização do tumor, quantidade de ciclos de quimioterapia, medicação utilizada e doenças de base foi coletado a partir dos prontuários desses pacientes.

 

O formulário utilizado avaliou a percepção dos pais sobre a QVRSB por meio de 13 questões, sendo nove correspondentes aos domínios pertencentes à seção “Impacto na Criança”: sintomas – uma questão; limitações – quatro questões; psicológico – duas questões; autoimagem e interação social – duas questões; e quatro incluídas na seção “Impacto na Família”: angústia dos pais – duas questões; função familiar – duas questões.

 

As respostas foram categorizadas e codificadas em: 0 (nunca); 1 (quase nunca); 2 (às vezes); 3 (com frequência); 4 (muita frequência) e 5 (não sei). O escore total foi calculado a partir do somatório dos códigos das respostas.

 

A pontuação mínima obtida no formulário, zero, corresponde à saúde bucal sem influência na qualidade de vida das crianças; enquanto a máxima, 56, equivale à forte influência da saúde bucal na qualidade de vida dos pré-escolares. A classificação do impacto, de acordo com o somatório total da pontuação foi assim estabelecida: 0 (sem impacto); 0<x<18,67 (impacto fraco); 18,67<x<37,34 (impacto médio); e 37,34<x≤56 (impacto forte).

 

Os exames clínicos bucais foram realizados em um único momento e por uma única examinadora, pesquisadora treinada por uma estomatologista. Foram avaliadas as manifestações bucais mais comuns decorrentes do tratamento antineoplásico: mucosite, afta, xerostomia e candidíase. Para a realização do exame diagnóstico da mucosite oral, foi adotada a escala de mensuração da doença originalmente proposta pela Organização Mundial da Saúde (OMS): grau 0 sem alterações; grau 1 eritema, irritação e dor; grau 2 eritema, úlceras (dieta sólida); grau 3 úlceras (dieta líquida); e grau 4 impossibilidade de alimentação.

 

O exame bucal foi realizado em crianças que se apresentavam para a admissão a partir do segundo ciclo de tratamento antineoplásico em sala especialmente reservada no hospital e nas crianças internadas no próprio leito hospitalar. Todos os exames foram feitos por inspeção tátil-visual, com auxílio de espátulas de madeira descartáveis, abaixadores de língua estéreis e compressas de gaze, quando necessário, sob iluminação proveniente de lanterna. A examinadora e a anotadora utilizaram gorro, luvas e máscaras descartáveis, obedecendo a todas as normas de biossegurança. Os dados observados na avaliação intrabucal de cada criança foram anotados em ficha apropriada, destacando-se a localização do câncer, as manifestações bucais, medicação prescrita e tipo de tratamento.

 

As informações foram analisadas usando Statistical Package for the Social Sciences (SPSS, Chicago, IL, EUA), versão 20.0. Os domínios e o escore total do B-ECOHIS foram considerados variáveis dependentes. As outras condições clínicas e as variáveis socioeconômicas foram utilizadas como independentes. Foi realizada análise descritiva dos dados com os valores apresentados em frequências absolutas, porcentagens, média e desvio-padrão, valores mínimo e máximo e percentis. Utilizou-se o teste qui-quadrado para associar as variáveis qualitativas. O valor de p<0,05 foi considerado significativo.

 

Para verificar o padrão de distribuição do instrumento B-ECOHIS, realizou-se o teste Kolmogorov-Smirnov cujo valor de p<0,05 foi considerado significativo. Assim, o padrão de distribuição foi não normal. Dessa forma, para verificar o impacto dos aspectos sociodemográficos e das condições clínicas na QVRSB, utilizaram-se os testes Mann-Whitney e Kruskal-Wallis. O valor de p<0,05 foi considerado significativo.

 

A regressão de Poisson com variância robusta no método Stepwise foi empregada para determinar as associações entre impacto da QVRSB com as variáveis independentes. A magnitude da associação foi avaliada pela razão de prevalência (RP), razão de taxas ajustadas (RTajus), intervalos de confiança (IC 95%) e valores de p. As variáveis com os valores de p≤0,20 na análise univariada foram incluídas no modelo ajustado. Apenas as variáveis com um valor de p<0,05 permaneceram no modelo final.

 

 

RESULTADOS

A amostra final foi constituída por 117 crianças, tendo prevalência do sexo masculino (55,6%) e faixa etária de 6 anos de idade (29,1%). Os demais dados estão descritos na Tabela 1.

 

Tabela 1. Análise descritiva do perfil de crianças submetidas à terapia antineoplásica de um Centro de Tratamento Oncológico na Paraíba (n=117)

Variável

n

%

Idade

2

13

11,1

3

18

15,4

4

26

22,2

5

26

22,2

6

34

29,1

Sexo

Feminino

52

44,4

Masculino

65

55,6

Localidade

Capital

(João Pessoa)

37

31,6

Interior

80

68,4

Zona

Urbana

97

82,9

Rural

18

15,4

Não respondeu

2

1,7

Tipo de tratamento

Quimioterapia

98

83,8

Quimioterapia + cirurgia

13

11,1

Quimioterapia + radioterapia

4

3,4

Quimioterapia, radioterapia e cirurgia

2

1,7

Tipo de quimioterapia

Curativa

88

75,2

Adjuvante

13

11,1

Neoadjuvante

6

5,1

Paliativa

9

7,7

Sem informação

1

0,9

Doenças de base

Diabetes

1

0,9

Hipertensão

1

0,9

Cardiopatia

20

17,1

 

Total

117

100,0

 

 

A Tabela 2 expressa as manifestações bucais pontuando mucosite + afta e xerostomia + mucosite em 21,4% e 20,5%, respectivamente, sendo preponderante a classificação G3 (31,6%).

 

Tabela 2. Análise descritiva das manifestações orais em pacientes pediátricos em tratamento quimioterápico de um Centro de Tratamento Oncológico na Paraíba (n=117)

Variável

n

%

Tipo de alteração oral

Não relatado

17

14,5

Mucosite + afta

25

21,4

Xerostomia + mucosite

24

20,5

Mucosite

6

5,1

Xerostomia

14

12,0

Afta

4

3,4

Mucosite + afta + xerostomia

23

19,7

Xerostomia + afta

3

2,6

Candidíase

1

0,9

Grau de mucosite

G0

24

20,5

G1

27

23,1

G2

29

24,8

G3

37

31,6

 

Total

117

100,0

 

 

A Tabela 3 demonstra a distribuição do instrumento B-ECOHIS referente aos impactos na criança e familiar. Ressalta-se que 46,2% das crianças relataram “dor dental” com frequência ou com muita frequência e 47% tiveram “dificuldade de beber” com frequência ou com muita frequência. Com relação ao impacto familiar, nota-se que 22,2% dos indivíduos faltaram ao trabalho com frequência ou muita frequência, e 21,4% sentiram-se aborrecidos com frequência ou muita frequência.

 

Tabela 3. Distribuição das respostas do instrumento B-ECOHIS, versão brasileira, em crianças submetidas à terapia antineoplásica (n=117)

 

 

Nunca

Quase nunca

Às vezes

Com frequência

Com muita frequência

Não sei

 

 

n (%)

n (%)

n (%)

n (%)

n (%)

n (%)

 

Impacto da criança

 

 

 

 

 

 

Domínio sintomas orais

Dor dental

2 (1,7)

20 (17,1)

41 (35,0)

53 (45,3)

1 (0,9)

0 (0,0)

Domínio limitação funcional

Dificuldade de beber

6 (5,1)

20 (17,1)

36 (30,8)

28 (23,9)

27 (23,1)

0 (0,0)

Dificuldade de comer

21 (17,9)

34 (29,1)

40 (34,2)

21 (17,9)

1 (0,9)

0 (0,0)

Dificuldade de pronunciar palavras

98 (83,8)

18 (15,4)

1 (0,9)

0 (0,0)

0 (0,0)

0 (0,0)

Faltou a pré-escola

26 (22,2)

53 (45,3)

34 (29,1)

3 (2,6)

1 (0,9)

0 (0,0)

Deixou de fazer alguma atividade diária

51 (43,6)

20 (17,1)

45 (38,5)

1 (0,9)

0 (0,0)

0 (0,0)

Domínio psicológico

Dificuldade de dormir

56 (47,9)

4 (3,4)

41 (35,0)

16 (13,7)

0 (0,0)

0 (0,0)

Irritado

2 (1,7)

16 (13,7)

85 (72,6)

14 (12,0)

0 (0,0)

0 (0,0)

Domínio autoimagem/
interação social

Evitar sorrir

64 (54,7)

27 (23,1)

26 (22,2)

0 (0,0)

0 (0,0)

0 (0,0)

Evitar falar

72 (61,5)

34 (29,1)

11 (9,4)

0 (0,0)

0 (0,0)

0 (0,0)

 

Impacto familiar

 

 

 

 

 

 

Domínio estresse familiar

Alguém da família aborrecido

55 (47,0)

29 (24,8)

8 (6,8)

25 (21,4)

0 (0,0)

0 (0,0)

Alguém da família culpado

87 (74,4)

5 (4,3)

25 (21,4)

0 (0,0)

0 (0,0)

0 (0,0)

Domínio função familiar

Alguém da família faltou ao trabalho

11 (9,4)

39 (33,3)

41 (35,0)

26 (22,2)

0 (0,0)

0 (0,0)

Impacto financeiro

37 (31,6)

47 (40,2)

27 (23,1)

6 (5,1)

0 (0,0)

0 (0,0)

 

 

O escore total do B-ECOHIS variou no intervalo de 0 a 16, com média de 8,0, exibindo o maior impacto da QVRSB no domínio limitação funcional (média 3 e desvio-padrão 1,8) e, em subsequente, o domínio psicológico (média 1,6 e desvio-padrão 0,9), conforme demonstra o Gráfico 1.

 

Gráfico 1. Diagrama de Kiviat das médias dos escores das dimensões do B-ECOHIS em crianças submetidas à terapia antineoplásica (n=117)

 

 

Observou-se que, na associação entre o valor mediano dos domínios e o escore total do instrumento B-ECOHIS com variáveis sociodemográficas e clínicas, houve relação entre sexo e sintomas orais do instrumento B-ECOHIS (valor de p=0,018); entre o tipo de tratamento com o domínio psicológico do instrumento B-ECOHIS (valor de p=0,029); entre mucosite e o domínio limitação funcional (valor de p<0,001) e escore total (valor de p=0,019) do instrumento ECOHIS. E, por fim, ocorreu associação entre afta e o escore total do instrumento B-ECOHIS (valor de p=0,038) (Tabela 4).

 

Tabela 4. Associação entre o valor mediano dos domínios e escore total do instrumento B-ECOHIS com variáveis sociodemográficas e clínicas em pacientes pediátricos em tratamento quimioterápico de um Centro de Tratamento Oncológico na Paraíba

Variável

Domínio sintomas orais

Domínio limitação funcional

Domínio psicológico

Domínio autoimagem/
interação social

Estresse familiar

Função familiar

Escore total

Mediana (valor mínimo-máximo)

Mediana (valor mínimo-máximo)

Mediana (valor mínimo-máximo)

Mediana (valor mínimo-máximo)

Mediana (valor mínimo-máximo)

Mediana (valor mínimo-máximo)

Mediana (valor mínimo-máximo)

Idade

2

1,0 (0-2)

4,0 (0-5)

1,0 (0-3)

0,0 (0-2)

0,0 (0-3)

1,0 (0-3)

7,0 (1-13)

3

1,0 (0-2)

3,0 (0-6)

1,0 (0-4)

0,0 (0-1)

0,0 (0-3)

1,0 (0-3)

8,0 (0-14)

4

1,0 (0-2)

3,0 (0-6)

1,0 (0-4)

0,0 (0-2)

0,0 (0-3)

1,0 (0-4)

8,5 (2-13)

5

2,0 (0-3)

3,0 (0-6)

1,0 (0-4)

0,0 (0-2)

0,0 (0-3)

1,0 (0-4)

8,0 (1-12)

6

2,0 (0-2)

3,0 (0-7)

2,0 (0-4)

0,0 (0-2)

0,0 (0-3)

1,0 (0-4)

9,0 (0-16)

Valor de p**

0,166

0,833

0,750

0,534

0,418

0,895

0,343

Sexo

Feminino

1,0 (0-3)

3,0 (0-6)

1,0 (0-4)

0,0 (0-2)

0,0 (0-3)

1,0 (0-4)

7,5 (0-14)

Masculino

2,0 (0-2)

3,0 (0-7)

1,0 (0-4)

0,0 (0-2)

0,0 (0-3)

1,0 (0-4)

8,0 (0-16)

Valor de p*

0,018

0,292

0,919

0,310

0,495

0,179

0,087

Localidade

Capital (João Pessoa)

1,0 (0-2)

3,0 (0-6)

1,0 (0-4)

0,0 (0-2)

0,0 (0-3)

1,0 (0-4)

8,0 (3-13)

Interior

1,0 (0-3)

3,0 (0-7)

1,0 (0-4)

0,0 (0-2)

0,0 (0-3)

1,0 (0-4)

8,0 (0-16)

Valor de p*

0,476

0,737

0,253

0,673

0,856

0,484

0,969

Tipo de tratamento

Quimioterapia

1,0 (0-3)

3,0 (0-7)

1,0 (0-4)

0,0 (0-2)

0,0 (0-3)

1,0 (0-4)

8,0 (0-16)

Quimioterapia + cirurgia

2,0 (0-2)

2,0 (0-5)

1,0 (0-2)

0,0 (0-1)

0,0 (0-3)

1,0 (0-3)

7,0 (3-11)

Quimioterapia + radioterapia

0,5 (0-2)

3,0 (0-4)

1,5 (1-2)

0,0 (0-0)

0,0 (0-3)

0,5 (0-1)

7,0 (1-9)

Quimioterapia, radioterapia e cirurgia

1,0 (0-1)

0,5 (0-6)

1,0 (1-1)

0,0 (0-0)

2,5 (2-3)

2,0 (1-3)

7,0 (6-8)

Valor de p**

0,428

0,187

0,029

0,425

0,124

0,479

0,178

Mucosite

Sim

2,0 (0-3)

4,0 (0-7)

2,0 (0-4)

0,0 (0-2)

0,0 (0-3)

1,0 (0-4)

9,0 (0-16)

Não

1,0 (0-2)

2,0 (0-5)

1,0 (1-4)

0,0 (0-1)

0,5 (0-3)

1,0 (0-4)

7,0 (4-13)

Valor de p*

0,080

<0,001

0,127

0,190

0,103

0,185

0,019

Xerostomia

Sim

2,0 (0-2)

3,0 (0-7)

1,0 (0-4)

0,0 (0-2)

0,0 (0-3)

1,0 (0-4)

8,0 (1-16)

Não

2,0 (0-3)

3,0 (0-6)

1,5 (0-4)

0,0 (0-2)

0,0 (0-3)

1,0 (0-4)

9,0 (0-13)

Valor de p*

0,815

0,492

0,923

0,870

0,940

0,321

0,337

Afta

Sim

2,0 (0-3)

3,0 (0-7)

1,0 (0-4)

0,0 (0-2)

0,0 (0-3)

1,0 (0-4)

9,0 (0-16)

Não

1,0 (0-2)

3,0 (0-6)

1,0 (0-4)

0,0 (0-2)

0,0 (0-3)

1,0 (0-4)

7,0 (4-14)

Valor de p*

0,216

0,119

0,659

0,858

0,631

0,782

0,038

(*) Teste Mann-Whitney.

(**) Teste Kruskal-Wallis.

 

 

DISCUSSÃO

A relação entre o tratamento antineoplásico e o desenvolvimento das alterações orais é bem reconhecida na literatura médica e odontológica. O tipo e o grau de malignidade do câncer, a dose medicamentosa prescrita, a frequência da quimioterapia, a idade e a higiene oral da criança são fatores determinantes no aparecimento e na severidade das lesões orais2,8.

 

Essas afecções bucais são importantes fatores de agravamento das doenças sistêmicas, impactando no próprio tratamento médico, alongando o tempo de internação e comprometendo a qualidade de vida da criança e sua família9,10.

 

Diante disso, avaliar a influência das lesões orais após tratamentos antineoplásicos na qualidade de vida e suas consequências para a rotina diária da criança e de seu núcleo familiar é imprescindível, no intento de contemplar ações de saúde que possam minimizar o seu sofrimento.

 

Neste estudo, entre as manifestações orais, a mucosite foi a mais prevalente; no que diz respeito à qualidade de vida, o maior impacto mostrou-se no domínio limitação funcional da criança, e o impacto na qualidade de vida dos familiares revelou-se fraco. Quando comparados os efeitos das condições bucais entre crianças e suas famílias, os resultados deste estudo ajustam-se a outras pesquisas6,11 que demonstram uma influência acentuada sobre as crianças, especialmente nos domínios limitação funcional e sintomas orais.

 

Considerando a mucosite por quimioterapia como manifestação prevalente na população estudada e que produz ulcerações, desconforto e dor, é razoável inferir sua associação com a limitação funcional das crianças, condições igualmente abordadas em outros artigos12-15.

 

O agravo na qualidade de vida das crianças pode estar relacionado a presenças conjuntas de mucosite-afta-xerostomia, também observadas na presente pesquisa nos sintomas orais e limitações funcionais (dificuldades de comer e beber). Tais fatos podem ser explicados pela redução quanti-qualitativa do fluxo salivar que, por sua vez, dificulta a deglutição; e a presença de aftas que, com a ausência de superfície epitelial e a exposição de terminações nervosas, provoca a dor13,16-18. Esses fatores justificam igualmente o impacto negativo no domínio psicológico (dificuldade de dormir e irritação).

 

No domínio autoimagem, em relação às crianças avaliadas, o impacto foi fraco. Entretanto, deve-se considerar que 45,3% relataram “dor dental” que, apesar de não produzir dado estatisticamente significante, pode interferir de forma potencial e negativa na qualidade de vida da criança. É importante enfatizar que estudos comparando a qualidade de vida em relação à saúde bucal em crianças com diagnóstico de câncer e crianças saudáveis exibiram resultados semelhantes9,10. Esses resultados parecem ser possíveis muito em função do acolhimento humanístico oferecido pelos cuidadores, profissionais da saúde e institucional17,19-22.

 

Particularmente na população estudada, o hospital, por ser referência no tratamento oncopediátrico, oferece a necessária assistência odontológica e abordagens complementares, como arteterapia, música, dança, psicoterapia, terapia mente-corpo e oração. É possível concluir que tais medidas podem minimizar os efeitos adversos do tratamento, melhorando a qualidade de vida da criança com reflexo também para a família23,24.

 

É importante salientar que o presente estudo apresenta como limitação o desenho transversal, suscitando um estudo longitudinal na verificação da relação de causalidade. Além disso, crianças com câncer podem não relacionar sua doença com os efeitos adversos em função de sua imaturidade e nível de cognição. Todavia, essas limitações foram compensadas pelos cuidados metodológicos e rigor na coleta de dados.

 

Os resultados desta pesquisa proporcionaram uma compreensão ampliada sobre as repercussões do tratamento antineoplásico sobre a criança e sua família. Ademais, trouxeram informações relevantes para profissionais da saúde que lidam com crianças nessas condições. Assim, pode-se afirmar que, a despeito dos efeitos colaterais e inconveniências decorrentes do tratamento, os profissionais da saúde devem reforçar positivamente para a criança e sua família que ele é necessário e inevitável para a busca da saúde. Esse estímulo, certamente, reduzirá os impactos negativos por parte da abordagem terapêutica e atuará como fator fundamental na melhoria da qualidade de vida, educando a criança e seu núcleo familiar a reconhecer os benefícios do tratamento. Ressalta-se ainda que a presença do cirurgião-dentista, compondo a equipe interdisciplinar nos cuidados do paciente oncológico pediátrico, torna-se obrigatória, com a função de intervenções direcionadas sobre a necessidade e a importância da saúde bucal, sob os pontos de vista educativo, preventivo e curativo.

 

 

CONCLUSÃO

Este estudo demonstrou que o tratamento antineoplásico na população avaliada produziu um impacto fraco na qualidade de vida das crianças, assim como não foi significativo em relação ao núcleo familiar.

 

 

CONTRIBUIÇÕES

Todos os autores contribuíram substancialmente na concepção e planejamento do estudo; na análise e interpretação dos dados; na redação e revisão crítica; e aprovaram a versão final a ser publicada.

 

 

DECLARAÇÃO DE CONFLITO DE INTERESSES

Nada a declarar.

 

 

FONTES DE FINANCIAMENTO

Não há.

 

 

REFERÊNCIAS

1. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Estimativa 2020: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: INCA; 2019.

2. Goursand D, Borges CM, Alves KM, et al. Sequelas bucais em crianças submetidas à terapia antineoplásica: causas e definição do papel do cirurgião dentista. Arqu Odontol [Internet]. 2006 [acesso 2020 jul 11];42(3):161-256. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/arquivosemodontologia/article/view/3402

3. Barbosa AM, Ribeiro DM, Caldo-Teixeira AS. Conhecimentos e práticas em saúde bucal com crianças hospitalizadas com câncer. Ciênc Saúde Coletiva. 2010;15(Suppl 1):1113-22. doi: https://doi.org/10.1590/S1413-81232010000700019

4. Fraga GGAS, Macêdo DP, Jácome Júnior AT, et al. Aparecimento de manifestações orais em crianças ocasionadas pelo uso de terapias antineoplásicas. In: Castro LHA, Moreto FVC, Pereira TT, organizadores. Ações de saúde e geração de conhecimento nas ciências médicas 7. Ponta Grossa (PR): Atena; 2020. p. 92-100. doi: https://doi.org/10.22533/at.ed.02920230712

5. Tesch FC, Oliveira BH, Leão A. Equivalência semântica da versão em português do instrumento Early Childhood Oral Health Impact Scale. Cad Saúde Pública. 2008;24(8):1897-1909. doi: https://doi.org/10.1590/S0102-311X2008000800018

6. Martins-Júnior PA, Ramos-Jorge J, Paiva SM, et al. Validations of the Brazilian version of the Early Childhood Oral Health Impact Scale (ECOHIS). Cad Saúde Pública. 2012;28(2):367-74. doi: https://doi.org/10.1590/S0102-311X2012000200015

7. Conselho Nacional de Saúde (BR). Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2013 jun 13; Seção 1:59.

8. Makvandi P, Josic U, Delfi M, et al. Drug Delivery (Nano) platforms for oral and dental applications: tissue regeneration, infection control, and cancer management. Adv Sci (Weinh). 2021;8(8):2004014. doi: https://doi.org/10.1002/advs.202004014

9. Wogelius P, Rosthøj S, Dahllöf G, et al. Oral health-related quality of life among survivors of childhood cancer. Int J Paediatr Dent. 2011;21(6):465-7. doi: https://doi.org/10.1111/j.1365-263X.2011.01134.x

10. Barbosa AM, Ribeiro DM, Caldo-Teixeira AS. Conhecimentos e práticas em saúde bucal com crianças hospitalizadas com câncer. Ciênc Saúde Coletiva. 2010;15(Suppl 1):1113-22. doi: https://doi.org/10.1590/S1413-81232010000700019

11. Paredes SO, Galvão RN, Fonseca FRA. Influência da saúde bucal sobre a qualidade de vida de crianças pré-escolares. Rev Baiana Saúde Pública. 2014;38(1):125-39. doi: https://doi.org/10.22278/2318-2660.2014.v38.n1.a649

12. Villa A, Sonis ST. Mucositis: pathobiology and management. Curr Opin Oncol. 2015;27(3):159-64. doi: https://doi.org/10.1097/CCO.0000000000000180

13. Ribeiro ILA, Melo ACR, Limão NP, et al. Oral mucositis in pediatric oncology patients: a nested case-control to a prospective cohort. Braz Dent J. 2020;31(1):78-88. doi: https://doi.org/10.1590/0103-6440201802881

14. Gordón-Nuñez MA, Pinto LP. Candidíase e sua relação com a mucosite oral em pacientes oncológicos pediátricos. Rev Bras Patol Oral. 2003;2(2):4-9.

15. Damascena LCL, Lucena NNN, Ribeiro ILA, et al. Severe oral mucositis in pediatric cancer patients: survival analysis and predictive factors. Int J Environ Res Public Health. 2020;17(4):1235. doi: https://doi.org/10.3390/ijerph17041235

16. Amaral TMP, Campos CC, Santos TPM, et al. Effect of salivary stimulation therapies on salivary flow and chemotherapy-induced mucositis: a preliminary study. Oral Surg Oral Med Oral Pathol Oral Radiol. 2012;113(5):628-37. doi: https://doi.org/10.1016/j.oooo.2011.10.012

17. Lopes-Júnior LC, Bomfim EO, Nascimento LC, et al. Non-pharmacological interventions to manage fatigue and psychological stress in children and adolescents with cancer: an integrative review. Eur J Cancer Care (Engl). 2016;25(6):921-5. doi: https://doi.org/10.1111/ecc.12381

18. Lopes IA, Nogueira DN, Lopes IA. Manifestações orais decorrentes da quimioterapia em crianças de um centro de tratamento oncológico. Pesq Bras Odontoped Clin Integr. 2012;12(1):113-9.

19. Jesus LG, Cicchelli M, Martins GB, et al. Repercussões orais de drogas antineoplásicas: uma revisão de literatura. RFO UPF. 2016;21(1):130-5. doi: https://doi.org/10.5335/rfo.v21i1.5052

20. Alves RF, Melo MO, Andrade SFO, et al. Qualidade de vida em pacientes oncológicos na assistência em casas de apoio. Aletheia. 2012;38(39):39-54.

21. Del Bianco Faria AM, Cardoso CL. Aspectos psicossociais de acompanhantes cuidadores de crianças com câncer: stress e enfrentamento. Estud Psicol. 2010;27(1):13-20. doi: https://doi.org/10.1590/S0103-166X2010000100002

22. Van der Gucht K, Takano K, Labarque V, et al. A mindfulness-based intervention for adolescents and young adults after cancer treatment: effects on quality of life, emotional distress, and cognitive vulnerability. J Adolesc Young Adult Oncol. 2017;6(2):307-17. doi: https://doi.org/10.1089/jayao.2016.0070

23. Velez-Florez G, Velez-Florez MC, Mantilla-Rivas JO, et al. Mind-body therapies in childhood cancer. Curr Psychiatry Rep. 2018;20(8):58. doi: https://doi.org/10.1007/s11920-018-0927-6

24. Ponte YO, Ximenes RDA, Vasconcelos AA, et al. Saúde bucal em crianças com câncer: conhecimentos e práticas dos cuidadores. RFO UPF. 2019;24(2):183-91. doi: https://doi.org/10.5335/rfo.v24i2.10433

 

 

Recebido em 30/6/2021

Aprovado em 3/9/2021

 

Editor-associado: Daniel Cohen. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-0089-1910

Editora-científica: Anke Bergmann. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1972-8777

 

 

 

image001

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.

 

©2019 Revista Brasileira de Cancerologia | Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva | Ministério da Saúde