ARTIGO ORIGINAL
“Eu entro num Consórcio Funerário”. Percepções e Representações de Adultos sobre Embalagens Padronizadas de Cigarros
“I Join a Funeral Consortium”. Perceptions and Representations about Cigarette Plain Packages
“Me Uno a un Consorcio Funerario”. Percepciones y Representaciones sobre los Paquetes de Cigarrillos Neutros
doi: https://doi.org/10.32635/2176-9745.RBC.2022v68n4.2712
Felipe Lacerda Mendes1; Cristina de Abreu Perez2; Letícia Casado3; Mariana Coutinho Marques de Pinho4; Marismary Horsth de Seta5
1Instituto Nacional de Câncer (INCA), Coordenação de Prevenção e Vigilância, Programa Nacional de Controle do Tabaco. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mail: felmendes@yahoo.com.br. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0003-1071-1597
2Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp). Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mail: cristinadeabreuperez@gmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-5170-9664
3INCA, Coordenação de Ensino, Revista Brasileira de Cancerologia. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mail: lecasado@gmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0001-5962-8765
4Aliança de Promoção da Saúde, Departamento de Controle do Tabaco. Niterói (RJ), Brasil. E-mail: marimpinho@gmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-8372-9272
5Fiocruz/Ensp, Departamento de Administração e Planejamento em Saúde. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mail: deseta@ensp.fiocruz.br. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0003-4764-5159
Endereço para correspondência: Felipe Lacerda Mendes. Rua Guajaratuba, 71, apto. 102 – Tijuca. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. CEP 20511-300. E-mail: felmendes@yahoo.com.br
RESUMO
Introdução: O tabagismo persiste como grave problema de saúde pública, apesar dos avanços nos campos da saúde e legislativos, que culminaram em redução significativa na prevalência de fumantes. No entanto, a embalagem de cigarros continua exercendo papel publicitário em pontos de venda, festivais culturais e Internet. Essa estratégia reflete no aumento do tabagismo entre jovens, o que exige a implementação de novas medidas. A padronização das embalagens tem sido adotada internacionalmente, com resultados relevantes. Objetivo: Desvendar percepções e representações das embalagens padronizadas de cigarros entre adultos fumantes e não fumantes brasileiros, e identificar possíveis efeitos na experimentação, consumo e cessação do tabagismo. Método: Foram constituídos seis grupos focais em três capitais. Fumantes e não fumantes manipularam protótipos dessas embalagens, descrevendo experiências próximas da vida real. Os participantes também avaliaram as cores dos protótipos. Seus depoimentos foram submetidos à análise de conteúdo desenvolvida manualmente pelos pesquisadores, identificando percepções e representações, e apontando possíveis repercussões sobre o comportamento de fumar. Resultados: As percepções dos participantes apontaram menor atratividade e menor qualidade do produto, levando ao desinteresse em sua compra. As advertências sanitárias foram percebidas como mais proeminentes, tornando os riscos do tabagismo mais evidentes. Os resultados sugerem que essas embalagens desencorajam a experimentação e iniciação entre jovens, com potenciais estímulos à cessação do tabagismo. Conclusão: As embalagens padronizadas parecem gerar mudança de significação sobre o produto, que, ao romperem a representação positiva da personalidade do fumante transmitida pelas marcas de cigarros, direcionam sua imagem para uma realidade próxima das enfermidades associadas ao tabagismo.
Palavras-chave: tabagismo; embalagem de produtos derivados do tabaco; percepção; rotulagem de produtos derivados do tabaco.
ABSTRACT
Introduction: Smoking persists as a serious public health problem, despite health and legislative advances, that have led to a significant reduction in the prevalence of smokers. Despite that, cigarette packs continues to play an advertising role at points of sale, cultural festivals and on the Internet. This strategy is reflected in the increase of smoking among young people, which requires the implementation of new measures. The standardization of cigarette packs has been adopted internationally, with relevant results. Objective: To unravel perceptions and representations of plain cigarette packs among adult smokers and non-smokers in Brazil, and to identify possible effects on experimentation, consumption and smoking cessation. Method: Six focus groups were set up in three capitals. Smokers and non-smokers manipulated prototypes of these packs, describing experiences close to real life. The participants also evaluated the colors of the prototypes. Their statements were submitted to content analysis, manually developed by the investigators, identifying perceptions and representations, and pointing out possible repercussions on smoking behavior. Results: The participants’ perceptions indicated less attractiveness and lower quality of the product, leading to disinterest in purchasing it. Health warnings were perceived as more prominent, making the risks of smoking clearly evident. The results suggest that plain packs discourage experimentation and initiation among young people, with potential stimuli for smoking cessation. Conclusion: The standardized packs seem to generate a change in the product meaning, which, by breaking the positive representation of the smoker’s personality, transmitted by cigarette brands, directs the smoker’s image to a reality close to the diseases associated with smoking.
Key words: tobacco use disorder; tobacco-derived products packing; perception; tobacco-derived products labeling.
RESUMEN
Introducción: El tabaquismo persiste como un grave problema de salud pública, a pesar de los avances legislativos y en la salud que se han culminado en una importante reducción de la prevalencia de fumadores. Sin embargo, los paquetes de cigarrillos siguen teniendo un papel publicitario en puntos de venta, festivales culturales e Internet. Esta estrategia se refleja en el aumento del tabaquismo entre los jóvenes, lo que obliga a implementar nuevas medidas. La estandarización de los paquetes de cigarrillos ha sido adoptada internacionalmente, con resultados relevantes. Objetivo: Descubrir las percepciones y representaciones del empaquetado estandarizado de los cigarrillos entre adultos fumadores y no fumadores en Brasil, e identificar los posibles efectos sobre la experimentación, el consumo y la cesación tabáquica. Método: Se crearon seis grupos focales en tres capitales. Fumadores y no fumadores manipularon prototipos de estos paquetes, describiendo experiencias casi reales. Los participantes también evaluaron los colores de los prototipos. Sus declaraciones fueron sometidas a análisis de contenido, desarrollado manualmente por los investigadores, identificando percepciones y representaciones, y señalando posibles repercusiones sobre la conducta tabáquica. Resultados: Las percepciones de los participantes indicaron menor atractivo y menor calidad del producto, lo que generó desinterés por comprarlo. Las advertencias sanitarias se perciben como más prominentes, haciendo los riesgos del tabaquismo más evidentes. Los resultados sugieren que estos paquetes desalientan la experimentación y la iniciación entre los jóvenes, con estímulos potenciales para dejar de fumar. Conclusión: Los paquetes estandarizados parecen generar un cambio de significado sobre el producto, que, al romper la representación positiva de la personalidad del fumador, transmitida por las marcas de cigarrillos, dirige su imagen a una realidad cercana a las enfermedades asociadas al tabaquismo.
Palabras clave: tabaquismo; envasado de productos derivados del tabaco; percepción; etiquetado de productos derivados del tabaco.
INTRODUÇÃO
O tabagismo persiste como um grave problema de saúde pública no Brasil, responsável por 161 mil mortes anuais, que correspondem a 13% de todas as mortes ocorridas no país em um ano e a 443 mortes diárias. Ainda, gera um custo anual de R$ 125 bilhões para a economia, decorrente dos gastos com tratamentos de saúde, cuidados familiares e perda de produtividade no trabalho1.
Diversas políticas para reduzir o consumo de tabaco foram adotadas nos últimos 30 anos, das quais se destacam a definição de preços mínimos para os cigarros, os aumentos na tributação, a introdução de advertências sanitárias sobre os malefícios do tabagismo nas embalagens dos produtos, e as proibições da publicidade de tabaco nos meios de comunicação e de fumar em recintos coletivos2. Essas medidas favoreceram uma redução significativa na prevalência nacional de fumantes, aferida pela Pesquisa Nacional de Saúde: entre 2008 e 20193, que caiu de 18,2% para 12,6%. No entanto, isso significa 26 milhões de fumantes sujeitos a doenças graves e incapacitantes. Além disso, a prevalência entre jovens de 18 a 24 anos manteve-se estável em 10,6% entre 2013 e 2019, como reflexo do aumento na iniciação nas faixas etárias anteriores. A Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar4 revelou que o percentual de escolares de 16 e 17 anos que fumaram cigarros cresceu de 29,1% em 2015 para 32,6% em 2019, com uma elevação importante entre meninas. Esses números acendem um sinal de alerta na saúde pública e sugerem que novas políticas públicas precisam ser adotadas.
Em um cenário legislativo que limita os principais meios de publicidade e de promoção de cigarros, a indústria do tabaco passou a concentrar seus investimentos de marketing nas embalagens para a captação de novos consumidores5. Cada vez mais sofisticadas, com novos formatos, texturas, elementos gráficos e cores, as embalagens passaram a protagonizar ações promocionais no Brasil, principalmente em decorrência da permissão legal para a exposição dos maços nos pontos de venda, que proliferaram em padarias, lojas de conveniência, bancas de jornal, bares e restaurantes6. As embalagens tornaram-se presentes também nas ações promocionais em eventos culturais, em seriados na televisão e nas redes sociais7.
Para conter essas estratégias de promoção da embalagem e de incentivo à experimentação e ao consumo, vários países seguiram a iniciativa da Austrália, passando a exigir que as embalagens de cigarros adotassem padrões de cor e formato definidos pelos órgãos reguladores em saúde – as chamadas embalagens padronizadas (EP). Análises empíricas fornecem evidências para justificar a introdução das EP como intervenção eficaz de saúde pública voltada à redução do tabagismo8.
No Brasil, os produtos de tabaco sofreram regulações significativas que contribuem para informar os consumidores sobre os malefícios de fumar e para desnormalizar o tabagismo na sociedade. Em duas décadas, as advertências sanitárias impressas nas embalagens dos cigarros evoluíram de uma frase única e pouco visível para um conjunto de frases com cores contrastantes e imagens contundentes que retratam os efeitos do consumo, ocupando 100% da face posterior das embalagens9. Além desse conjunto gráfico, outras mensagens de saúde e o número do serviço Disque Saúde passaram a ocupar mais espaço nas embalagens10. Essa evolução regulatória parece indicar que o país está no caminho do que Scollo et al.11 chamaram de “progressão lógica”, ou seja, a adoção das EP é uma consequência natural e necessária do aprimoramento regulatório das embalagens e da evolução das advertências sanitárias, bem como é uma etapa a ser seguida pelos países que já avançaram nas medidas determinadas pela Convenção-Quadro da Organização Mundial da Saúde para o Controle do Tabaco12.
Nesse contexto, este trabalho busca desvendar percepções e representações sociais sobre as EP e seus possíveis efeitos na experimentação, consumo e cessação do tabagismo entre adultos fumantes e não fumantes, residentes em três capitais de diferentes Regiões. Este é o primeiro estudo nacional a abranger homens e mulheres adultos com manuseio de protótipos de EP.
MÉTODO
Nesta pesquisa qualitativa, objetivou-se que o contato com os protótipos das EP estimulasse percepções sensoriais e cognitivas, trazendo à tona as diversas interpretações e suas respectivas representações, mergulhadas em contextos sociais e geográficos diferentes. Tomou-se como conceito de percepção a experiência sensorial – fenômeno de natureza biológica mediado principalmente pelos órgãos sensoriais – que gera uma interpretação – fenômeno psicossocial pelo qual os objetos ou fatos captados ganham sentido ou significado13. Minayo14 indica que a interação entre sujeitos da pesquisa revela sua percepção do objeto e da realidade, seus valores, e explica a estrutura do seu sistema de referências e símbolos, transmitindo as representações de um grupo em determinado contexto social e econômico. Na mesma direção, Del Rio e Oliveira15 entendem que a representação atua como um prolongamento da percepção, porque a introduz em um sistema de significação representativo, cujos significantes podem ser as formas de linguagem, as imagens, os gestos, e cujos significados compreendem o espaço, a ideia ou o sentido.
Para a coleta de dados, utilizou-se a técnica de grupos focais, usual em pesquisas sociais, principalmente naquelas que têm seu foco na avaliação de programas, regulamentação pública e marketing16. Os grupos foram conduzidos por uma moderadora da empresa de pesquisa Datafolha e por uma pesquisadora da equipe, seguindo um roteiro semiestruturado composto pelas questões: se identificavam diferenças entre os maços de cigarros atuais e os protótipos; o que os protótipos transmitiam ou comunicavam; que interesses eles despertavam; se comprariam um cigarro nessa embalagem e por qual motivo; se acreditavam que os protótipos causariam efeitos sobre fumantes e não fumantes; e qual(quais) cor(cores) despertava(m) mais ou menos interesse. Uma das paredes da sala de pesquisa era composta por espelho e, atrás dela, dois pesquisadores acompanhavam o andamento do grupo, com o consentimento dos entrevistados.
Os grupos desenvolveram-se em outubro de 2017 nas cidades do Rio de Janeiro, Recife e Porto Alegre, escolhidas com base na prevalência de fumantes de 201617, combinada com a distribuição geográfica dessas cidades e suas realidades culturais e sociais diversas, e considerando as limitações orçamentárias da pesquisa.
O recrutamento considerou aspectos de: (1) faixa etária – adultos de 18 a 55 anos; indivíduos com mais de 55 anos foram excluídos pela potencial existência de morbidades associadas ao tabagismo que poderiam interferir nas percepções; (2) escolaridade – adultos analfabetos ou com ensino fundamental incompleto foram excluídos pela necessidade de leitura dos elementos das marcas impressos nos maços de cigarros; e (3) perfil de tabagismo – fumantes e não fumantes. Classificaram-se: como “fumantes”, os indivíduos que fumavam diariamente, e fumantes ocasionais, os que fumaram diariamente no passado; como “não fumantes”, os que não fumavam à época da pesquisa, tanto os que nunca tinham experimentado quanto os ex-fumantes. Essa caracterização segue o padrão utilizado na Pesquisa Nacional de Saúde3.
Os participantes foram distribuídos homogeneamente quanto ao gênero e compuseram dois grupos etários (de 18 a 24 anos; de 25 a 55 anos), cuja separação buscou identificar percepções e representações mais próximas dos adolescentes, visto que a indústria do tabaco direciona grande parte das suas ações promocionais para os mais jovens18. Optou-se pela mistura dos distintos perfis de tabagismo em um mesmo grupo, estimulando debates de vivências e pontos de vista diversos, por vezes conflitantes, e o intercâmbio de ideias.
Nos grupos focais, utilizaram-se embalagens de cigarros comercializadas localmente e dois conjuntos de oito protótipos de EP (Figura 1), totalizando 16, desenvolvidos com base nas cores testadas na Austrália19, para as quais se atribuíram letras de A até H, a fim de facilitar a identificação nos debates. Na face de trás, cada protótipo possuía uma das dez imagens de advertência em vigor à época. A estratégia de exposição naturalista aos protótipos, com manuseio, buscou estimular a emersão de experiências próximas da vida real.
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Figura 1. Protótipos de embalagens padronizadas de cigarros utilizados na pesquisa |
Ao final de cada grupo, distribuiu-se uma ficha a cada participante para que fossem atribuídas notas às oito cores dos protótipos, com base na pergunta: “Numa escala de 0 a 10, onde 0 é a cor que você menos gosta, e 10 a cor que você mais gosta, classifique cada cor abaixo”. Esse exercício visou a aprofundar a análise, identificar consistências e estabelecer uma classificação das cores.
As discussões foram gravadas em áudio e transcritas integralmente. Empregou-se o método de análise de conteúdo, que reduz e organiza as comunicações emitidas mediante procedimentos sistemáticos de categorização e interpretação20. A análise foi realizada manualmente pelos pesquisadores, levando em consideração temáticas provenientes da literatura científica, que orientaram a construção do roteiro, bem como considerando as codificações significativas emergentes do campo, sugeridas pelos pesquisadores após as primeiras leituras individuais das transcrições. Esse conjunto de codificações iniciais foram negociadas, reorganizadas e acordadas em categorias finais pelos pesquisadores em reuniões subsequentes de discussão. A análise buscou, ainda, responder às principais questões de pesquisa: Como adultos fumantes e não fumantes percebem e representam as EP de cigarros? Que repercussões as EP teriam sobre a iniciação e a cessação do tabagismo?
O estudo foi desenvolvido dentro dos padrões éticos e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Nacional de Câncer (INCA), sob o número de parecer 2.313.277 (CAAE: 75017617.1.0000.5274), conforme a Resolução do Conselho Nacional de Saúde n.º 466/201221. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A pesquisa envolveu 47 participantes, sendo 25 homens e 22 mulheres, distribuídos em seis grupos focais. A maioria dos sujeitos possuía nível médio de escolaridade (n= 35), seguida dos de nível superior (n= 12). A distribuição por sexo e por perfil de tabagismo (fumantes e não fumantes) esteve equilibrada em todos os grupos.
De modo geral, a embalagem de um produto é um dos principais recursos comunicativos entre o consumidor e a marca, pois o contato direto com o público-alvo funciona como um cartão de visita, visa a despertar emoções, mexer com os sentidos e gerar reações como satisfação, bem-estar, alegria e prazer em consumir22.
Documentos internos dos fabricantes de cigarros, que vieram a público por meio de litígios judiciais internacionais, demonstram o quanto as características físicas (como comprimento e textura) e o desenho (por exemplo, cor e os elementos gráficos) das embalagens são essenciais para gerar uma identificação com o consumidor, declarando sua personalidade e estilo de vida23,24. Os maços de cigarros foram desenhados para transmitir atributos positivos associados a elegância, charme, riqueza e sucesso25, representações que foram construídas pelo conjunto de estratégias de publicidade promovidas pela indústria do tabaco26. Essa estratégia subliminar parece ainda reverberar no inconsciente dos participantes e nos significados das embalagens atualmente comercializadas:
Se eu tivesse com um cigarro desse [de marca], um isqueiro, me imagino sentado no restaurante Outback: [...] assim, com jaqueta de couro. Eu sou o cara. Se eu visse um cara fazendo isso, ia falar: esse cara sabe viver (18-24 anos, Rio de Janeiro).
Vogue, Dunhil nano e L&A são para um público mais sofisticado, elitizado (18-24 anos, Recife).
Ao contrário de outras embalagens que são descartadas após abertas, o maço de cigarros é mantido junto do fumante ou ao seu alcance durante todo dia, é constantemente manipulado, além de ficar visível durante o uso. Dessa forma, a embalagem de cigarro funciona como uma pequena propaganda móvel permanentemente exibida27. Para McCracken28, a publicidade é um instrumento que transfere o significado do mundo cultural e historicamente constituído para um bem de consumo. O significado assentado no bem de consumo é, por sua vez, transferido para o consumidor mediante ações simbólicas ou “rituais”, que afirmam, evocam, assinalam ou revisam os símbolos e significados próprios da ordem cultural, servindo, então, como meios para a sua manipulação.
Dessa forma, a pesquisa parte de um contexto no qual o tabagismo e as embalagens revestem-se de um simbolismo próprio e assumem significados e sentidos que foram socialmente construídos em um ambiente permeado por estratégias de marketing direcionadas ao consumo, repercutindo na memória coletiva das pessoas. As percepções e representações sobre os protótipos de EP parecem romper essas estratégias e criam novos significados. Os resultados sobre as percepções e representações foram estruturados segundo categorias, resultantes da análise de conteúdo, e grupos etários (Quadro 1).
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Quadro 1. Percepções dos participantes sobre as embalagens padronizadas segundo categorias e grupos etários |
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As falas dos participantes trouxeram percepções imediatas de que a retirada de elementos gráficos, como cores variadas e desenhos, das embalagens parece tornar as EP menos atraentes e menos chamativas. A ausência de destaque nas EP fica evidente nas citações de cores escuras, frias e básicas, assim como nas menções à falta de estímulo e geração de sensações.
Essa quebra na atratividade parece resultar em manifestações de desinteresse pela embalagem, possivelmente afetando o ato de experimentação ou manutenção do consumo: “Não compraria esse cigarro”; “Quero não” (vide Quadro 1). Além disso, as EP parecem prejudicar a percepção sobre a qualidade do cigarro, como se o produto comercializado em uma EP apresentasse características inferiores no sabor, ou no tipo de tabaco utilizado na fabricação, contribuindo na intenção de compra.
Esses resultados acompanham achados internacionais que demonstram que a EP é considerada menos atraente e também percebida como de qualidade inferior, com sabor mais fraco e preços mais baratos do que as equivalentes de marca. Outrossim, as EP enfraqueceram as impressões positivas da identidade do fumante e dos atributos de personalidade associados a marcas específicas29.
Na categoria “advertências sanitárias”, as falas dos entrevistados indicam que os protótipos parecem eliminar a competição que os elementos gráficos dos maços atuais exercem sobre as imagens e frases sanitárias impressas nas embalagens, levando a atenção do consumidor diretamente para as advertências e colocando-as no primeiro plano de leitura, resultado corroborado pela literatura30,31. Essa medida governamental de informação antitabagismo utiliza uma abordagem repulsiva, oposta à significação positiva adotada pela indústria, e, junto com as campanhas educativas públicas, contribui para reconstruir os significados culturais do produto ao evidenciar os desfechos de doença e de morte.
Um estudo recente de avaliação das advertências sanitárias nacionais apontou que algumas marcas de cigarros possuem embalagens na cor amarela, a mesma das tarjas das advertências, e essa estratégia pode reduzir o impacto das mensagens. O estudo recomenda a adoção de EP como forma de mitigar essa estratégia e de ampliar a comunicação das advertências32.
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Quadro 2. Representações dos participantes sobre as embalagens padronizadas segundo categorias e grupos etários |
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A categoria “nocividade” enaltece as falas dos participantes que associam as EP a morte, veneno e consequências à saúde, e parece refletir uma maior compreensão do risco ou dos danos causados pelo tabagismo. A eliminação dos elementos atrativos, que direcionam a atenção para as advertências, parece tornar a embalagem mais próxima da realidade, desfazendo conexões com o imaginário e tornando as consequências do seu uso mais evidentes. Pesquisas sugerem que as EP têm o potencial de reduzir as falsas crenças sobre a não nocividade do cigarro33,34. Um estudo com fumantes no Reino Unido descobriu que, quando solicitados a comparar variedades de oito marcas de cigarros, aproximadamente 75% dos fumantes relataram erroneamente que havia diferenças de risco entre elas. A remoção da cor e das imagens da marca das embalagens reduziu significativamente essas crenças35. Chama atenção a associação dos protótipos aos invólucros de medicamentos. Tal como as diferentes cores dos maços tradicionais são capazes de transmitir o sabor adicionado ao produto36, a nova composição gráfica das EP e o destaque conferido às advertências direcionaram os participantes às representações de medicamentos específicos e de uso controlado, que transmitem uma semântica oposta à saúde (Quadro 2).
Esse conjunto formado por embalagens menos atraentes, que não comunicam atributos positivos, e por uma representação da nocividade do produto, fizeram alguns participantes construírem um novo perfil do fumante. As falas passaram a representar o fumante de EP com emoções negativas, descrito como alguém sem alegria, apático e deprimido, que vive em um “submundo sombrio”. Portanto, sua imagem torna-se mais próxima da representação de alguém acometido por uma doença física ou psíquica grave associada ao tabagismo, conforme transmitido pelas advertências. Esse novo perfil dificilmente será admirável ou copiado pelo grupo social. Os discursos mostram que os maços em formato padronizado afetariam o conceito de “embalagem crachá”37, ou seja, não dando mais um depoimento vivo a favor da marca e, no caso dos cigarros, não mais comunicando aquela personalidade historicamente construída por meio do maço, sugerindo que o consumidor deixaria de exibir o produto.
O Quadro 3 apresenta o que os participantes informaram em relação às possíveis repercussões das EP sobre fumantes e não fumantes.
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Quadro 3. Repercussões das embalagens padronizadas sobre o comportamento de fumantes e não fumantes, segundo faixas etárias |
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Uma questão central da pesquisa é se as EP teriam efeitos sobre a experimentação entre não fumantes; seus resultados sugerem que elas impactariam especialmente os jovens, incluindo aqueles que fumam eventualmente em festas ou na balada, que evitariam a curiosidade e o desejo de experimentar. Essa opinião dos informantes se repetiu em todos os grupos focais.
Apesar de várias falas apontarem que as EP provocam emoções negativas, os participantes se dividiram quanto às repercussões no comportamento dos fumantes. Parte dos participantes apostou na diminuição ou cessação do consumo como um efeito do desinteresse pela embalagem, potencializada pela evidenciação das advertências sanitárias e pela maior percepção do risco à saúde.
Outros indicaram que os protótipos não afetariam o comportamento dos que fumam regularmente, sugerindo que a dependência à nicotina estabelecida – e sua necessidade de satisfação psicológica, física e comportamental – e a procura pelo sabor e o prazer proporcionado pelo consumo levariam invariavelmente os fumantes a continuar fumando. A partir do primeiro contato com o cigarro, proporcionado pelas estratégias de marketing ou pela pressão do grupo social, a nicotina assume o comando, capturando o jovem pela dependência química e psíquica, tornando-o um adulto dependente, que normalmente se fideliza à marca de cigarro conforme envelhece38. Esse processo experimentação-consumo-dependência repercute pela vida adulta, tornando o cigarro uma presença permanente, cujas preferências e personalidade do fumante comunicadas pela marca passam para um segundo plano. Isso pode explicar por que alguns entrevistados entendem que o fumante, fidelizado à marca, não busca mais o produto pela embalagem em si, mas por conta da dependência à nicotina e do sabor.
Esses achados são corroborados por uma revisão de evidências39, que apresentou efeitos importantes das EP no comportamento de fumantes e não fumantes, jovens ou adultos, como: elevam a percepção de risco à saúde, reduzindo falsas crenças; são percebidas como menos atraentes e apelativas, particularmente entre jovens; podem tornar os não fumantes menos propensos a experimentar um cigarro e podem promover a cessação do tabagismo.
Classificação dos protótipos segundo suas cores
No tocante à escala de classificação das cores dos protótipos, as notas atribuídas pelos participantes foram agrupadas em intervalos de: 0 a 3 pontos, interpretados como “não gostei”; 4 a 6 pontos, interpretados como “cores neutras” ou “gostei pouco”; e 7 a 10 pontos, interpretados como “gostei” ou “gostei muito”. O Gráfico 1 apresenta esses resultados.
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Gráfico 1. Classificação dos protótipos de embalagens padronizadas, segundo intervalos de notas de 0 a 10 |
As cores verde-limão (G) – nomeada pelos participantes como mostarda e amarela – e branca (H) foram caracterizadas como as que eles “não gostaram”, apontando que essas cores podem ser futuramente consideradas na adoção das EP: “A branca me lembrou remédio” e “Essas cores transmitem agonia. Senti nojo da amarela” (adultos de 18-24 anos, Recife).
As cores classificadas como as que “mais gostaram” foram cinza-escuro (B – batizada pelos entrevistados como “grafite”), caramelo (F – chamada de “dourada”) e creme (E – “nude”). Por exemplo, os entrevistados de 18-24 anos de Porto Alegre afirmaram: “Grafite é uma coisa mais chique” e “Achei bonita a caixinha dourada. Dependendo da marca, ficaria legal”.
Os resultados da pesquisa sugerem que as características gráficas das EP geram desinteresse e emoções negativas, além de aumentarem a compreensão da nocividade do produto, que as aproximam de medicamentos, potencializada pela proeminência das advertências sanitárias. Considerando que a indústria do tabaco explora historicamente as embalagens como veículo de propaganda e se aproveita do efeito de “embalagem crachá” nos maços atuais, as EP parecem romper a identidade visual da marca e os atributos positivos atualmente comunicados, gerando uma nova significação do produto. Esse efeito pode decorrer tanto da ausência de elementos gráficos atraentes (como cores variadas, desenhos e símbolos) quanto da representação de que o risco do consumo se torna mais evidente nas EP.
Nesse conjunto formado por embalagem desinteressante, pela associação com maior risco à saúde e de distanciamento da ilusória imagem positiva, as EP poderiam impactar, principalmente, os jovens não fumantes, desestimulando a experimentação, e os jovens que fumam ocasionalmente em festas e eventos.
Na idade adulta, o fumante depara-se com a dependência à nicotina já estabelecida, e, na opinião dos participantes, essa parcela de fumantes dificilmente mudaria seus hábitos por conta das EP. Ainda assim, alguns participantes acreditam que as EP seriam capazes de incentivar a cessação de fumar ao romper a identificação do fumante com a embalagem, associando sua imagem com emoções negativas, como apatia, depressão e repulsa. Com menos representações positivas e maior visibilidade das advertências sanitárias, possivelmente as EP deixariam de ser exibidas publicamente pelos fumantes, e isso poderia afetar seu uso como instrumento de aceitação por pares e contribuir para a desnormalização do tabagismo na sociedade.
Além disso, as advertências sanitárias poderiam funcionar como um veículo mais efetivo de informação ao se tornarem mais evidentes, aumentando a própria conscientização do fumante sobre os danos causados pelo tabagismo e incentivando-o a buscar ajuda no serviço Disque Saúde estampado na embalagem.
Essas projeções conflitantes sugerem que pesquisas adicionais deveriam investigar que outras informações de saúde poderiam compor as EP e suas advertências sanitárias, de maneira a incentivar os fumantes mais dependentes a buscarem apoio para cessação de fumar e a fim de tornar essas opiniões consensuais na direção da proteção da saúde.
Este estudo apresenta como limitações: a ausência de participação de menores de idade; a não participação de analfabetos, parcela importante da população; e o não enfoque do recrutamento na população de baixa renda, em que o tabagismo está mais presente. Ademais, não foi possível identificar e analisar separadamente as falas de fumantes e não fumantes, pois o registro se limitou ao áudio dos grupos. Nesse sentido, recomenda-se que novas pesquisas possam investigar essas questões, ampliando as evidências científicas nacionais.
CONTRIBUIÇÕES
Felipe Lacerda Mendes e Cristina de Abreu Perez contribuíram substancialmente na concepção e no planejamento do estudo; na obtenção, análise e interpretação dos dados; assim como na redação e revisão crítica. Letícia Casado contribuiu substancialmente no planejamento do estudo; na obtenção dos dados e na revisão crítica. Mariana Coutinho Marques de Pinho contribuiu substancialmente na obtenção dos dados e na revisão crítica. Marismary Horsth de Seta contribuiu substancialmente na análise e interpretação dos dados, bem como na redação e revisão crítica. Todos os autores aprovaram a versão final a ser publicada.
AGRADECIMENTOS
Ao INCA, à Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp)/Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e à União Internacional de Combate à Tuberculose e Câncer de Pulmão (The Union), que contribuíram significativamente para que este estudo fosse realizado.
DECLARAÇÃO DE CONFLITO DE INTERESSES
A autora Letícia Casado declara potencial conflito de interesses pela condição de ser a editora-executiva da Revista Brasileira de Cancerologia do INCA. Os demais autores não possuem conflito de interesses.
FONTES DE FINANCIAMENTO
Filantropia Bloomberg para redução do uso de tabaco por meio da União Internacional de Combate à Tuberculose e Câncer de Pulmão (The Union) e do projeto de cooperação-técnica com o INCA.
REFERÊNCIAS
1. Palacios A, Pinto A, Barros L, et al. A importância de aumentar os impostos do tabaco no Brasil [Internet]. Buenos Aires (AR): Instituto de Efetividade Clínica e Sanitária; 2020 [acesso 2021 abr 19]. Disponível em: https://actbr.org.br/uploads/arquivos/iecs-2021.pdf
2. Portes LH, Machado CV, Turci SRB, et al. A política de controle do tabaco no Brasil: um balanço de 30 anos. Ciênc Saúde Coletiva. 2018;23(6):1837-48. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.05202018
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Recebido em 24/5/2022
Aprovado em 14/7/2022
Editora-científica: Anke Bergmann. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1972-8777
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