ARTIGO ORIGINAL

 

Rede de Saúde e Desospitalização: Desafios para a Integralidade do Cuidado em Saúde após a Alta Hospitalar

Health and De-hospitalization Network: Challenges for Comprehensive Health Care after Hospital Discharge

Red de Salud y Deshospitalización: Desafíos para la Atención Integral en Salud después del Alta Hospitalaria

 

 

doi: https://doi.org/10.32635/2176-9745.RBC.2023v69n3.3923

 

Carolina Cardoso Tricarico1; Erika Schreider2; Ana Raquel de Mello Chaves3

 

1-3Instituto Nacional de Câncer (INCA), Hospital do Câncer I (HCI). Rio de Janeiro (RJ), Brasil.

1E-mail: carolina_tricarico@hotmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0009-0005-0833-5926

2E-mail: eschreider@inca.gov.br. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0001-5480-175X

3E-mail: achaves@inca.gov.br. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0003-2591-7707

 

Endereço para correspondência: Carolina Cardoso Tricarico. Rua Tiboim, 632 – Brás de Pina. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. CEP 21011-650. E-mail: carolina_tricarico@hotmail.com

 

 

RESUMO

Introdução: O presente artigo é parte integrante da pesquisa “Rede de Saúde e Oncologia: os desafios do acesso à atenção domiciliar e ao transporte sanitário na cidade do Rio de Janeiro”. Objetivo: Analisar o processo de articulação com a rede de saúde para os pacientes da clínica de neurocirurgia que residem na cidade do Rio de Janeiro e que necessitem do cuidado domiciliar e/ou transporte sanitário. Método: Utilizou-se a estratégia metodológica de estudo de caso, elaborada por pesquisa exploratória e qualitativa. Trata-se de estudo de caso único que contempla o debate teórico sobre rede de saúde, desospitalização e integralidade do cuidado, a partir de duas questões-chave: atenção domiciliar e transporte para acesso à saúde. Resultados: A partir de análise crítica, verificaram-se fragilidades no processo de articulação com a rede de saúde no âmbito da atenção domiciliar e no transporte para acesso aos serviços de saúde. Observaram-se morosidade para acesso aos serviços, tendência à judicialização para acesso ao transporte, dificuldade no processo de desospitalização para efetivação da continuidade do cuidado e responsabilização da família. Conclusão: Por meio de caso único, foi possível articular a teoria ao cotidiano da cuidadora e usuária, identificando fragilidades e potencialidades na rede de saúde. Destaca-se a importância de estudos futuros sobre essa temática.

Palavras-chave: serviços de saúde; integralidade em saúde; serviços de assistência domiciliar.

 

 

ABSTRACT

Introduction: This article is part of the research “Health and Oncology Network: the challenges of access to home care and health transport in the city of Rio de Janeiro”. Objective: To analyze the articulation process with the health network for patients at the neurosurgery clinic who live in the city of Rio de Janeiro and who need home care and/or health transportation services. Method: Based on exploratory and qualitative research, a case study methodological strategy was utilized. This is a single case study addressing the theoretical debate on the health network, de-hospitalization and comprehensive care, according to two key issues: home care and transportation for access to health. Results: After critical analysis, weaknesses were found in the articulation process with the health network in the context of home care and transportation for access to health. Delay in accessing services, a tendency to judicialization to access transportation, difficulty in the de-hospitalization process to carry out the continuity of the care and accountability of the family were found. Conclusion: Through a single case, it was possible to articulate the theory to the daily life of the caregiver and user, identifying weaknesses and strengths in the health network. The importance of future studies on this topic is highlighted.

Key word: health services; integrality in health; home care services.

 

 

RESUMEN

Introducción: Este artículo es parte integral de la investigación “Red de Salud y Oncología: los desafíos del acceso a la atención domiciliaria y al transporte sanitario en la ciudad de Río de Janeiro”. Objetivo: Analizar el proceso de articulación con la red de salud de los pacientes de la clínica de neurocirugía que viven en la ciudad de Río de Janeiro y que necesitan atención domiciliaria y/o transporte sanitario. Método: Se utilizó una estrategia metodológica de estudio de caso, basada en una investigación exploratoria y cualitativa. Se trata de un estudio de caso único que contempla el debate teórico sobre la red de salud, la deshospitalización y la atención integral, a partir de dos ejes fundamentales: la atención domiciliaria y el transporte para el acceso a la salud. Resultados: A partir de un análisis crítico se encontraron debilidades en el proceso de articulación con la red de salud en el contexto de atención domiciliaria y transporte para el acceso a la salud. Hubo retraso en el acceso a los servicios, tendencia a la judicialización para el acceso al transporte, dificultad en el proceso de deshospitalización para realizar la continuidad del cuidado y la rendición de cuentas de la familia. Conclusión: A través de un caso único, fue posible articular la teoría con el cotidiano del cuidador y usuario, identificando debilidades y fortalezas en la red de salud. Se destaca la importancia de futuros estudios sobre este tema.

Palabras clave: servicios de salud; integralidad en salud; servicios de atención de salud a domicilio.

 

 

INTRODUÇÃO

A motivação central para elaboração deste estudo advém da aproximação com a clínica de neurocirurgia, em residência multiprofissional, em hospital de referência em oncologia, que traz particularidades no período pós-alta que impactam o processo de desospitalização e acesso à rede de saúde pelos usuários. Pacientes que desenvolvem dificuldade de locomoção como sequela, em alguns casos, dependem da garantia da atenção domiciliar e do transporte sanitário para o acesso à saúde como política pública. Contudo, a demanda concreta de cuidado integral apresenta no cotidiano profissional inúmeros desafios, o que desperta inquietação1-4.

 

O presente artigo, parte integrante da pesquisa “Rede de Saúde e Oncologia: os desafios do acesso à atenção domiciliar e ao transporte sanitário na cidade do Rio de Janeiro”, tem como objetivo analisar o processo de articulação com a rede de saúde para os pacientes da clínica de neurocirurgia que residam na cidade do Rio de Janeiro e que necessitam do cuidado domiciliar e/ou transporte sanitário. Foi desenvolvido a partir de estudo de caso único por meio de revisão bibliográfica, análise de prontuário de paciente mulher, acompanhada pela clínica de neurocirurgia, e entrevista semiestruturada com a cuidadora de referência.

 

MÉTODO

A pesquisa se constituiu de forma exploratória e qualitativa se debruçando no olhar mais profundo das relações e processos dentro do campo da saúde. Ou seja, uma pesquisa que “trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos [...]” conforme define Minayo5.

 

Utilizou-se a estratégia metodológica de estudo de caso definido por Yin6 como uma: “investigação empírica que investiga um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto da vida real, especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não estão claramente definidos”.

 

Resgatando também a definição de outros autores, Gil7 afirma que o estudo de caso “consiste no estudo profundo e exaustivo de um ou poucos objetos, de maneira que permita seu amplo e detalhado conhecimento”, e Mendonça8 descreve que “o estudo de caso consiste em uma investigação minuciosa de uma ou mais organizações ou grupos, visando prover uma análise do conjunto e dos processos envolvidos no fato analisado”.

 

Nesta pesquisa, escolheu-se um caso único que dialoga com o debate teórico da temática estudada, entendendo que este possibilita “confirmar, contestar ou estender a teoria”6. Por meio do estudo de caso, empenha-se em articular a totalidade da situação estudada, observando as múltiplas dimensões que abarcam o caso e, a partir disso, produzir uma análise crítica sobre ele.

 

Atentando para o necessário rigor metodológico, foram utilizadas as técnicas: 1) pesquisa bibliográfica em banco de dados de publicações em saúde – Biblioteca Virtual da Saúde (BVS) e Scientific Electronic Library Online (SciELO), tendo como palavras-chave: desospitalização, rede de atenção à saúde, transporte sanitário e atenção domiciliar; 2) análise documental, de forma retrospectiva, do prontuário da usuária; 3) entrevista semiestruturada com cuidadora de referência, de forma prospectiva, “fonte essencial de evidências para os estudos de caso”6.

 

Foi utilizada a técnica de análise de conteúdo, conforme Minayo9, na busca em “ultrapassar o alcance meramente descritivo da mensagem, para atingir, mediante inferência, uma interpretação mais profunda” a partir de indicadores qualitativos ou quantitativos obtidos durante o processo de recolhimento de dados por meio de entrevista semiestruturada e/ou análise de prontuário. Posteriormente, realizou-se a categorização da dados, ou seja, a classificação dos elementos que constituem um conjunto de grupos com critérios previamente definidos.

 

Este estudo apresenta como referencial teórico-metodológico o materialismo-dialético, compreendido a partir de Ianni10 como método de abordagem de apreensão do real, a partir do movimento dialético, o qual requer uma reflexão crítica profunda e complexa “que implica em desvendar do real que no caso é o modo capitalista de produção, dimensões, significados, tendências, que definitivamente não são dadas no nível dos acontecimentos vistos como fatos empíricos”.

 

A pesquisa foi desenvolvida em um hospital de referência em oncologia na cidade do Rio de Janeiro, com análise retrospectiva do primeiro semestre de 2022, para escolha dos participantes, seguindo os seguintes critérios: inclusão – pessoa de referência no cuidado do paciente, sendo este último residente no município do Rio de Janeiro, com idade igual ou superior a 18 anos, que precisou ser internado e recebeu alta hospitalar dentro do período analisado, acompanhado na clínica de neurocirurgia do hospital de referência estudado, que apresenta restrição ou dificuldade de locomoção, necessitando de encaminhamento para atenção domiciliar e transporte sanitário; e exclusão paciente encaminhado para a unidade de cuidados paliativos, pacientes pediátricos e os que residem fora do município do Rio de Janeiro.

 

Foram observados três casos que contemplavam o debate teórico envolvido, se adequando ao estudo de caso. Destes, um optou por não participar da pesquisa; o segundo optou por não dar seguimento aos encaminhamentos necessários para atenção domiciliar e transporte sanitário, não contemplando o objetivo deste estudo; e o terceiro foi o caso escolhido. Dessa forma, a participante, de quem se obteve voluntariamente consentimento livre e esclarecido, é uma cuidadora idosa, do sexo feminino, mãe da paciente acompanhada pela clínica de neurocirurgia, residente do município do Rio de Janeiro, que apresentou restrição e dificuldade de locomoção durante e após internação hospitalar, sendo necessária a articulação com atenção domiciliar e transporte para acesso aos serviços de saúde visando à continuidade do cuidado, atendendo assim aos critérios de inclusão e exclusão delimitados no projeto de pesquisa. Os dados recolhidos respeitam e obedecem ao sigilo, ou seja, foram anonimizados. A pesquisa somente foi iniciada após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) sob o número de parecer 5837966 (CAAE 59564222.5.0000.5274), respeitando os princípios éticos da Resolução CNS/MS n.º 510/201611.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Paciente, sexo feminino, 51 anos, branca, com ensino médio completo, vínculo previdenciário (vendedora autônoma), residente no bairro de Realengo, no município do Rio de Janeiro, diagnosticada com meningioma grau I, tumor benigno, que será chamada de Violeta, de modo a preservar sua identidade, bem como sua mãe, nomeada Margarida. A paciente apresenta rede de apoio restrita. Após alta hospitalar, passou a residir com sua mãe em local que apresentava limitações para seu quadro clínico, por se tratar de apartamento em segundo andar, sem elevador. Margarida, sua referência no cuidado, é idosa, 74 anos, ensino fundamental incompleto e aposentada. A renda familiar foi impactada, pois Violeta não obteve auxílio por incapacidade temporária (benefício previdenciário de afastamento de atividades laborativas) de forma imediata – cerca de quatro meses para deferimento do benefício e lidou com grandes gastos de transporte para unidade hospitalar.

 

Segundo relatório médico, a paciente apresentou hemiparesia, déficit de iniciação e repetição de linguagem, e afasia de condução, foi submetida à microcirurgia para tumores intracranianos (profundos) de longa duração, com ocorrência de sangramento e dificuldade técnica de ressecção do tumor, com ressecção incompleta e manipulação importante, resultando em déficit motor e afasia. Durante internação, a equipe de enfermaria avaliou a necessidade de permanência de acompanhante em período integral. O suporte de outros familiares e/ou amigos ocorreu esporadicamente, sendo impedidos por questões relacionadas ao trabalho e ao cuidado de terceiros, bem como por condições de acesso e cuidado em razão da situação social e rede de apoio da usuária, acarretando sobrecarga para Margarida. Registra-se, em internação hospitalar, no período pós-cirúrgico, que Margarida apresentou questionamentos à equipe sobre o cuidado em domicílio. Foram realizadas solicitações prévias de laudos médicos necessários para encaminhamentos orientados pelo serviço social, porém, foram disponibilizados apenas no momento da alta hospitalar. Observou-se, segundo relatórios em prontuário, que houve planejamento de atendimento conjunto pontual em virtude da dificuldade de compreensão de familiar, com objetivo de orientações sobre plano de cuidado e desospitalização. Em análise de prontuário, foi verificado que a paciente foi atendida por profissionais de medicina, enfermagem, serviço social, psicologia, nutrição, fonoaudiologia, fisioterapia e odontologia. No serviço social, a conduta tomada foi: orientações e acompanhamento para resolução da situação previdenciária, curatela, transporte sanitário via judicialização, atenção domiciliar pela atenção básica, encaminhamento ao setor de voluntariado para empréstimos de recursos necessários ao cuidado da paciente (cadeira de rodas e higiênica, fraldas, cama hospitalar, bolsa de alimentos), orientações e contatos telefônicos para elaboração de articulação com a rede de serviços (Atenção Básica de Saúde, Defensoria Pública, entre outros), acompanhamento e busca pela ampliação da rede de apoio social-familiar.

 

Nas últimas décadas, percebe-se uma mudança dos perfis demográfico e epidemiológico, com envelhecimento populacional e aumento de condições e doenças crônicas que, segundo dados atuais12, são responsáveis por mais da metade do total de mortes no Brasil. No caso estudado, a paciente foi diagnosticada com meningioma grau I, tumor do Sistema Nervoso Central (SNC), de característica benigna e crescimento lento13. Segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA)14, “os tumores cerebrais e outros tumores primários do SNC são um grupo heterogêneo de tumores, malignos e não malignos, apresentando diferentes sinais e sintomas, com prognóstico variável”. A estimativa, para cada ano do triênio 2023-2025, é de 11.490 novos casos no Brasil. No ano de 2020, foram notificados no território brasileiro 9.355 óbitos por câncer do SNC14. O tratamento é complexo e pode trazer impactos nas condições de vida dos pacientes e, em certos casos, resultar em sequelas que influenciam na locomoção, orientação, comunicação e sentidos, trazendo assim demandas específicas de cuidado que requisitam, ao sistema de saúde, o cuidado integral e continuado, o que se traduz no importante planejamento em todos os níveis de atenção do Sistema Único de Saúde (SUS). Dessa forma, o processo de desospitalização deve ser construído coletivamente “considerando os aspectos técnico-científicos profissionais e as necessidades do usuário e da família”15.

 

De acordo com a Portaria n.º 3.390/201316, que institui a Política Nacional de Atenção Hospitalar, a alta hospitalar se constitui como “transferência do cuidado” a qual requer o reforço da autonomia dos sujeitos com base na socialização de informações, junto ao paciente e seus familiares, sobre o seguimento do tratamento, bem como a necessidade de articulação com a rede de serviços de saúde para continuidade desse cuidado e efetivação de “mecanismos de desospitalização, visando alternativas às práticas hospitalares, como as de cuidados domiciliares”.

 

A partir do viés crítico deste estudo, é fundamental compreender a alta hospitalar como resultado de um processo de elaboração e planejamento continuado do cuidado, durante toda a trajetória de internação hospitalar. Assim, o caso estudado apresenta, já no momento de primeira internação da paciente, aspectos que vão perpassar o processo de alta hospitalar, como restrição ao leito, ausência de comunicação verbal inteligível, dependência de cuidados de outrem. Além destes, há também a necessidade de entendimento sobre cuidados essenciais apontados e expressados em sentimento de insegurança no cuidado domiciliar por familiar-cuidadora perante as mudanças do quadro da paciente. Foi identificada dificuldade da cuidadora em absorver as informações em pouco tempo. As inseguranças se expressaram principalmente em relação ao uso da gastrostomia (GTT), presentes na fala:

 

Eu só fiquei assim preocupada [...] a GTT. Aí eu achei muito difícil [...] um dia ele tava até assim, meio… parece que inflamadozinho [...] quando ela veio, eu digo: ‘Pelo amor de Deus, eu não quero que ela vá com esse bichinho não porque eu não sei cuidar disso não’.

 

Em face da dificuldade de compreensão da cuidadora, percebe-se que não houve um movimento de articulação (equipe, familiares e usuária) planejada e organizada, mas sim pontual diante de uma necessidade específica. Observa-se, no relato, que a habilidade de cuidados específicos é cobrada à cuidadora de forma naturalizada, sem considerar a falta de habilidade como um limite ao cuidado no domicílio. Na fala citada, a dificuldade da cuidadora em relação aos cuidados com a GTT, à qual refere como “bichinho”, expressa limitação diante das informações e orientações fornecidas.

 

Outro aspecto em relação direta ao processo de planejamento de alta e transição de cuidados em domicílio é a questão socioeconômica. A renda familiar insuficiente e comprometida, pela demora da liberação do auxílio-doença da usuária, trouxe impactos e preocupações com o planejamento do cuidado, como demostrado por Margarida:

 

Olha, era meio difícil porque ela ainda não tinha recebido o dinheiro que ela se encostou, né, mas aí eu sempre pedia ao meu filho e eu tinha guardado um dinheirinho, aí pagava Uber [transporte pago por aplicativo] para vir […].

 

 Ante a falta de proteção social do Estado, principalmente em relação ao cuidador, os familiares são obrigados a criar estratégias para elaborar resoluções para os imprevistos. Dessa forma, observa-se a dificuldade apontada pela cuidadora relacionada à mobilidade urbana, presente nos obstáculos do deslocamento para acompanhamento da paciente, fazendo com que expresse desejo pelo retorno para casa apesar de todas as implicações que envolvem a dependência do cuidado. Ou seja, as dificuldades materiais e cotidianas, neste caso, impelem e sobressaem ao medo do desafio do cuidado em domicílio, como apresentado a seguir:

 

é difícil para mim, quando eu vinha de ônibus, eu ficava mais de duas horas de lá para cá, [...]. Eu já estava pedindo a Deus que ela fosse pra casa, para mim cuidar em casa. [...], com toda a luta, para mim foi melhor, depois que ela saiu.

 

Ressalta-se que essas questões refletem os atravessamentos sociais, políticos e econômicos na vida da usuária, a partir do olhar enquanto totalidade que implica a análise do processo social e biológico, no complexo processo de produção de saúde e doença, tomando como base teórica, a noção de determinação social na saúde17.

 

Kuntz et al.18 especificam alguns desses aspectos como a insegurança do cuidador em prestar o cuidado no domicílio e dificuldade em absorver diversas informações em curto período de tempo (principalmente na primeira alta hospitalar), questões socioeconômicas que impactam diretamente no cuidado, dificuldade de compreensão de cuidadores a respeito das orientações prestadas, falta de planejamento multiprofissional para disponibilizar as orientações necessárias e promover a transição do cuidado, com planejamento pontual em casos nos quais se verifica a dificuldade de compreensão da família. No cuidado em domicílio, esses fatores trazem desafios aos familiares/cuidadores que, por sua vez, não possuem suporte de políticas públicas para a garantia desse cuidado como categoria de direito.

 

O cuidado é defendido como categoria de direito por diferentes autores. Passos19 Mioto20 e Guimarães21 dialogam sobre a categoria cuidado, articulado à proteção social, à justiça social, entendendo-o como um princípio ético que deve conduzir a vida em sociedade. Faleiros22 apresenta uma análise crítica em relação ao cuidar, o autor entende o cuidado vinculado às necessidades históricas dos sujeitos, e articula o cuidado à noção de direito, na qual “o fundamento do cuidado são os direitos humanos, como norma universal da dignidade do ser humano”. Além disso, a sociedade capitalista reproduz valores de privação dos direitos dos sujeitos, reforçando o individualismo, a competitividade, e práticas burocráticas, pragmáticas e imediatistas. Nesse sentido, Faleiros22 afirma que a lógica do cuidado pode se pautar em um sentido diferente, questionando esses valores dominantes na sociabilidade do capital, “numa perspectiva crítica dessa sociedade, [...] mediação entre necessidades históricas e direitos, de forma concreta e democrática, [...] numa relação de escuta, de acolhida, de interpretação compartilhada da situação”22.

 

Assim, o cuidado como direito não ocorre somente pela atenção às demandas pontuais, requer um ponto de vista crítico ao atendimento das necessidades do ser social, na perspectiva de reprodução e transformação da realidade e do processo de sociabilidade.

 

Além disso, há um processo de responsabilização da família e a ausência do Estado expresso pela falta de políticas públicas voltadas para o cuidado que explanam o cenário neoliberal. O conceito de “familismo” define o grau de participação no suprimento das necessidades e de bem-estar social dos pacientes: a “família é responsabilizada pela proteção de seus membros, devendo arcar com a sobrevivência, assistência, cuidados, socialização, entre outras. Ao Estado caberia cuidar apenas das que faliram nessas funções e apresentam problemas diversos”23.

 

Aponta-se, no caso estudado, um cuidado que é efetivado pela mãe idosa da paciente, tendo em vista a rede social restrita apresentada, com pessoas que cuidam de outros ou são impossibilitados por motivos de trabalho e sustento da vida diária a auxiliá-la, restando um suporte, quando possível, de ajudas esporádicas de vizinhos e familiares. Sobre a organização do cuidado, Margarida relata:

 

O planejamento em casa, ninguém fez nenhum não, porque, primeiro que a minha família é pequenininha. O meu filho lá tem a família dele, não podia vir.

 

Nesse aspecto, a sobrecarga e a restrição da rede de cuidado se expressam pelas condições e circunstâncias envolvidas na organização família.

 

Eles [equipe] falaram que tinha que ter alguém para ajudar porque só eu não ia conseguir. [...] Aí até a minha neta disse que ia ajudar, mas a minha neta tem uma criancinha pequenininha [...] aí foi lá para a minha casa, aí apareceu vizinha que me ajudou, né? [...] Às vezes ia lá, ajudava a dar um banho, varria a minha casa, dava uma ajudazinha. Foi só isso mesmo, entendeu? E eu que fiquei lutando com tudo. [...] Não aguentava o tranco, é difícil.

 

Com relação ao papel de cuidador assumido pela pessoa idosa, Lemos24 afirma que isso ocorre na maioria das vezes pela circunstância e não pela escolha. Ou seja, a pessoa idosa é aquela que está “livre para o cuidado”, pois os demais necessitam continuar com suas rotinas de trabalho para que o sustento seja garantido. Para o autor, tal circunstância leva o cuidador idoso a “assumir um encargo sem a possibilidade de questionamento”24, situação expressa na fala de Margarida sobre a dificuldade de organizar o cuidado da usuária e da dificuldade de exercer esse papel sozinha. Dentro do aspecto geracional, o papel de cuidar assumido na velhice “vai implicar diretamente no cuidado que essas pessoas dedicam a si mesmas”24, negligenciando suas necessidades diárias e de saúde.

 

Além disso, há o afeto expresso pela cuidadora, a partir da fala “eu sou a mãe, eu vou cuidar”, que transpassa a questão de carinho e do acolhimento, e assume uma obrigação imposta a ela, por ser mãe e principalmente mulher, ressaltando a questão de gênero. Tal aspecto evidencia a dimensão de organização do cuidado, realizado pela mulher, diante da rede de apoio restrita e da tarefa que lhe é imputada, e faz com que outros pontos da vida desta sejam também afetados e alterados. A vida da cuidadora fica direcionada ao cuidado do familiar acometido pela doença, sendo restrita do “cuidado para si”, ou seja, de “buscar um espaço, um tempo para olhar para si mesmo, dar-se ao ‘direito’ de se conhecer e sentir suas necessidades e, talvez, permitir realizar seus desejos”24. Com isso, é possível identificar a sobrecarga de cuidado na vida da mãe de Violeta e também a importância de ampliar o debate sobre a relação do cuidado e a questão de gênero em meio a uma sociedade que naturaliza a atribuição do cuidado à figura feminina, responsabilizando-a, como dialogam os autores19,21. A sobrecarga de cuidado e a restrição do “cuidado para si” são expressos na fala a seguir:

 

[...] eu fico o dia todo em casa. Tem dia, tem semana que nem lavar minha cabeça, eu não lavo... É que eu não tenho tempo para nada, nem disposição eu tô tendo. Por causa da gente trabalhar tanto, a gente não dorme bem, não come bem, entendeu? [...] a gente não dá para sair de casa em lugar nenhum [...] eu nunca imaginei que eu tivesse, fosse lidar com um filho como se fosse uma criança.

 

Quanto aos aspectos que envolvem a transferência do cuidado entre serviços de saúde, em alternativas às práticas hospitalares visando à integralidade do cuidado, este artigo discute acerca de duas questões principais: a atenção domiciliar; e dificuldades de locomoção e acesso ao transporte adequado às necessidades de saúde.

 

A atenção domiciliar é a “modalidade de atenção à saúde integrada às Rede de Atenção à Saúde (RAS), caracterizada por um conjunto de ações de prevenção e tratamento de doenças, reabilitação, paliação e promoção à saúde, prestadas em domicílio, garantindo continuidade de cuidados”25. Dessa forma, as necessidades de saúde do usuário não são exclusivas do ambiente hospitalar, superando a perspectiva hospitalocêntrica, devendo articular-se à rede de saúde para que a oferta de cuidado seja realizada na própria residência do usuário para que assim se diminua a necessidade de idas e vindas ao hospital. Nesse planejamento de cuidado, aqueles que dependem de transporte específico (ambulância ou carro de passeio) para acesso aos serviços de saúde no município do Rio de Janeiro buscam o programa do “Transporte Sanitário Eletivo”, disposto pela Resolução da Comissão Intergestores Tripartite (CIT) n.º 13/201726, que é “destinado ao deslocamento programado de pessoas para realizar procedimentos de caráter eletivo, regulados e agendados”. A revisão bibliográfica acerca dessas duas temáticas desvenda algumas problemáticas no processo de continuidade do cuidado.

 

Na atenção domiciliar, os artigos encontrados expõem a visão por parte dos profissionais de saúde. Brito et al.1 dialogam sobre a importância da atenção domiciliar para materialização da integralidade do cuidado, contudo, destacam um “distanciamento entre a teoria e a prática”, e afirmam que é necessário olhar para questões não valorizadas no contexto hospitalar e que a existência de conflitos no âmbito da organização e assistência impactam no processo de trabalho, na grande demanda e na priorização de questões burocráticas diante das ações de integralidade do cuidado. Dentro desse debate, Maroco2 disserta a respeito dos efeitos sobre o serviço por causa da sobrecarga do trabalho, da dificuldade na administração do tempo para marcação das visitas, e da carência de capacitação e formação para os profissionais.

 

A experiência da usuária em relação à atenção domiciliar levanta o debate sobre ausência de conhecimento dos usuários sobre a rede de saúde:

 

eu nunca tinha precisado de ir na clínica da família, às vezes, eu ia assim medir minha pressão, né, aí eu não sei, a gente chega e não sabe se expressar, eles também não liga.

 

O relato trazido demonstra uma concepção de saúde restrita, expressa a dificuldade de acesso, e revela a forma como o serviço de saúde é visto e naturalizado para/pela população usuária. A saúde na perspectiva neoliberal, defendendo a ideia de que o SUS deve ser voltado para a população mais pobre, ou seja, aqueles que não podem pagar, traz o caráter focalizado, tendo como diretriz a redução do papel do Estado àqueles que realmente não possuem condições de pagar, de forma precarizada e responsabilizando a sociedade pela resolução dos problemas27 com objetivo de eliminar seu caráter público e universal28. Os apontamentos sobre o serviço levantados por Margarida destacam o acompanhamento esporádico, não atendendo às necessidades totais da paciente que dependem do cuidado em domicílio, indicando a falta de integralidade da rede e reforçando a naturalização do cuidado pelos familiares:

 

a doutora muito boa, muito gente fina. [...] demorou uns diazinhos, não foi logo [...] deve ter sido depois de um mês. [...] a doutora foi só uma vez [...] aí ela aparece lá a menina, fisioterapeuta, enfermeiro, mas eles não faz nada não, vai lá só dão uma orientação e vai embora. Aí eu achava que o fisioterapeuta ia fazer fisioterapia, mas não faz não, só vai lá, aí diz: oh vocês têm que fazer assim, tem que fazer assado [...]. Acho que foi duas vezes.

 

Ao questionar sobre a possibilidade de cuidado à paciente sem precisar que a clínica da família fosse a sua casa, Margarida afirma a importância do serviço e apresenta as limitações, explicando a demanda muitas vezes de custos extras para cobrir necessidades médicas em razão da dificuldade de acesso à rede de saúde. Observam-se os rebatimentos do movimento de privatização na saúde na vida dos usuários, que fazem com que a saúde não seja ofertada de forma totalmente gratuita, desmontando seu caráter universal e público a partir da conformação de um sistema de saúde complementar27:

 

tudo tem que pagar e tudo é caro [...] às vezes, levo ela em médico [...] gastei dinheiro, bastante dinheiro com ela porque tava com problema no intestino, tem dia que fui no proctologista, paguei 100 reais porque na clínica da família ia demorar, o remédio que ele passou, gastei 260, lá vai 300 e pouco. [...] com acupuntura [...] gastei 300 e pouco também e nada [...].

 

Em relação ao programa de transporte sanitário, Brandt3,4 reforça que, no Rio de Janeiro, as políticas públicas relacionadas à mobilidade urbana para pacientes com doenças crônicas se resumem principalmente ao passe livre (Vale Social e Riocard Especial), que, contudo, se restringe a passagens limitadas ao transporte público coletivo para o deslocamento entre domicílio e hospital, o que não abarca as necessidades de pacientes restritos ao leito e com dificuldade de locomoção, enquanto o programa organizado para esse fim – o transporte sanitário eletivo – apresenta uma “tendência ao tratamento individualizado da questão mediante sua judicialização”. Ressalta-se também que tais programas priorizam a deficiência física, e acabam por não abarcar aspectos vinculados ao adoecimento crônico e tratamento, como fadiga, astenia, dispneia, presença de ostomias, sintomas como enjoos, dores, entre outros, que, por sua vez, impactam e são atravessados pela esfera social. Diante da não provisão desse direito, o usuário e sua família acabam tendo que arcar com os custos, seguem o tratamento de forma precária, ou abandonam o tratamento.

 

No presente caso, o processo para conseguir o transporte sanitário foi marcado por muitas idas e vindas a diferentes endereços fornecidos pela Câmara de Resolução de Litígios de Saúde (CRLS) – projeto de cooperação entre as Procuradorias-Gerais do Estado e do Município do Rio de Janeiro, além das Secretarias Estadual e Municipal de Saúde, das Defensorias Públicas Estadual e da União, e o Tribunal de Justiça do Estado com o objetivo de promover resoluções para questões de saúde. Entende-se a garantia do transporte como imperativo e de urgência para o acompanhamento de saúde da paciente, visto os impactos socioeconômicos e a necessidade de transporte adequado para pessoa restrita ao leito. Contudo, de acordo com relatos em prontuário, foram cerca de nove meses para garantia do direito ao transporte a partir de solicitação realizada por familiar após primeira alta hospitalar, mesmo sendo solicitado em caráter de urgência. Margarida, depois de algumas idas à Defensoria Pública, conseguiu a garantia de três dias de transporte, porém, logo em seguida, o transporte não foi mais garantido:

 

eu dei entrada lá, mas até agora não consegui nada. Bom, a primeira vez que eu dei entrada, eu consegui três vezes, liberaram transporte para mim, mas agora não.

 

Ela ainda relata sobre a burocracia do processo, sendo necessário laudo específico e detalhado para solicitação do transporte. Em análise documental de prontuário, verificou-se dificuldade por parte dos familiares para obtenção de laudos específicos. Sobre esse processo, vale ressaltar alguns pontos: o acesso por meio da judicialização não resolve a necessidade coletiva; os casos são individualizados; o conhecimento tardio sobre os trâmites em questão faz com que o acesso ao direito seja dificultado. Faz-se necessário o conhecimento dos profissionais de saúde acerca do processo para garantia do direito, de forma a facilitar a disponibilização de documentos necessários para articulação com a rede.

 

Sobre o transporte, registra-se a dimensão particular de cada situação. Quando perguntado à Margarida se ela acredita que é possível ofertar cuidado à paciente sem precisar do transporte sanitário garantido, ela responde:

 

Dá porque não é sempre. [...] Agora se fosse frequente, todo mês, uma vez por semana, aí ficava difícil porque pra gente, quando o meu filho tá lá ele traz, mas quando ele não tá, tem que pagar Uber, eu pago para mim ir e vir[...] eu pago uns 110, 120, entendeu?

 

Nesse cenário, a paciente não apresentava necessidade de idas diárias à unidade hospitalar, como no caso dos pacientes em radioterapia, porém, mesmo com consultas espaçadas, o acesso ao transporte ocorre de maneira dificultosa e lenta, transferindo a responsabilidade exclusivamente para a família.

 

O estudo de caso apresentado problematiza ainda aspectos que versam sobre a articulação com a rede de saúde. Por meio de relatos em prontuário e durante a entrevista realizada, foi possível identificar orientações e encaminhamentos necessários para o acesso à rede de saúde fornecidos aos familiares por parte do serviço social. Com base nos estudos de Cecilio et al.29, compreende-se que o acesso à rede possui diferentes regimes e que “a regulação do acesso e consumo dos serviços de saúde, muito mais do que uma atividade burocrática-administrativa, da esfera ou competência governamental, é uma produção social, resultante da ação de uma multidão de atores sociais”29.

 

Observa-se, no caso estudado, a presença do regime de regulação governamental, ou seja, a articulação com a rede a partir dos encaminhamentos formais via orientações e direcionamentos por parte de profissionais e instituição, mas identifica-se principalmente a regulação leiga, ou seja, aquela que se dá a partir do usuário do serviço (no caso apresentado, pela cuidadora de referência), que assume o lugar de protagonista que, a partir de estratégias, criação de vínculos, contatos estratégicos, constrói um movimento em face dos limites e dificuldades dos sistemas instituídos entendendo que esse movimento surge da dor, do sofrimento, do adoecimento e da necessidade de saúde.

 

Todos esses pontos de análise se articulam e atravessam a vida dos sujeitos trazendo impactos diretos no processo de saúde e cuidado. A realidade vivida pela cuidadora reflete a conjuntura socioeconômica brasileira, marcada pelo neoliberalismo em sua fase mais agressiva – chamada ultraneoliberalismo28. No âmbito da saúde, o objetivo ultraneoliberal é a privatização, a descaracterização do princípio da universalidade e a burocratização do acesso. Esse movimento busca atingir o “caráter público, universal, democrático e descentralizado, fundamental para a garantia dos direitos à saúde, previdência e assistência social, como também impede a construção e incorporação de novos direitos sociais”28. Esse contexto traz rebatimentos para o cotidiano dos usuários que, por sua vez, encontram dificuldade no acesso a serviços e programas que envolvem a integralidade do cuidado em saúde.

 

O caso apresenta o direito em seu caráter reverso a partir das contradições entre as legislações vigentes30,31, as quais afirmam que a saúde se constitui como direito social trazendo o aspecto público e universal, e a realidade, que expõe dificuldades diárias para o acesso a questões básicas relacionadas ao cuidado e à capacidade de ir e vir para o acompanhamento e a continuidade do tratamento em saúde.

 

CONCLUSÃO

No presente caso único escolhido, foi possível produzir uma análise crítica com base nos estudos sobre a temática aqui debatida, cooperando para verificação de aspectos sobre o processo de desospitalização e a articulação com a rede de saúde de forma a atender ao objetivo da pesquisa.

 

Não foi possível identificar artigos sobre a ótica do usuário em relação à atenção domiciliar. As limitações apresentadas se dão pela ótica do profissional de saúde, expressas pelo distanciamento da teoria e prática diante da integralidade do cuidado, questões que impactam o processo de trabalho, como o volume de demandas e a priorização de questões burocráticas, dificuldade na administração do tempo para marcação das visitas, e falta de capacitação para os profissionais.

 

Verificou-se tendência à judicialização para acesso ao transporte reforçando a individualização do alcance do direito, assim como se observou a falta de conhecimento dos profissionais acerca do processo para elaboração de documentação necessária.

 

Percebem-se a naturalização da capacidade do cuidar e a responsabilização da família, perante a falta de políticas de proteção social, no processo de desospitalização. Nota-se também a sobrecarga de cuidado na cuidadora de referência, uma mulher idosa, levantando o debate de gênero e da questão etária no papel de cuidar.

 

Observam-se o protagonismo e a importância dos usuários, diante do adoecimento e das necessidades de saúde, no processo de articulação com a rede, em face dos limites e desafios dos sistemas instituídos que se caracterizam pela morosidade e burocratização do acesso.

 

Este artigo foi produzido com a finalidade de elaboração de trabalho de conclusão de curso de residência multiprofissional. Destaca-se a importância de estudos futuros sobre essa temática entendendo que uma pesquisa produz mais do que respostas, mas também desperta novas inquietações e dúvidas durante o processo. Na perspectiva da análise crítica, há o movimento que permite avaliar o que se descortinou e o que se mostrou encoberto ao longo da pesquisa. Portanto, se estimula o interesse para elaboração e pesquisa sobre outras questões, tais como: os impactos do familismo no âmbito do cuidar sob a perspectiva de gênero atribuindo a responsabilidade do cuidado à mulher; o processo de refilantropização, transferindo a responsabilidade do Estado para a sociedade na esfera da resolução dos problemas mediante a falta de políticas públicas relacionadas ao cuidado; as estratégias dos cuidadores em meio à escassez de políticas de proteção social e morosidade do acesso aos serviços para permanência e continuidade do cuidado; e os impactos dos sintomas e sequelas das doenças crônicas – seja oncológica ou não – para além da deficiência física, na vida dos usuários e nas possiblidades do cuidar, diante da precarização e do desmonte da política de saúde brasileira. Essas são apenas algumas indagações para busca de novos estudos, a fim de alargar e aprofundar o horizonte sobre a temática da saúde e do cuidado na perspectiva do SUS, em prol da população usuária.

 

 

CONTRIBUIÇÕES

Carolina Cardoso Tricarico contribuiu na concepção, no planejamento do estudo, na análise e interpretação dos dados, bem como na redação e revisão. Erika Schreider e Ana Raquel de Mello Chaves participaram da redação e revisão crítica. Todas as autoras aprovaram a versão final a ser publicada.

 

 

DECLARAÇÃO DE CONFLITO DE INTERESSES

Nada a declarar.

 

 

FONTES DE FINANCIAMENTO

Não há.

 

 

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Recebido em 27/3/2023

Aprovado em 25/5/2023

 

Editor-associado: Mario Jorge Sobreira da Silva. Orcid iD: https://orcid.org//0000-0002-0477-8595

Editora-científica: Anke Bergmann. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1972-8777

 

 

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