ARTIGO ORIGINAL
Telemedicina em Cuidados Paliativos Oncológicos: um Legado da Pandemia
Telemedicine in Cancer Palliative Care: a Legacy of the Pandemic
Telemedicina en Cuidados Paliativos Oncológicos: un Legado de la Pandemia
https://doi.org/10.32635/2176-9745.RBC.2023v69n1.2698
Cristhiane da Silva Pinto1; Alessandra Zanei Borsatto2; Danielle Copello Vaz3; Simone Garruth dos Santos Machado Sampaio4; Livia Costa de Oliveira5
1-5Instituto Nacional de Câncer, Unidade de Cuidados Paliativos, Hospital do Câncer IV. Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
1E-mail: crisinha.silvapinto1@gmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-2349-6681
2E-mail: alessandraborsatto@gmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0003-4608-0918
3E-mail: dani_copello@hotmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-2536-2492
4E-mail: simonegarruth@gmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0001-5537-7399
5E-mail: lillycostaoliveira@gmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-5052-1846
Endereço para correspondência: Simone Garruth dos Santos Machado Sampaio. Rua Visconde de Santa Isabel, 274 – Vila Isabel. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. CEP 20560-121. E-mail: simonegarruth@gmail.com
RESUMO
Introdução: A telemedicina pode ser um instrumento útil para o acompanhamento de pacientes em cuidados paliativos, especialmente no contexto da pandemia por covid-19. Objetivo: Descrever o uso da telemedicina para pacientes em cuidados paliativos oncológicos acompanhados ambulatorialmente em uma unidade de referência nacional. Método: Análise retrospectiva de teleatendimentos médicos realizados entre abril de 2020 e fevereiro de 2021 a pacientes da unidade acompanhados ambulatorialmente. Foram analisados dados demográficos e clínicos dos pacientes, características do teleatendimento e conduta médica, e feita uma avaliação subjetiva com os profissionais responsáveis pelos teleatendimentos. Resultados: Foram realizados 1.645 teleatendimentos médicos a 470 pacientes com idade média de 62 (54-73) anos, sendo a maioria do sexo feminino (n=258; 54,9%) e com Karnofsky Performance Status estimado em 40% ou superior (n=423; 90,0%) no momento do primeiro contato a distância. Os teleatendimentos foram realizados, em sua maior parte (n=928; 56,4%), para o monitoramento da carga de sintomas entre as consultas presenciais. Destes, em 612 (frequência relativa=65,9%), houve sintoma controlado no teleatendimento subsequente. A queixa mais prevalente foi dor (n=303; frequência relativa=32,7%) seguida por sintomas gripais (n=108; frequência relativa=11,6%). Entre as condutas traçadas, a mais prevalente (n=921; 56,0%) foi o comparecimento apenas do responsável pela retirada dos medicamentos, sem necessidade de deslocamento do paciente. Conclusão: A telemedicina mostrou-se útil na monitorização de sintomas de pacientes com câncer avançado e permitiu que pacientes e cuidadores se mantivessem em seus domicílios, reduzindo o deslocamento e, consequentemente, o risco de contágio por covid-19.
Palavras-chave: cuidados paliativos; assistência ambulatorial; telemedicina.
ABSTRACT
Introduction: Telemedicine can be a useful tool for monitoring patients in palliative care, especially in the context of the COVID-19 pandemic. Objective: To describe the use of telemedicine for outpatients followed up in an Oncological Palliative Care unit in a national reference hospital. Method: A retrospective analysis of medical teleconsultations performed between April 2020 and February 2021 to outpatients followed up at the unit. Demographic and clinical data of patients, telehealth characteristics and medical management were analyzed. A subjective evaluation was carried out with the professionals responsible for the calls. Results: 1,645 medical teleconsultations were carried out to 470 patients with a mean age of 62 (54-73) years, mostly females (n=258; 54.9%) and with Karnofsky Performance Status estimated at 40% or higher (n=423; 90.0%) at the time of the first remote contact. Most of the teleconsultations were carried out (n=928; 56.4%) to monitor the burden of symptoms between in-person consultations. Of these, 612 (relative frequency=65.9%) controlled the symptom in the subsequent telehealth. The most prevalent complaint was pain (n=303; relative frequency=32.7%) followed by flu-like symptoms (n=108; relative frequency=11.6%). Of the clinical conducts planned, the most prevalent (n=921; 56.0%) was only for the person responsible to pick up the medications, the patient did not need to go to the hospital. Conclusion: Telemedicine proved to be useful in monitoring symptoms of patients with advanced cancer and it allowed patients and caregivers to stay in their homes, reducing displacement and, consequently, the risk of contagion by COVID-19.
Key words: palliative care; ambulatory care; telemedicine.
RESUMEN
Introducción: La telemedicina se muestra una herramienta útil para el seguimiento de pacientes en cuidados Paliativos, especialmente en el contexto de la pandemia de covid-19. Objetivo: Describir el uso de la telemedicina para pacientes en cuidados paliativos oncológicos en seguimiento ambulatorio en un hospital de referencia nacional. Método: Análisis retrospectivo de las teleconsultas médicas realizadas entre abril de 2020 y febrero de 2021 a pacientes ambulatorios seguidos en el hospital. Se analizaron datos demográficos y clínicos de los pacientes, características de la de la teleconsulta y gestión médica. Fue realizada una evaluación subjetiva con los profesionales responsables de los servicios que hacían el atendimiento en telemedicina. Resultados: Fueran hechas 1645 llamadas médicas a 470 pacientes con una edad promedio de 62 años (54-73), la mayoría eran mujeres (n=258; 54,9%) y con Karnofsky Performance Status estimado en 40% o superior (n=423; 90,0%) en el momento del primer contacto a distancia. La mayoría de las llamadas fueran realizadas (n=928; 56,4%) para monitorear la carga de síntomas entre consultas presenciales. De estos, 612 (frecuencia relativa=65,9%) controlaron el síntoma en la llamada siguiente. La queja más prevalente fue el dolor (n=303; frecuencia relativa=32,7%) seguido de síntomas gripales (n=108; frecuencia relativa=11,6%). Entre los procedimientos señalados, el más prevalente (n=921; 56,0%) fue la asistencia únicamente de la persona responsable de tomar la medicación, sin necesidad de desplazamiento del paciente. Conclusión: La telemedicina demostró ser útil en el seguimiento de los síntomas de los pacientes con cáncer avanzado y permitió que los pacientes y cuidadores se quedasen en sus hogares, reduciendo el desplazamiento y, en consecuencia, el riesgo de contagio por covid-19.
Palabras clave: cuidados paliativos; atención ambulatoria, telemedicina.
INTRODUÇÃO
Na última década, o uso de telemedicina em cuidados paliativos vem aumentando progressivamente1. A telemedicina pode ser definida como o uso de tecnologias virtuais; e telecomunicações, como instrumento para oferecer serviços em saúde1. Mais recentemente, com o início da pandemia da covid-192, inúmeros serviços recorreram a essa modalidade de assistência como estratégia para prosseguir com o acompanhamento seguro de pacientes, evitando deslocamentos e aglomerações em unidades assistenciais3, com o intuito de manter a promoção da qualidade de vida e o controle de sintomas4. A maioria dos estudos sobre o tema aborda os benefícios no âmbito da telessaúde, tanto para serviços assistenciais quanto para atividades de capacitação e treinamento das equipes multidisciplinares, a fim de minimizar as repercussões que o distanciamento físico causou no dia a dia das pessoas5,6.
Com o balizamento dos órgãos competentes (Ministério da Saúde, Conselho Federal de Medicina, Conselho Federal de Enfermagem)7-9, foi estruturado o serviço de teleatendimento ambulatorial a pacientes acompanhados no Hospital do Câncer (HC) IV, que é a Unidade de Cuidados Paliativos (UCP) do Instituto Nacional de Câncer (INCA), conforme descrito por Pinto et al.10. Essa reestruturação foi realizada com o propósito de reduzir o número de consultas presenciais, evitando assim aglomerações e reduzindo o deslocamento de pacientes e cuidadores até a UCP; auxiliar no monitoramento e controle de sintomas, inclusive em relação à dispensação de medicamentos e materiais necessários para realização dos cuidados dos pacientes em seus próprios domicílios; e ainda rastrear, orientar e monitorar aqueles com sintomas sugestivos de covid-1910-12. As teleconsultas foram realizadas, em sua maioria, por enfermeiro e médico, sendo as consultas com a Psicologia, o Serviço Social e a Nutrição sob demanda10.
As consultas por telemedicina começaram em abril de 2020 e provavelmente serão incorporadas em definitivo no serviço, com o modelo redesenhado, mesmo com o fim da pandemia. Além da impressão subjetiva de eficácia, há dados internos da unidade que não mostraram aumento na demanda do Serviço de Pronto Atendimento ou da Internação Hospitalar em todo esse período. Nesse contexto, este trabalho objetiva descrever o uso da telemedicina para pacientes com câncer avançado em cuidados paliativos exclusivos acompanhados ambulatorialmente em uma unidade de referência nacional.
MÉTODO
Análise de dados obtidos retrospectivamente por consulta a prontuários de pacientes acompanhados ambulatorialmente na UCP do INCA, no Rio de Janeiro-RJ, Brasil, que receberam teleatendimento médico no período de abril de 2020 a fevereiro de 2021.
O INCA é uma instituição pública de referência para prevenção e controle do câncer no Brasil. No âmbito da prestação de serviços assistenciais, conta com o HC I, II e III, estabelecidos em diferentes locais da cidade do Rio de Janeiro, para o tratamento específico modificador de doença, ou seja, qualquer intervenção com o propósito de cura, aumento de sobrevida e/ou tempo livre de doença, seja por quimioterapia, radioterapia ou intervenção cirúrgica. O HC IV é a UCP do INCA que recebe pacientes encaminhados de todas as demais unidades assistenciais (HC I, II e III), seja ao término das possibilidades de linhas de tratamento e não obtenção da cura, seja pela progressão da doença em vigência de tratamento (refletindo em não benefício na sua continuidade) ou pelo agravamento da sua condição clínica do paciente (não permitindo a continuidade das intervenções terapêuticas específicas).
O atendimento ambulatorial a pacientes da UCP é o processo assistencial que envolve o atendimento de maneira presencial e, atualmente, também o acompanhamento por teleatendimento. A equipe responsável pelo gerenciamento e pela realização dos teleatendimentos delineou a organização das teleconsultas subsequentes pré-agendadas, mantendo sempre o primeiro atendimento do paciente na UCP como consulta presencial, para que ocorra sua avaliação por toda equipe interprofissional. A manutenção dessa primeira consulta buscou favorecer a realização de um acolhimento efetivo, e ainda atender a algumas demandas comuns aos pacientes e cuidadores que ingressam na unidade, além do controle de sintomas propriamente dito, incluindo o esclarecimento de dúvidas e a orientação adequada dos objetivos dos cuidados paliativos. Além disso, a concordância do paciente e/ou familiar foi sempre levada em consideração, com a possibilidade de realização da consulta convencional (presencial) em caso de preferência10.
O intervalo do contato foi planejado de acordo com as demandas apresentadas pelo paciente a partir da avaliação da equipe que o atendeu presencialmente ou a distância, considerando a presença e a intensidade de sintomas, de forma que pacientes com sintomas mais intensos ou em maior número eram reavaliados em menor intervalo de tempo. O próprio paciente ou familiar também tinha a opção de fazer contato com o serviço de teleatendimento por demanda espontânea para reportar dúvidas ou mudanças clínicas. Foi elaborado um formulário padronizado para direcionar as teleconsultas e todos os atendimentos foram documentados em prontuário eletrônico, com a sinalização da modalidade do atendimento10.
Foram previstas dificuldades iniciais, definidas metas e mantidas as consultas presenciais para os casos em que a telemedicina não conseguisse equacionar as demandas de forma segura e eficaz. Alguns fluxos foram revisitados e redelineados no decorrer do tempo. O teleatendimento na unidade foi realizado inicialmente por um médico e duas enfermeiras com agendas marcadas e demanda espontânea, uma psicóloga e uma assistente social que recebiam os casos triados conforme a necessidade de pacientes e familiares, e, posteriormente, iniciou-se o teleatendimento nutricional conforme demandas e parecer. Detalhes dessa estruturação do serviço estão publicados na Revista Brasileira de Cancerologia10.
A cada teleatendimento, o profissional de saúde responsável investigou com o paciente e/ou familiar a funcionalidade, os sintomas relacionados à doença oncológica e o manejo/funcionamento de dispositivos invasivos, ostomias e feridas com as orientações/condutas pertinentes a cada caso. O uso adequado de medicações e a adesão terapêutica também foram verificados. Rotineiramente, também foram avaliados sintomas relacionados à covid-19, bem como a necessidade de dispensa de medicamentos e materiais necessários ao cuidado do paciente em domicílio. Os casos foram discutidos entre a médica e a enfermeira para a deliberação da melhor conduta. Em situações em que o atendimento presencial se fez necessário, uma consulta presencial foi prontamente agendada. Quando, pela avaliação da equipe do teleatendimento, foram preenchidos critérios que denotassem necessidade de internação para suporte (controle de sintomas excruciantes ou cuidados de fim de vida), foi reservada vaga na enfermaria e o caso foi discutido com a equipe de médicos hospitalistas.
Cabe destacar, no entanto, que os dados aqui apresentados são parciais e referem-se exclusivamente ao teleatendimento médico aos pacientes em cuidados paliativos. Dessa maneira, os critérios de inclusão foram: (i) estar em cuidados paliativos; (ii) ter câncer localmente avançado ou com metástase a distância confirmada histológica ou clinicamente; (iii) não receber nenhum tratamento antineoplásico com intenção curativa; (iv) ter idade ≥20 anos; (v) ter recebido teleatendimento médico no período de interesse do estudo. Foram excluídos pacientes cujos dados de interesse não puderam ser resgatados dos prontuários médicos.
Todos os dados foram obtidos por meio de consulta aos prontuários, sendo eles: demográficos [idade (anos) e sexo (masculino vs. feminino)], clínicos [sítio tumoral primário (trato gastrintestinal vs. ginecológico vs. mama vs. cabeça e pescoço vs. pulmão vs. pele, ossos e tecidos moles vs. outros)] e funcionalidade (Karnofsky Performance Status – KPS). O KPS (variando de 0% [morte] a 100% [função completa]) foi estimado pelo médico responsável pelo teleatendimento de acordo com a função física diária relatada pelo paciente no momento da avaliação13.
Foram coletados ainda dados referentes ao número de teleatendimentos por paciente, pessoa responsável pelo contato, meio de consulta (telefone vs. vídeo), conduta médica, reagendamento de consulta seguinte (sim vs. não; tempo em dias), necessidade de monitoramento (sim vs. não; tempo em dias), presença de sintomas (sim vs. não) e tipo de sintomas (incluindo a presença de sintomas gripais, sugestivos de infecção pela covid-19).
Em adição, foi feita uma avaliação subjetiva com os profissionais responsáveis pelo teleatendimento de modo a identificar pontos positivos e negativos relacionados a essa modalidade de atendimento.
A análise estatística foi realizada usando o Stata 13.1 (Stata Corp., College Station, Texas, EUA). O teste de Kolmogorov-Smirnov foi usado para avaliar a distribuição das variáveis. As variáveis numéricas foram descritas em mediana com intervalo interquartil (IIQ), percentis 25 e 75. As variáveis categóricas foram descritas como frequência absoluta (n) e frequência relativa (%).
Este estudo atendeu à Resolução n.º 466/201214 do Conselho Nacional de Saúde e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do INCA, sob o número de parecer 4.685.226 (CAAE: 54919016.4.0000.5274).
RESULTADOS
Foram avaliados dados de 1.645 teleatendimentos médicos realizados no período do estudo (compreendendo o atendimento a 470 pacientes diferentes), conforme demonstrado na Figura 1. Todos os teleatendimentos foram realizados exclusivamente por um único médico no ambulatório da unidade no período estudado. Estão incluídos tanto atendimentos realizados por ocasião de agenda predefinida quanto por demanda espontânea de pacientes ou familiares.
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Figura 1. Teleatendimentos médicos realizados a pacientes com câncer avançado em cuidados paliativos Legendas: UCP = Unidade de Cuidados Paliativos; INCA = Instituto Nacional de Câncer; IIQ = intervalo interquartil. |
A mediana de idade foi de 62 (IIQ: 54-73) anos, com predomínio de pacientes do sexo feminino (n=258; 54,9%) e com sítio tumoral primário localizado no trato gastrintestinal (n=99; 21,1%), seguido por cabeça e pescoço (n=87; 18,5%). A maioria dos pacientes (n=423; 90,0%) apresentou KPS estimado >40% no momento do primeiro teleatendimento (Tabela 1).
Tabela 1. Características demográficas e clínicas de pacientes com câncer avançado em cuidados paliativos que receberam teleatendimento médico (n=470) |
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A mediana de teleatendimentos realizados por paciente foi 3 (IIQ: 1-5), sendo predominante a realização por ligação telefônica (n=1.300; 79,0%). A maioria dos teleatendimentos tinha como pessoa responsável pelo contato o próprio paciente (n=644; 39,1%) ou o seu filho(a) (n=493; 30,0%). A maioria dos teleatendimentos (n=928; 56,4%) foi realizada para o monitoramento da carga de sintomas entre as consultas ambulatoriais presenciais. Entre os pacientes com relato de sintomas, parte deles (n=612; frequência relativa=65,9%) não relatou o sintoma descontrolado no próximo atendimento. Entre os pacientes que obtiveram teleatendimento para monitoramento de sintomas, a queixa mais prevalente foi dor (n=542; 33%), seguida por sintomas gripais, sugestivos de infecção pela covid-19 (n=197; 12%) (Tabela 2).
Tabela 2. Características descritivas dos teleatendimentos médicos a pacientes com câncer avançado em cuidados paliativos (n=1.645) |
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As principais condutas traçadas foram divididas em: 1 – comparecimento apenas de pessoa responsável para receber materiais e medicações, quando o paciente estava estável (31,0%); ou 2 – comparecimento apenas de pessoa responsável para pegar medicamentos novos ou para intercorrências agudas leves/moderadas, quando o paciente apresentava alguns sintomas descontrolados, porém passíveis de controle após mudança na prescrição (25,0%) (Gráfico 1).
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Gráfico 1. Condutas traçadas para o teleatendimento a pacientes com câncer avançado em cuidados paliativos A: Paciente estável, porém com medicação/material insuficiente para o período interconsultas. Orientação para comparecimento somente do responsável na unidade. B: Paciente com alguns sintomas descontrolados, porém passíveis de controle somente com alteração na prescrição médica. Orientação para comparecimento somente do responsável na unidade para fornecimento de medicação. C: Paciente com alguns sintomas descontrolados, já em uso das medicações e fora de possibilidade de controle somente com atendimento a distância. Orientação para comparecimento do responsável e do paciente na unidade. D: Paciente estável, ainda com medicação/material suficiente em domicílio. Reagendamento da consulta ambulatorial, postergando a data da vinda à unidade. E: Videoconferência, pedido de material da enfermagem, recall para controle de sintoma, atendimento após contato de iniciativa do paciente, solicitação de exame de imagem ou laboratorial, solicitação de radioterapia, orientação de retorno à unidade de origem, paciente internado e/ou solicitação de procedimento. F: Realização de prescrição médica. G: Encaminhamento de paciente ao Serviço de Pronto Atendimento. H: Acolhimento familiar pós-óbito. |
DISCUSSÃO
Esses dados corroboram o relato de que a experiência com o uso da telemedicina foi benéfica, uma vez que a estratégia contribuiu para a manutenção da assistência segura e propiciou o monitoramento e o controle de sintomas em pacientes com câncer avançado em cuidados paliativos, assim como já relatado por outros serviços assistenciais de saúde15-17. Cabe destacar, no entanto, que o teleatendimento não deve substituir a consulta presencial em circunstâncias diversas, por exemplo, o primeiro atendimento ao paciente com câncer avançado e em situações clínicas mais graves e/ou instáveis nas quais o exame físico e a atenção presencial podem ser considerados imprescindíveis18.
No contexto da pandemia, o teleatendimento foi uma importante estratégia para a redução da exposição de pacientes e familiares, diminuindo a necessidade do uso de transportes, de permanência em sala de espera de atendimento, entre outros. Além do benefício individual, auxiliou também na redução do número de pessoas circulantes na UCP e, no sentido mais global, na redução de pessoas circulando nas ruas, uma vez que apenas em 18% dos atendimentos foi necessário o agendamento de uma consulta presencial subsequente em razão da complexidade da demanda.
Caracterizou-se ainda como um benefício protetivo para equipe de saúde, que teve contato com um menor número de pessoas na unidade de saúde ou mesmo possibilitou que profissionais portadores de fatores de risco para casos graves de covid-19 pudessem desempenhar sua atividade assistencial em trabalho remoto (a partir do suporte do serviço de tecnologia). Esse mecanismo possibilitou ao serviço a manutenção de todos os profissionais em atividade assistencial, mantendo a força de trabalho e a expertise da equipe, uma vez que profissionais considerados na ocasião como pertencentes ao grupo de risco puderam prosseguir suas atividades em trabalho remoto pela teleconsulta. Não houve recusa dos profissionais na adesão à nova modalidade, embora tenham sido incluídas neste estudo apenas as consultas médicas.
Cabe destacar que pode haver uma dificuldade inicial de adaptação à nova metodologia de assistência tanto por parte do profissional quanto dos pacientes/familiares, sendo necessário tempo para que ambos os atores do cuidado fiquem confortáveis com o teleatendimento. Salem et al.19, em estudo qualitativo envolvendo profissionais de saúde e familiares de pacientes em cuidados paliativos, conduzido entre 2015 e 2017, observaram a importância de esclarecer os objetivos e as limitações do teleatendimento para evitar frustração de expectativas. Reforça ainda a necessidade de uma comunicação eficaz por ambos os envolvidos para prover um cuidado de qualidade.
Após a primeira consulta presencial, a continuidade do cuidado pode ocorrer de forma fluida por telemedicina, não havendo recusa por parte dos pacientes na adesão. Tasneem et al.20, em um estudo qualitativo para avaliação de videochamadas com pacientes, consideraram a experiência boa e relataram não haver perda na relação médico-paciente. Além disso, os pacientes mantiveram a confiança na conduta traçada pelo profissional, consideraram boa estratégia, além de confortável e econômica, para otimizar o acesso ao atendimento.
Em um estudo sobre o uso da videochamada em cuidados paliativos de Jess et al.21, emergiram seis temas com vantagens e desvantagens, barreiras e facilitadores: redesenhando o cuidado; comunicação; percepção do usuário; tecnologia; privacidade; e implicações econômicas. A comunicação foi descrita como equivalente à consulta presencial (videochamada com vantagem da comunicação não verbal sobre a chamada convencional). Entre as vantagens, estão a possibilidade de manter-se no domicílio, evitando deslocamentos por vezes dolorosos, maior facilidade no controle de sintomas, boa aceitação por profissionais. Como desvantagens, há a necessidade do acesso à tecnologia, de organização do serviço para propiciar local e equipamentos para os profissionais; estes podem ficar temerosos em abordar temas delicados.
No presente estudo, em 34% dos teleatendimentos, o paciente apresentou sintomas controlados, e a intervenção necessária foi o fornecimento de nova receita/medicação; em 15%, não foi necessária nenhuma intervenção, nem mesmo a renovação da receita médica, o que pode ser justificado muitas vezes pela distância entre o domicílio do paciente e a UCP, pois não compensaria a ida ao hospital para recebimento de medicações de preço baixo e fácil aquisição; e, em 20%, um atendimento presencial foi necessário (ambulatorial, emergencial ou internação hospitalar direta). Entre os 25% dos pacientes que necessitaram de mudança de medicação, as mais recorrentes foram: ajuste de analgesia, rodízio de opioides, antibioticoterapia para infecções não complicadas e controle de odor de feridas tumorais, bem como início/otimização de antidepressivos e ansiolíticos.
A experiência de um serviço de telemedicina na Índia elaborado no contexto de lockdown pela pandemia da covid-19 foi descrita por Biswas et al.22. Dos 314 pacientes atendidos, 157 necessitaram de orientação para controle de sintomas, 129 para titulação de opioide e 86 demandaram revalidação de receita médica de opioide. Foi verificado que 56 pacientes descreveram estar muito satisfeitos com o serviço e 152 se consideraram satisfeitos.
Após o teleatendimento, as consultas foram reagendadas com mediana de 30 dias de intervalo. Os casos foram avaliados individualmente e os pacientes que necessitaram de acompanhamento mais próximo foram identificados, permitindo um intervalo de cinco dias em alguns casos. Além dessas consultas agendadas internamente, houve demanda espontânea por parte de pacientes e familiares. Com isso, o número de teleatendimentos realizados com cada um dos 470 pacientes foi variável, com mediana de três atendimentos para cada paciente. O teleatendimento propiciou, inclusive, o monitoramento de pacientes, o processo ativo de morte e o acolhimento de familiares no pós-óbito, prática que anteriormente era executada prioritariamente por psicólogos e assistentes sociais do serviço ambulatorial.
Embora não quantificada, a dificuldade no acesso à tecnologia não foi uma barreira para o uso da telemedicina, como era temido inicialmente. Maior restrição foi para uso da videochamada, mas não houve dificuldade quando se tratava de atendimento remoto por meio de chamada de voz.
Como limitações deste estudo, cabe destacar a natureza retrospectiva do delineamento da proposta e a obtenção de dados em prontuários eletrônicos, ou seja, registrados por outros profissionais e passíveis de vieses, por exemplo, relacionados a sub-registros.
CONCLUSÃO
Muitas transformações no processo assistencial decorrentes da pandemia devem ser mantidas no serviço mesmo após o retorno à normalidade. A telemedicina mostrou-se útil na monitorização de sintomas de pacientes com câncer avançado em cuidados paliativos. Permitiu também que pacientes e cuidadores se mantivessem em seus domicílios, reduzindo a necessidade de deslocamento e o risco de contágio por covid-19. O atendimento remoto poderá facilitar o acompanhamento de pacientes com baixo KPS ou mesmo daqueles cujo translado para a consulta presencial poderia gerar muita dor ou desconforto.
Todas as autoras contribuíram substancialmente na concepção e/ou no planejamento do estudo; na obtenção, análise e interpretação dos dados; na redação e revisão crítica; e aprovaram a versão final a ser publicada.
DECLARAÇÃO DE CONFLITO DE INTERESSES
Nada a declarar.
FONTES DE FINANCIAMENTO
Não há.
REFERÊNCIAS
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Recebido em 10/5/2022
Aprovado em 29/11/2022
Editora-científica: Anke Bergmann. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1972-8777
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