RELATO DE CASO

 

Lipossarcoma Bem Diferenciado do Retroperitônio com Desdiferenciação e Múltiplas Recidivas: Relato de Caso

Well-Differentiated Liposarcoma of the Retroperitoneum with Dedifferentiation and Multiple Recurrences: Case Report

Liposarcoma Bien Diferenciado de Retroperitoneo con Desdiferenciación y Múltiples Recurrencias: Informe de Caso

 

 

doi: https://doi.org/10.32635/2176-9745.RBC.2023v69n3. 3626

 

Ivna Silva Gonçalves1; Davi Teixeira de Macêdo2; Iasmin Maria Rodrigues Saldanha3; Lívia Fernandes e Silva4; Paulo Henrique Silva Nunes5; Gunter Gerson6; Marcelo Leite Vieira Costa7; Irapuan Teles de Araújo Filho8

 

1Instituto do Câncer do Ceará (ICC), Hospital Haroldo Juaçaba (HHJ). Fortaleza (CE), Brasil. E-mail: ivnasg@gmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1144-4614

2-5Universidade Federal do Ceará (UFC), Faculdade de Medicina. Fortaleza (CE), Brasil. E-mails: davitm23@gmail.com; iasminsaldanha14@gmail.com; fernandesliviam25@alu.ufc.br; henriquedepalhano@gmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-4193-7700; Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-3719-8175; Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-2035-2287; Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-9591-1012

6-8UFC, Hospital Universitário Walter Cantídio. Fortaleza (CE), Brasil. E-mails: gunter_gerson@yahoo.com.br; marcelolvcosta@gmail.com; irapuan42@gmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0001-9054-253X; Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1343-4292; Orcid iD: https://orcid.org/0000-0001-8935-7994

 

Endereço para correspondência: Ivna Silva Gonçalves. Rua Papi Júnior, 1222 – Rodolfo Teófilo. Fortaleza (CE), Brasil. CEP 60430-230. E-mail: ivnasg@gmail.com

 

 

RESUMO

Introdução: Os lipossarcomas retroperitoneais são neoplasias mesenquimais raras, sendo mais comuns os bem diferenciados e os desdiferenciados. O subtipo bem diferenciado pode sofrer desdiferenciação para tumores de maior grau. São neoplasias difíceis de tratar cirurgicamente, pois apresentam altas taxas de recorrência local, alguns subtipos podem metastizar e são pouco sensíveis à radioterapia e à quimioterapia. Relato do caso: Paciente feminina, 45 anos, apresentou dor abdominal e massa abdominal palpável em 2017. Foi submetida à ressecção de lipossarcoma bem diferenciado de retroperitônio, sem intercorrências. Em 2020, manifestou dor abdominal e perda ponderal. A tomografia mostrou múltiplas massas volumosas abdominais, com biópsia sugestiva de lipossarcoma desdiferenciado. Foi submetida à radioterapia neoadjuvante e, em seguida, à ressecção cirúrgica das massas e ileocolectomia direita. Em 2022, apresentou quadro sugestivo de obstrução intestinal, sendo submetida à laparotomia que evidenciou intenso bloqueio de alças intestinais, fístula duodenal, tumor retroperitonial e peritonite fecal. Procedeu-se à ressecção de neoplasia retroperitoneal, ileostomia e rafia de fístula. O histopatológico mostrou lipossarcoma desdiferenciado recidivado. A paciente evoluiu com complicações operatórias e infecciosas, necessitando de cuidados intensivos e antibioticoterapia. Após melhora clínica, recebeu alta com dieta enteral e segue em acompanhamento ambulatorial. Conclusão: O lipossarcoma de retroperitônio pode sofrer desdiferenciação, recidivas multifocais e múltiplas recorrências, necessitando de várias abordagens cirúrgicas, o que aumenta a morbidade e o risco de complicações. A cirurgia com margens amplas continua sendo a principal modalidade terapêutica.

Palavras-chave: lipossarcoma; neoplasias retroperitoneais; recidiva; desdiferenciação celular; oncologia cirúrgica.

 

 

ABSTRACT

Introduction: Retroperitoneal liposarcomas are rare mesenchymal neoplasms, with well-differentiated and dedifferentiated liposarcomas being most common. The well differentiated subtype can undergo dedifferentiation to higher grade tumors. These are difficult neoplasms to treat surgically because they have high rates of local recurrence, some subtypes can metastasize, and are poorly responsive to radiotherapy and chemotherapy. Case report: Female patient, 45 years old, presented abdominal pain and palpable abdominal mass in 2017. She underwent resection of well-differentiated liposarcoma of the retroperitoneum, without intercurrences. In 2020, she manifested abdominal pain and weight loss. Tomography showed multiple voluminous abdominal masses, with biopsy suggestive of dedifferentiated liposarcoma. The patient was submitted to neoadjuvant radiotherapy, followed by surgical resection of the masses and right ileocolectomy. In 2022, she presented symptoms suggestive of intestinal obstruction, and underwent laparotomy that revealed intense blockage of intestinal loops, duodenal fistula, retroperitoneal tumor, and fecal peritonitis. Retroperitoneal neoplasm resection, ileostomy and fistula closure were performed. Histopathology showed relapsed dedifferentiated liposarcoma. The patient evolved with operative and infectious complications, requiring intensive care and antibiotic therapy. After clinical improvement, the patient was discharged with enteral diet and continues under outpatient follow-up. Conclusion: Retroperitoneal liposarcoma may undergo multifocal dedifferentiation and recurrence, requiring several surgical approaches, increasing morbidity and the risk of complications. Wide margin surgery remains the main therapeutic modality.

Key words: liposarcoma; retroperitoneal neoplasms; recurrence; cell dedifferentiation; surgical oncology.

 

 

RESUMEN

Introducción: Los liposarcomas retroperitoneales son neoplasias mesenquimatosas raras, siendo los más comunes los liposarcomas bien diferenciados y desdiferenciados. El subtipo bien diferenciado puede sufrir desdiferenciación hacia tumores de mayor grado. Estas neoplasias son difíciles de tratar quirúrgicamente porque presentan altas tasas de recidiva local, algunos subtipos pueden hacer metástasis y responden mal a la radioterapia y la quimioterapia. Informe del caso: Mujer de 45 años, en 2017 presenta dolor abdominal y masa abdominal palpable. Fue sometida a la resección de un liposarcoma bien diferenciado del retroperitoneo, sin intercurrencias. En 2020, manifestó dolor abdominal y pérdida de peso. La tomografía mostró múltiples masas abdominales voluminosas, con biopsia sugestiva de liposarcoma desdiferenciado. Fue sometida a radioterapia neoadyuvante y luego a resección quirúrgica de las masas y a ileocolectomía derecha. En 2022, presentó síntomas de obstrucción intestinal y fue sometida a una laparotomía que reveló obstrucción de las asas intestinales, fístula duodenal, tumor retroperitoneal y peritonitis fecal. Se realizó la resección de la neoplasia retroperitoneal, la ileostomía y la fistulización. La histopatología mostró un liposarcoma desdiferenciado. La paciente evolucionó con complicaciones operatorias e infecciosas, requiriendo cuidados intensivos y terapia antibiótica. Tras la mejora clínica, la paciente fue dada de alta con dieta enteral y está en seguimiento. Conclusión: El liposarcoma retroperitoneal puede sufrir desdiferenciación multifocal y recurrencia, requiriendo varios a tratamientos quirúrgicos, aumentando la morbilidad y el riesgo de complicaciones. La cirugía con márgenes amplios sigue siendo la terapia principal.

Palabras clave: liposarcoma; neoplasias retroperitoneales; recurrencia; desdiferenciación celular; oncología quirúrgica.

 

 

INTRODUÇÃO

Os sarcomas de partes moles (SPM) são neoplasias mesenquimais raras e representam aproximadamente 1% de todas as neoplasias malignas diagnosticadas em adultos1. Cerca de 10-15% dos SPM surgem no retroperitônio, sendo o lipossarcoma a variante mais comum, equivalente a 20% de todos os SPM e mais de 50% dos sarcomas de retroperitônio2. Com uma incidência aproximada de 0,6 casos por 100 mil pessoas a cada ano, os lipossarcomas são tumores originários de precursores mesenquimais multipotentes primitivos e podem surgir em qualquer parte do corpo. O retroperitônio é o segundo local mais comum, depois apenas das extremidades3-5.

 

Histologicamente, os lipossarcomas são classificados em cinco tipos: 1) bem diferenciado; 2) desdiferenciado; 3) mixoide; 4) células redondas; e 5) pleomórfico. Além disso, podem ser classificados de acordo com o grau – alto, intermediário e baixo –, que possui forte relação com a história natural do tumor, e com a resposta à quimioterapia na doença avançada. Cada subtipo possui comportamento clínico e história natural distintos, necessitando de abordagem individualizada3.

 

Os lipossarcomas retroperitoneais são tumores difíceis de tratar cirurgicamente, pois apresentam altas taxas de recorrência local, alguns subtipos podem metastizar e são pouco sensíveis à radioterapia e à quimioterapia4,6. Entre 60-80% dos pacientes apresentam massa abdominal palpável, e metade, dor abdominal. Como o retroperitônio é um espaço profundo e expansível, os tumores de crescimento lento, como o lipossarcoma, geralmente não causam sintomas rapidamente e podem crescer por longos períodos, sendo diagnosticados tardiamente quando exercem efeitos compressivos em órgãos abdominais. Ao diagnóstico, 94% desses tumores apresentam diâmetro superior a 5 cm e 60% superior a 10 cm2.

 

Este estudo tem por objetivo relatar um caso de lipossarcoma bem diferenciado (LBD) de retroperitônio com desdiferenciação e múltiplas recidivas, sendo aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Walter Cantídio sob o número do parecer: 5.771.820 (CAAE: 64639122.5.0000.5045) em atendimento à Resolução 466/127 do Conselho Nacional de Saúde para pesquisas com seres humanos.

 

RELATO DO CASO

Paciente feminina, 45 anos, negra, agricultora. Em 2017, apresentou dores de moderada intensidade em hipocôndrio esquerdo, em cólica e intermitentes. Após cinco meses, notou massa palpável em hipocôndrio e flanco esquerdos, e mudança do padrão da dor para "pontadas". A tomografia computadorizada (TC) de abdome evidenciou uma massa heterogênea, medindo 18 x 15 x 13 cm, com calcificações grosseiras. Em novembro de 2017, realizou-se laparotomia, a qual mostrou volumosa tumoração de retroperitônio à esquerda, deslocando medialmente o cólon esquerdo e posteromedialmente o rim esquerdo. Ausência de sarcomatose ou metástase hepática. Realizou-se ressecção do tumor e da fáscia anterior da cápsula renal, com preservação do cólon, rim e ureter esquerdos. A biópsia revelou LBD de baixo grau do retroperitônio (Figura 1).

 

Mapa com linhas pretas em fundo branco

Descrição gerada com alta confiança

Figura 1. (A) Lipossarcoma bem diferenciado que exibe diferenciação adipocítica com eventuais células atípicas de núcleos hipercrômicos, além de lipoblastos associados. Hematoxilina e eosina, aumento de 200×; (B) Lipossarcoma bem diferenciado com destaque para a presença de lipoblastos (seta). Hematoxilina e eosina, aumento de 200×

 

 

Em maio de 2020, após perda de seguimento ambulatorial por dois anos, a paciente apresentou dor abdominal à esquerda, epigastralgia, constipação, adinamia e perda ponderal de 8 kg. Ao exame, mostrou massa abdominal endurecida extensa e de grande tamanho que ocupava praticamente todos os quadrantes do abdome. A TC abdominal evidenciou volumosa formação cística heterogênea com áreas sólidas, septações e calcificações localizada na cavidade pélvica, com predomínio mediano e paramediano esquerdo, estendendo-se até a projeção do epigastro. Foi submetida à laparotomia para biópsia incisional em junho de 2020 com histopatológico compatível com lipossarcoma mixoide (grau I). No entanto, diante da história clínica, foi considerada como principal hipótese a desdiferenciação do LBD prévio. A paciente foi encaminhada para a oncologia clínica que indicou a realização de radioterapia neoadjuvante para maximizar a possibilidade de controle local.

 

Em setembro de 2020, após completar os ciclos de radioterapia, a paciente apresentou redução considerável da massa tumoral, a qual se converteu em quatro tumorações, duas em cavidade peritoneal e duas em retroperitônio. Em seguida, foi submetida à ressecção cirúrgica de volumosas massas sólido-císticas: a primeira de 12 x 12 cm, localizada abaixo do estômago e aderida ao mesocólon de cólon transverso; a segunda, lesão de 6 x 6 cm adjacente ao rim esquerdo, sem aderências a estruturas nobres; a terceira, de cerca de 14 x 14 cm, acometendo alça de delgado; e a maior lesão, em retroperitônio, posterior à retrocavidade dos epíplons, medindo aproximadamente 20 x 20 cm, aderida à veia mesentérica inferior.

 

A biópsia das lesões de retroperitônio evidenciou lipossarcoma desdiferenciado (LDD) (Figura 2). A TC realizada uma semana após a cirurgia revelou uma volumosa lesão expansiva sólido-cística junto à região anexial direita, que não foi visualizada na laparotomia anterior. Foi então submetida a um procedimento de ileocolectomia direita para ressecção da lesão, que media 15 x 15 cm, além de implante em parede abdominal. A biópsia da peça cirúrgica evidenciou LDD recidivado em mesentério.

 

Uma imagem contendo edifício

Descrição gerada com muito alta confiança

Figura 2. (A) Lipossarcoma desdiferenciado com destaque para a transição entre áreas adipocíticas bem diferenciadas (setas pretas) e áreas de aspecto sarcomatoso (seta vermelha). Hematoxilina e eosina, aumento de 100×; (B) Lipossarcoma desdiferenciado com destaque de área sarcomatosa com células anaplásicas, disposição em feixes e frequentes figuras de mitose (seta preta). Hematoxilina e eosina, aumento de 200×

 

 

Em agosto de 2022, após nova perda de seguimento, a paciente apresentou febre, vômitos, distensão e dor abdominal, evoluindo com obstrução intestinal. A TC de abdome evidenciou distensão de alças de delgado com lesão expansiva em hipocôndrio direito. Foi submetida à laparotomia, a qual evidenciou intenso bloqueio de alças intestinais, fístula de ileocólon transverso com duodeno, tumor retroperitonial em área de anastomose prévia e intensa peritonite fecal. Procedeu-se à ressecção de neoplasia retroperitoneal, ileostomia e rafia de fístula duodenal. O histopatológico mostrou LDD recidivado (Figura 3). Uma semana depois, evoluiu com desabamento de ileostomia e infecção sem melhora com antibioticoterapia.

 

Foi submetida novamente à laparotomia, a qual mostrou grande quantidade de líquido entérico/purulento e aderências em todo o abdome, desabamento de ileostomia, trajeto fistuloso no duodeno e múltiplas coleções abdominais. Procedeu-se à realização de nova ileostomia. Dez dias após o procedimento, a paciente apresentou diminuição do débito da ileostomia, associada à ferida operatória contaminada e à grande quantidade de secreção entérica drenada da cavidade.

 

Realizou-se nova laparotomia que identificou intensos bloqueios entre alças sem possibilidades de acesso cirúrgico, coleção pélvica com aspecto entérico e ileostomia sem sinais de desabamento. Foi realizada lavagem da cavidade, aposição de dreno na topografia da coleção pélvica e antibioticoterapia.

 

A paciente evoluiu com choque séptico, necessitando de cuidados intensivos e antibioticoterapia. Após melhora clínica, tentou-se iniciar dieta enteral, pois estava em nutrição parenteral total desde a última cirurgia. Teve boa aceitação da dieta, entretanto, quando se tentou iniciá-la por via oral, houve sucessivos episódios de vômitos, sugestivos de gastroparesia. Recebeu alta com dieta enteral plena após 87 dias de internação e segue em acompanhamento ambulatorial.

 

Uma imagem contendo edifício, comida, tijolo

Descrição gerada com muito alta confiança

Figura 3. (A) Lipossarcoma desdiferenciado de alto grau de aspecto sarcomatoso difuso. Hematoxilina e eosina, aumento de 200×; (B) Lipossarcoma desdiferenciado de alto grau com destaque para presença de elemento heterólogo osteoide imaturo (seta preta). Hematoxilina e eosina, aumento de 200×

 

 

DISCUSSÃO

No presente trabalho, o resultado histopatológico da biópsia incisional de 2020 mostrou lipossarcoma mixoide, entretanto, lipossarcomas mixoides primários ocorrem majoritariamente nos membros inferiores e são extremamente raros no retroperitônio, podendo ser considerados “inexistentes” nesse espaço. Desse modo, diagnósticos de lipossarcoma mixoide retroperitoneal devem ser considerados suspeitos, pois a maioria desses casos é de lipossarcomas mixoides metastáticos ou LBD/LDD com alterações estromais mixoides2.

 

No retroperitônio, os subtipos mais comuns de lipossarcomas são o LBD e o LDD2,8. O LBD é um tumor adipocitário de baixo grau, localmente agressivo, que raramente causa metástase, entretanto, possui recorrências locais repetidas entre 40-60% mesmo com ressecções cirúrgicas completas. A mortalidade específica da doença é secundária à doença local não controlada. As taxas de sobrevida global são de 80% em cinco anos e 50% em dez anos6,8. Além disso, 20% dos LBD sofrem desdiferenciação para tumores de maior grau, em média, em oito anos4.

 

O LDD é um sarcoma de alto grau mais agressivo com capacidade metastática. Geralmente, mostra uma transição abrupta entre áreas bem diferenciadas e desdiferenciadas na histologia9, mas pode ser visto sem quaisquer componentes bem diferenciados identificáveis5. Aproximadamente 90% dos LDD surgem de novo e 10% se desenvolvem como recorrência de um LDD ou LBD previamente ressecado, como no presente estudo. Em 5-10% dos casos, o LDD sofre diferenciação heterogênea com elementos miogênicos, osteossarcomatosos e condrossarcomatosos. Sua incidência anual é inferior a 0,1 a cada um milhão9. E as taxas de recorrência local e a metástase a distância variam de 40-80% e 15-20%, respectivamente. Os pulmões são o local mais comum de metástase. As taxas de sobrevida livre de doença do LDD são mais baixas do que as do LBD e variam de 44-53%6.

 

Os mecanismos responsáveis pela progressão do LBD para LDD são complexos e não totalmente conhecidos2. Ambos os subtipos surgem de um evento de fragmentação do cromossomo 12q provocando rearranjos genômicos que levam à formação de cromossomos supranumerários em anel e amplificação do segmento 12q13-15 e, consequentemente, dos genes MDM2, FRS2, CDK4, HMGA2, YEATS2 e NAV31. No processo de desdiferenciação, o dano contínuo ao DNA leva ao acúmulo de aberrações cromossômicas mais complexas, ocasionando aumento do grau, da celularidade e da agressividade dos tumores, o que muda completamente sua aparência histológica original4. Desse modo, o termo “desdiferenciação tumoral” caracteriza “a progressão morfológica de um tumor de baixo grau para uma neoplasia menos diferenciada com comportamento mais agressivo”2.

 

A cirurgia é a base do tratamento do lipossarcoma retroperitoneal não metastático. Sempre que possível, deve-se escolher a ressecção macroscopicamente completa, muitas vezes exigindo a remoção em bloco de estruturas adjacentes2. A preservação de órgãos específicos deve ser considerada individualmente com base nas características do tumor e do paciente, ponderando o controle locorregional contra a disfunção em longo prazo8.

 

O número de tumores localmente recorrentes também pode afetar o manejo. A primeira recorrência da doença pode ser multifocal em até 47-57% dos pacientes. As taxas de sobrevida global em cinco anos foram de 58-20% para doença unifocal e multifocal, respectivamente6. Nesse contexto, é imperativo realizar inspeção e palpação rigorosa de todos os órgãos abdominais no intraoperatório para evitar a não visualização de possíveis focos de doença, como ocorreu na cirurgia de setembro de 2020 do presente caso.

 

A doença recorrente raramente é curável, e a cirurgia deve ser vista como medida temporária e reservada para casos em que se prevê um controle significativo da doença. Pacientes com mais de sete lesões tiveram sobrevida global em cinco anos de apenas 7%. Este resultado foi semelhante ao dos pacientes submetidos à ressecção grosseira incompleta. Pacientes com tumores que cresceram mais rápido do que 0,9 cm por mês desde a ressecção macroscópica completa anterior tiveram sobrevida média específica da doença de apenas 13 meses. Pacientes com recorrência rápida e doença multifocal são geralmente considerados para terapias sistêmicas, e a intervenção cirúrgica é reservada para paliação dos sintomas10. Mesmo apresentando múltiplas recidivas, as lesões descritas neste relato foram consideradas cirurgicamente abordáveis. A terapia sistêmica foi reservada para uma possível necessidade de paliação em lesões irressecáveis futuras.

 

O lipossarcoma é moderadamente quimiossensível. As terapias neoadjuvantes são mais aplicáveis no cenário de doença avançada, especialmente se um componente de LDD estiver presente8. O tratamento de primeira linha para LDD avançado é feito à base de antraciclina9. Em pacientes com doença resistente, gencitabina, docetaxel, trabectedina e pazopanibe foram estabelecidos como opções de segunda e terceira linhas2. A atuação da radioterapia para lipossarcomas retroperitoneais primários é controversa.

 

Estudos mostram melhora na taxa de controle local, mas esse impacto não é necessariamente visto na sobrevida livre de doença6. O estudo STRASS1 revelou uma tendência não significativa a favor da radioterapia pré-operatória em pacientes com lipossarcomas. Apesar disso, é importante lembrar que este estudo não foi desenhado para detectar diferenças no subgrupo de lipossarcomas. Portanto, o uso da radioterapia deve ser uma decisão individualizada1. No presente relato, a radioterapia pré-operatória apresentou resultados relevantes, possibilitando uma melhor abordagem cirúrgica das recidivas iniciais.

 

CONCLUSÃO 

O lipossarcoma de retroperitônio pode sofrer desdiferenciação, recidivas multifocais e múltiplas recorrências, necessitando de várias abordagens cirúrgicas, aumentando a morbidade e o risco de complicações. A cirurgia com margens amplas continua sendo a principal modalidade terapêutica, pois o papel da radioterapia e o da quimioterapia não são totalmente claros.

 

 

CONTRIBUIÇÕES

Todos os autores contribuíram substancialmente na concepção e/ou no planejamento do estudo; na obtenção, análise e interpretação dos dados; na redação e revisão crítica; e aprovaram a versão final a ser publicada.

 

 

DECLARAÇÃO DE CONFLITO DE INTERESSES

Nada a declarar.

 

 

FONTES DE FINANCIAMENTO

Não há.

 

 

REFERÊNCIAS

1. Haddox CL, Riedel RF. Recent advances in the understanding and management of liposarcoma. Fac Rev. 2021;10:1. doi: https://doi.org/10.12703/r/10-1

2. Matthyssens LE, Creytens D, Ceelen WP. Retroperitoneal liposarcoma: current insights in diagnosis and treatment. Front Surg. 2015;2:4. doi: https://doi.org/10.3389/fsurg.2015.00004

3. Chamberlain F, Benson C, Thway K, et al. Pharmacotherapy for liposarcoma: current and emerging synthetic treatments. Future Oncol. 2021;17(20):2659-70. doi: https://doi.org/10.2217/fon-2020-1092

4. Tyler R, Wanigasooriya K, Taniere P, et al. A review of retroperitoneal liposarcoma genomics. Cancer Treat Rev. 2020;86:102013. doi: https://doi.org/10.1016/j.ctrv.2020.102013

5. Mack T, Purgina B. Updates in pathology for retroperitoneal soft tissue sarcoma. Curr Oncol. 2022;29(9):6400-18. doi: https://doi.org/10.3390/curroncol29090504

6. Bagaria SP, Gabriel E, Mann GN. Multiply recurrent retroperitoneal liposarcoma. J Surg Oncol. 2018;117(1):62-8. doi: https://doi.org/10.1002/jso.24929

7. Conselho Nacional de Saúde (BR). Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2013 jun 13; Seção 1:59.

8. Mansfield SA, Pollock RE, Grignol VP. Surgery for abdominal well-differentiated liposarcoma. Curr Treat Options Oncol. 2018;19(1):1. doi: https://doi.org/10.1007/s11864-018-0520-6

9. Nishio J, Nakayama S, Nabeshima K, et al. Biology and management of dedifferentiated liposarcoma: state of the art and perspectives. J Clin Med. 2021;10(15):3230. doi: https://doi.org/10.3390/jcm10153230

10. Crago AM, Dickson MA. Liposarcoma: Multimodality Management and Future Targeted Therapies. Surg Oncol Clin N Am. 2016;25(4):761-73. doi: https://doi.org/10.1016/j.soc.2016.05.007

 

 

 

Recebido em 10/1/2023

Aprovado em 26/6/2023

 

Editora-científica: Anke Bergmann. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1972-8777

 

 

image001

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.

 

©2019 Revista Brasileira de Cancerologia | Instituto Nacional de Câncer | Ministério da Saúde