OPINIÃO

 

Comunicação em Saúde na Prevenção e Detecção Precoce do Câncer: em Busca de Práticas mais Dialógicas e Inclusivas

Health Communication in the Prevention and Early Detection of Cancer: in Search of more Dialogical and Inclusive Practices

Comunicación Sanitaria en la Prevención y Detección Precoz del Cáncer: en Busca de Prácticas más Dialógicas e Inclusivas

 

 

doi: https://doi.org/10.32635/2176-9745.RBC.2023v69n1.2879

 

Mônica de Assis1

 

1Instituto Nacional de Câncer, Coordenação de Prevenção e Vigilância, Divisão de Detecção Precoce e Apoio à Organização de Rede. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mail: monassis.mm@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7137-9471

 

Endereço para correspondência: Mônica de Assis. Avenida Melo Matos, 44, apto.101 – Tijuca. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. CEP 20270-290. E-mail: monassis.mm@gmail.com

 

 

INTRODUÇÃO

A comunicação com a população é considerada estratégica para o controle do câncer desde os primeiros passos da constituição de uma política pública de saúde no Brasil, nas primeiras décadas do século XX1.

 

Ações de comunicação que ampliem o conhecimento da sociedade sobre como prevenir e detectar precocemente o câncer, bem como que desconstruam estigmas que retardam a busca por tratamento, continuam sendo críticas para o enfrentamento desse crescente problema de saúde pública. Segundo a Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer2, a comunicação é um eixo transversal das ações, e compete a todas as esferas de gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) criar estratégias para ampliar o conhecimento da população sobre o câncer e seus fatores de risco, formas de prevenção e controle.

 

As críticas ao modelo comunicacional dominante, centrado na transmissão de informações e recomendações comportamentais, chamam a atenção para os seus limites. Produzidas a partir do saber técnico, as ações nesse modelo são verticais, não consideraram a influência do contexto econômico, sociocultural e simbólico, e não reconhecem o outro como também produtor de saberes e sujeito da comunicação. Ocupam-se da produção dos enunciados e seus formatos, mas pouco problematizam o seu alcance e a possibilidade de serem compreendidos e de fazer sentido para o outro3.

 

A necessidade de inclusão da “voz do outro” na produção, circulação e avaliação das práticas é uma perspectiva alinhada à ideia de participação, noção cara ao SUS e estruturante do conceito de empoderamento. Tal conceito é um dos objetivos da Política Nacional de Promoção da Saúde4, que busca aumentar a capacidade e a autonomia de sujeitos e coletividades para atuarem em defesa da saúde e da vida, valendo-se para isso de “diversas expressões comunicacionais, formais e populares, para favorecer a escuta e a vocalização dos distintos grupos envolvidos”4.

 

A comunicação mais dialógica é também contemplada na Política Nacional de Educação Popular em Saúde5, cujo princípio de construção compartilhada do conhecimento propõe processos comunicacionais descentralizados, que atentem para o contexto dos sujeitos e se traduzam em práticas “identificadas com a realidade, linguagens e culturas populares”5.

 

A despeito da sua relevância e da necessidade de caminhos inovadores que reconheçam a complexidade envolvida na comunicação e suscitem reflexão e diálogo, a prática institucional na saúde, via de regra, segue pautada pelo modelo de campanhas, com resultados pouco conhecidos. A busca por melhores formas de estabelecer processos comunicativos com a população permanece desafiante.

 

Com base na vivência da autora na interface da educação com a comunicação em saúde, em experiências institucionais públicas, e no diálogo com textos críticos sobre o tema no Brasil, este artigo pontua questões que permeiam a comunicação sobre prevenção e detecção precoce do câncer e atualiza alguns princípios desejáveis para as práticas. Espera-se contribuir para que profissionais de saúde e gestores, especialmente os que atuam na atenção primária e secundária, reconheçam a essencialidade do investimento crítico, reflexivo e criativo em ações comunicativas em saúde com a população.

 

DESENVOLVIMENTO

Complexidades a serem reconhecidas

 

A comunicação humana é mais do que transmitir informações de um emissor para um receptor. Comunicar é produzir sentidos3 e várias são as dificuldades nesse processo quando o assunto é a saúde, desde a apropriação de códigos inerentes à linguagem até o amplo leque de fatores que influenciam a relação das pessoas com as recomendações de saúde pública.

 

Abordagens que não levam em conta as múltiplas facetas da relação da população com os riscos em saúde e os comportamentos preventivos tendem ao reducionismo3. Além de informação insuficiente, há também a falta de recursos e condições adequadas de vida, desejos, motivações, medos... Essa trama de fatores socioeconômicos, culturais e subjetivos que cercam o comportamento humano deve ser reconhecida e, na ótica de humanização do cuidado, subsidiar abordagens menos prescritivas sobre os desafios individuais e coletivos que envolvem a saúde.

 

Ainda que mudanças tecnológicas crescentes venham remodelando e expandindo as possibilidades de comunicação em uma sociedade cada vez mais digital e midiatizada, pouco ainda se pode observar de elementos realmente inovadores nas instituições de saúde. Operada hegemonicamente sob a égide transmissional e a urgência de campanhas e pressões da mídia, com recursos humanos e tecnológicos limitados, as práticas tendem a se repetir mais do que a buscar novos modelos.

 

Na prevenção primária do câncer, os desafios comunicacionais para a construção de sentidos em torno da alimentação saudável, atividade física, abandono do tabagismo e redução do consumo de bebidas alcoólicas são de grande monta. Ressignificar prazeres cotidianos em contextos sociais restritivos e de certa volatilidade da vida é especialmente difícil. O aqui e agora tende a falar mais alto.

 

Na detecção precoce do câncer, os “meses coloridos” (Outubro Rosa, Julho Verde, Março Lilás...), apesar de trazerem ao debate questões de alta relevância, normalmente acabam reproduzindo nas instituições de saúde a lógica de campanha, secundarizando o planejamento e a avaliação das ações. Com o calendário apertado, o espaço para se pensar estrategicamente a produção, circulação e recepção dos materiais é reduzido ou ausente. A avaliação, quando realizada, reduz-se a métricas de acesso e contribui pouco para refletir sobre como a população recebe, interpreta e se relaciona com as informações divulgadas.

 

Mais campanha é igual a mais e melhor informação? Indícios mostram lacunas importantes. Em comentário sobre o Novembro Azul6 e análise sobre a mídia do Outubro Rosa7, observa-se que a comunicação sobre a detecção precoce do câncer incorre em (des)informação e esbarra em conflito de interesses e falta de preparo tanto de profissionais de saúde como de jornalistas para abordar questões mais complexas que envolvem as recomendações de rastreamento. Opera-se com a lógica de promover a adesão a exames de detecção precoce, omitindo os riscos e desconsiderando princípios éticos, enquanto pouco se conhece sobre vários outros elementos, inclusive emocionais (defesas psíquicas), que podem retardar a população no engajamento em detecção precoce de doenças ainda cercadas de estigmas8.

 

Estudos sobre o letramento em saúde (motivação e competências para acessar, compreender, avaliar e aplicar informação em saúde) reforçam o rol de desafios comunicacionais em toda a linha de cuidado do câncer, sobretudo no contexto de baixos níveis educacionais. Na detecção precoce, por exemplo, é destacado o impacto negativo no reconhecimento dos sintomas suspeitos e na compreensão sobre o rastreamento e riscos e benefícios das intervenções9.

 

Por mais escuta, conhecimento e avaliação

Para onde seguir sem saber onde estamos? Um deslocamento do olhar é necessário para se afastar do centrismo na produção de mensagens e se aproximar do que se passa do lado de lá. A interação com os grupos populacionais com quem queremos nos comunicar pode sinalizar novas possibilidades para uma comunicação dialógica e afetiva, retroalimentando as práticas.

 

Na direção de práticas inovadoras, cabe reafirmar e atualizar alguns princípios:

 

ü  Buscar interlocução com diferentes grupos na produção de estratégias comunicativas e criativas

Ouvir as pessoas potencialmente interessadas nos temas abordados pode ajudar a construir ou aperfeiçoar iniciativas para que sejam claras, simples e façam sentido ao outro. Experiências aqui e ali trilham esse chamado e trazem certo arejamento às ações. Na vivência da autora, ouvir homens para a construção compartilhada de um material educativo sobre câncer de próstata10, articular com lideranças feministas para revisão crítica de folders e cartazes sobre cânceres femininos, realizar rodas de conversa sobre saúde da mulher com trabalhadoras da limpeza11, ouvir mulheres para elaborar e avaliar um material de apoio à decisão no rastreamento do câncer de mama são caminhos que ensinam e enriquecem, embora sigam ainda pontuais.

 

ü  Compreender o cenário discursivo

A comunicação não ocorre no vazio. Há uma “sala de conversa”3. Segundo Araújo12, a comunicação opera como um mercado simbólico em que múltiplas vozes circulam por meio da prática de diversos atores sociais. Tal polifonia pode ser captada por um “mapa da comunicação” dos temas trabalhados, que mostre os interlocutores e os fluxos comunicacionais. Na referida análise da mídia do Outubro Rosa no Brasil7, foram mapeados os interlocutores e seus discursos, as tensões e lacunas de informação existentes. Esse reconhecimento é útil para se repensar estratégias comunicacionais na disputa de sentidos.

 

ü  Ir além da informação e provocar diálogo e reflexão

O conhecimento técnico-científico sobre saúde é um bem da sociedade e a ela deve estar disponível, sem que paire solitário e distante do interesse das pessoas. Abordagens em formatos diversos e acessíveis, que partilhem dificuldades e possibilidades de adoção de práticas mais saudáveis na vida cotidiana, com propósito de disparar reflexões, podem criar maior empatia e curiosidade. Vivências da população, captadas em estudos qualitativos já disponíveis ou a serem realizados, podem ser intercaladas a conteúdos técnicos e serem elementos de identificação que estimulem novas formas de pensar e de agir.

 

ü  Explorar a interatividade das novas tecnologias como espaços de participação

Um mundo de canais e possibilidades interativas se abriu com a popularização do uso de dispositivos móveis e a ampliação de redes sociais. A ocupação desse espaço por recursos comunicacionais de forma participativa e afetiva poderá reconfigurar de modo expressivo as práticas13. É preciso ampliar espaços para relações mais dialógicas que contribuam para que indivíduos e coletividades constituam a si próprios e o mundo em que habitam14. As instituições devem preparar condições materiais e humanas para aproveitar essa oportunidade.

 

ü  Implementar processos avaliativos sobre a produção, circulação e recepção de materiais de comunicação em saúde

Avaliar é preciso! Todas as etapas do fazer comunicativo suscitam reflexão e podem gerar conhecimento reorientador de todo o processo. A incorporação do planejamento como boa prática tornará possível incluir dimensões avaliativas para se conhecer melhor como os recursos são criados, estimar o seu alcance e a receptividade dos sujeitos.

 

ü  Valorizar e defender o SUS como parte da construção dos direitos sociais

A comunicação pública deve fortalecer o SUS e afirmar o direito à saúde, se colocando a serviço da consolidação das redes assistenciais e não apenas com enfoque na responsabilidade dos indivíduos por sua situação de saúde3. Estratégias para responder ao baixo letramento em saúde são valiosas, mas cabe acrescentar que o acesso aos serviços de saúde, em tempo oportuno e com qualidade, é fator determinante para várias ações preventivas e de detecção precoce, sem o qual a informação “não salvará vidas”, ainda que seja básico e primordial garanti-la efetivamente.

 

CONCLUSÃO

O pequeno investimento em planejamento e na avaliação das práticas institucionais de comunicação em saúde impõe a reprodução de modelos transmissionais, dificultando compreender e superar os seus limites.

 

Por certo, respostas mais profundas a vários desafios aqui tangenciados extrapolam o campo comunicacional e dependem de políticas públicas que fortaleçam a educação, a cidadania e favoreçam comportamentos e práticas mais saudáveis, na lógica da promoção da saúde. As ações comunicativas devem, contudo, se alinhar a isso e experimentar fazer diferente.

 

É fundamental que haja uma real valorização dessas práticas, com melhor formação e dedicação de equipes, para atualizar e, tanto quanto possível, reinventar estratégias na agenda cada vez mais necessária da comunicação na prevenção e detecção precoce do câncer.

 

 

CONTRIBUIÇÃO

Mônica de Assis participou de todas as etapas da construção do artigo, desde a sua concepção até a aprovação da versão final a ser publicada.

 

 

DECLARAÇÃO DE CONFLITO DE INTERESSES

Nada a declarar.

 

 

FONTES DE FINANCIAMENTO

Não há.

 

 

REFERÊNCIAS

1. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Comunicação como estratégia para a política de controle do câncer: a experiência do INCA [Internet]. Rio de Janeiro; 2018 [acesso 2022 set 1]. Disponível em: https://www.inca.gov.br/sites/ufu.sti.inca.local/files//media/document//livro-comunicacao_final_nov2018.pdf

2. Ministério da Saúde (BR), Gabinete do Ministro. Portaria nº 874, de 16 maio de 2013. Institui a Política Nacional para a Prevenção e Controle do Câncer na Rede de Atenção à Saúde das Pessoas com Doenças Crônicas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) [Internet]. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2013 maio 17 [acesso 2022 ago 15]; Seção 1:129. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt0874_16_05_2013.html

3. Araújo IS, Cardoso JM. Comunicação e saúde. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2007.

4. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Vigilância em Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS): Anexo I da Portaria de Consolidação nº 2, de 28 de setembro de 2017, que consolida as normas sobre as políticas nacionais de saúde do SUS [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2018. [acesso 2015 nov 22]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_promocao_saude.pdf

5. Ministério da Saúde (BR), Gabinete do Ministro. Portaria nº 2.761, de 19 de novembro de 2013. Institui a Política Nacional de Educação Popular em Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (PNEPS-SUS). Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2013 nov 20 [acesso 2018 jul 20]; Seção 1:62. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt2761_19_11_2013.html

6. Assis M. Campanha demais e informação de menos. Interface. 2018;22(64):5-8. doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622017.0261

7. Assis M, Santos ROM, Migowski A. Detecção precoce do câncer de mama na mídia brasileira no Outubro Rosa. Physis. 2020;30(1):e300119. doi: https://doi.org/10.1590/S0103-73312020300119

8. Pinheiro CPO, Silva RM, Brasil CCP, et al. Procrastinação na detecção precoce do câncer de mama. Rev Bras Enferm. 2019;72(Suppl 3):237-44. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0547

9. Sørensen K, Makaroff LE, Myers L, et al. The call for a strategic framework to improve cancer literacy in Europe. Arch Public Health. 2020;78:60. doi: https://doi.org/10.1186/s13690-020-00441-y

10. Santos ROM, Ramos, DN, Assis, M. Construção compartilhada de material educativo sobre câncer de próstata. Rev Panam Salud Publica. 2019;42:e122. doi: https://doi.org/10.26633/RPSP.2018.122

11. Assis M, Santos MEST, Bernardino DCAM, et al. Elas estão ali! Um olhar para as trabalhadoras da limpeza de uma instituição de saúde In: 8º Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde [Internet]. 2019 set 26-30; João Pessoa (PB). Campinas (SP): Galoá; 2019 [acesso 2022 set 22]. Disponível em: https://proceedings.science/8o-cbcshs/papers/elas-estao-ali--um-olhar-para-as-trabalhadoras-da-limpeza-de-uma-instituicao-de-saude

12. Araújo IS. Mercado simbólico: um modelo de comunicação para políticas públicas. Interface (Botucatu). 2004;8(14):165-78. doi: https://doi.org/10.1590/S1414-32832004000100010

13. Bortolon PC. A alegria de estarmos juntos: comunicação alegre e saúde na sociedade conectada [tese na Internet]. Rio de Janeiro: Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz; 2018 [acesso 2022 out 10]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/29816#collapseExample

14. Cardoso JM, Rocha RL. Interfaces e desafios comunicacionais do Sistema Único de Saúde. Ciên Saúde Colet. 2018;23(6):1871-9. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.01312018

 

 

 

Recebido em 5/7/2022

Aprovado em 3/10/2022

 

Editora-científica: Anke Bergmann. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1972-8777

 

 

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