ARTIGO DE OPINIÃO
Estratificação de Risco e Profilaxia do Tromboembolismo Venoso no Mieloma Múltiplo
Venous Thromboembolism Risk Stratification and Prophylaxis in Multiple Myeloma
Estratificación del Riesgo y Profilaxis del Tromboembolismo Venoso en el Mieloma Múltiple
https://doi.org/10.32635/2176-9745.RBC.2024v70n1.4440
Renata Bourdette Ferreira1; Marcos Jose Pereira Renni2
1Pesquisadora Autônoma. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mail: rebourdette@yahoo.com.br Orcid iD: https://orcid.org/0009-0009-1432-6419.
2Instituto Nacional de Câncer (INCA). Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mail: mrenni@inca.gov.br Orcid iD: https://orcid.org/0000-0003-3381-7394.
Endereço para correspondência: Renata Bourdette Ferreira. Rua Agenor Rabello, 50, 301 – Recreio dos Bandeirantes. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. CEP 22790-080. E-mail: rebourdette@yahoo.com.br
INTRODUÇÃO
O tromboembolismo venoso (TEV) representa a segunda principal causa de morte nos pacientes oncológicos, podendo ser a primeira manifestação da neoplasia ou ocorrer em qualquer momento da evolução da doença1-3. O risco difere em subgrupos, com maiores taxas em tipos específicos de câncer, principalmente de pâncreas, estômago e mieloma múltiplo (MM)1.
Associados a um maior risco de morte, os eventos trombóticos têm importante impacto adverso, já que podem acarretar interrupção do tratamento, aumento da morbidade e prejuízo econômico4.
Nesse cenário, o MM se impõe como um desafio. Ele é o segundo câncer hematológico mais comum, com um risco de TEV nove vezes maior do que na população geral1,5. Fatores inerentes ao paciente, ao tratamento e à própria doença contribuem para esse alto risco. O perfil epidemiológico do paciente com MM favorece a coexistência de fatores de risco tromboembólicos adicionais e, por outro lado, o avanço do tratamento oncológico trouxe aumento da sobrevida global e do risco trombótico4. Sabe-se que mais de 10% da população com MM apresentará TEV em algum momento do curso da doença4,6, com maior incidência nos primeiros seis meses após o diagnóstico5.
Entretanto, observa-se inconsistência na execução das recomendações vigentes sobre tromboprofilaxia. Diante da falta de dados robustos e de modelos padronizados de estratificação de risco, muitos médicos tendem a atuar baseados em sua experiência clínica7. A tromboprofilaxia ideal no MM permanece como uma pergunta ainda sem resposta.
DESENVOLVIMENTO
A tríade de Virchow acrescida das informações atuais sobre elementos do sangue e suas complexas interações no processo da trombogênese é uma ferramenta útil para a compreensão da etiopatogenia do TEV na neoplasia3 (Quadro1).
Quadro 1. Tríade de Virchow
Patogênese: tríade de Virchow |
|
Estase |
Repouso, imobilização, compressão extrínseca pelo tumor |
Componente sanguíneo |
Substâncias pró-coagulantes tumorais e citocinas inflamatórias |
Lesão vascular |
Invasão tumoral direta, cateter venoso central, quimioterapia e outros |
Fonte: Adaptado de Chung I, Lip GYH8.
A associação entre câncer, trombose e inflamação é bem conhecida. As plaquetas têm destaque nesse processo, contribuindo para a oncogênese por meio dos mesmos mecanismos fisiopatológicos que levam à aterosclerose, à atividade pró-trombótica e pró-inflamatória, se posicionando assim no ponto de interconexão entre câncer, inflamação e doença cardiovascular9. Identificar os fatores que contribuem para a trombogênese e intervir naqueles que se podem modificar é uma estratégia ideal e individualizada de profilaxia. No MM, coexistem fatores inerentes ao paciente, à própria doença e ao tratamento, alguns modificáveis e outros não.
Os fatores modificáveis, inerentes ao paciente, são obesidade, hipertensão arterial, diabetes, tabagismo, dislipidemia, sedentarismo, insuficiência cardíaca, infecção, internações frequentes e doença pulmonar10. Entre os fatores não modificáveis, destacam-se envelhecimento, etnia, genética, história prévia de TEV e trombofilias10.
O momento da doença também é um aspecto importante. A doença ativa se associa a um alto risco de trombose, pois os níveis elevados de imunoglobulinas, citocinas inflamatórias e micropartículas contribuem para criar o ambiente de hipercoagulabilidade4. Além disso, durante a evolução do MM, podem ocorrer fraturas patológicas da pelve, fêmur e vértebras, ocasionando imobilidade ou necessidade de cirurgias, com aumento do risco trombótico6.
Outro desafio é a amiloidose de cadeia leve (AL), presente em cerca de 10% desses indivíduos. Nesses pacientes, os plasmócitos produzem imunoglobulinas instáveis, que infiltram os tecidos, com potencial dano de múltiplos órgãos, podendo levar à insuficiência cardíaca, fibrilação atrial e síndrome nefrótica, e, assim, agregar importante risco trombótico. Por outro lado, o risco hemorrágico aumenta em função do envolvimento gastrointestinal, deficiência de fator X e insuficiência renal11, tornando desafiadora a sobreposição dos riscos trombótico e hemorrágico.
Os fármacos imunomoduladores (talidomida, lenalidomida, pomalidomida) representam um ponto-chave do risco trombótico quando se analisam os fatores relacionados ao tratamento. Eles formam a base dos protocolos de terapia do MM e seu potencial trombogênico aumenta ao serem usados em associação com dexametasona em alta dose, quimioterapia multiagente ou antraciclina, podendo chegar à incidência de 26% de trombose6,12.
O exato mecanismo trombogênico dos imunomoduladores é desconhecido. Existem hipóteses envolvendo o aumento do fator von Willebrand, fator VIII e fator tecidual, bem como o aumento da ativação plaquetária4. O uso de inibidores de proteasome, particularmente o carfilzomibe, e do anticorpo monoclonal elotuzumabe, também parece estar associado à maior incidência de TEV nessa população13.
Intervenções como cateter venoso central, cirurgias e terapias de suporte, incluindo eritropoetina e múltiplas transfusões, também contribuem para o risco de TEV1.
Estratificação de risco e profilaxia
O escore de Khorana, amplamente usado para avaliação de risco de trombose associada ao câncer, foi desenvolvido para tumores sólidos e não validado para uso no MM, tendo baixa acurácia na predição de TEV nesse grupo4,14.
Buscando uma solução, Palumbo et al.13 propuseram um modelo baseado no indivíduo, na doença e no tratamento14, que foi incorporado no algoritmo de recomendação de profilaxia da International Myeloma Working Group (IMWG)13,14 (Quadro 2), modelo ainda amplamente usado14.
Posteriormente, dois modelos foram desenvolvidos para o MM: IMPEDE VTE e SAVED. Ambos são promissores e recomendados como opções na avaliação de risco1,15.
Em 2022, a European Society of Cardiology publicou o Guideline de Cardio-Oncologia, recomendando que todo paciente com câncer em tratamento com potencial toxicidade cardiovascular passe por uma avaliação do risco basal, idealmente no momento do diagnóstico do câncer, e sem atraso para o tratamento oncológico13. A proposta é utilizar a ferramenta de estratificação de risco de toxicidade cardiovascular HFA-ICOS (Heart Failure Association-International Cardio-Oncology Society)13. Essa prática permite identificar os indivíduos com alto risco de trombose e, assim, direcioná-los para acompanhamento conjunto com o cardio-oncologista, visando colaborar para a sua permanência no tratamento oncológico.
Quadro 2. Algoritmo de recomendação de profilaxia da International Myeloma Working Group
Algoritmo de Estratificação de Risco e Escolha de Tromboprofilaxia no MM International Myeloma Working Group, European Myeloma Network e NCCN |
||
Fatores relacionados ao paciente 1 ponto por item |
Fatores relacionados à doença 1 ponto por item |
Fatores do tratamento Pontos como indicado |
IMC > 25, idade >75 anos, histórico Pessoal ou familiar de TEV, cateter venoso central, infecção aguda ou hospitalização, coagulopatias ou trombofilia, imobilidade com PS > 1, comorbidades (fígado, insuficiência renal, DPOC, DM, doença inflamatória intestinal crônica), etnia (caucasiano é um fator de risco) |
Diagnóstico de MM Evidência de hiperviscosidade |
IMiD em combinação com baixa dose de dexametasona (< 480 mg/mês) (1 ponto) IMiD em combinação com alta dose de dexametasona (> 480 mg/mês) ou doxorrubicina ou quimioterapia multiagente (2 pontos) IMiD sozinho (1 ponto) Uso de eritropoetina (1 ponto) |
Estratificação de Risco e Recomendação de Tromboprofilaxia 0 pontos: Baixo risco – sem profilaxia 1 ponto: Risco intermediário – ácido acetilsalicílico 100 mg/dia Mais que 1 ponto: Alto risco – heparina de baixo peso molecular em dose profilática ou dose terapêutica de warfarin |
Fonte: Adaptado de Fotiou D, Gavriatopoulou M, Terpos E14.
Legendas: IMC = índice de massa corporal; TEV = tromboembolismo venoso; PS = performance status; DPOC = doença pulmonar obstrutiva crônica; DM = diabetes mellitus, MM = mieloma múltiplo, IMiD = agente imunomodulador.
A estratificação de risco detalhada é o ponto de partida para uma estratégia individualizada de profilaxia, que envolva modificações no estilo de vida, tratamento adequado de comorbidades e medicamentos, como ácido acetilsalicílico e anticoagulantes.
O papel do cardio-oncologista nesse contexto é identificar os fatores modificáveis inerentes ao paciente e intervir para corrigir ou atenuar o risco, permitindo a continuidade da terapia antineoplásica e a redução de eventos cardiovasculares. Ao atuar nos fatores relacionados ao estilo de vida, como tabagismo, atividade física e controle de peso, conscientizando o paciente sobre a importância da adesão às medidas propostas e do tratamento adequado de hipertensão arterial sistêmica (HAS), diabetes mellitus (DM), dislipidemia e insuficiência cardíaca, a contribuição será possível com a terapia oncológica.
Uso de ácido acetilsalicílico e anticoagulantes
O recente guideline europeu de cardio-oncologia orienta que pacientes com MM e fatores de risco para TEV recebam heparina de baixo peso molecular (HBPM) em dose profilática pelo menos nos seis primeiros meses do tratamento. No caso de história prévia de TEV, é recomendado o uso de HBPM em dose terapêutica13. Ácido acetilsalicílico pode ser considerado como alternativa à HBPM em pacientes com MM com até um fator de risco, exceto TEV prévio13.
Essas recomendações são baseadas em evidências limitadas, e não está claro seu uso para o paciente no mundo real16. O uso do ácido acetilsalicílico se baseia em dados que apontam o aumento da ativação plaquetária induzido pelos fármacos imunomoduladores e pela própria doença4. Entretanto, seu uso é controverso e desencorajado nos primeiros meses de tratamento, fase de maior risco de trombose, sendo uma opção para os períodos de remissão4.
Atualmente, a HBPM é o fármaco padrão na profilaxia, contudo seu custo, o uso parenteral e a necessidade de ajuste para disfunção renal representam desafios na prática clínica4.
Dados emergentes sugerem que a tromboprofilaxia com apixabana pode ser uma opção, porém são necessários estudos adicionais para a validação do seu uso14,16,17. O estudo AVERT (Apixabana to Prevent Venous Thromboembolism in Patients with Cancer) investigou a eficácia e a segurança da apixabana 2,5 mg 12/12h em pacientes ambulatoriais de alto risco para TEV, incluindo MM. O resultado mostrou redução significativa de TEV no uso da apixabana comparada ao placebo, porém com maior taxa de sangramento no grupo da apixabana e taxa de mortalidade similar1. Outros trials, como o MYELAXAT (Evaluation of an oral direct anti-Xa anticoagulant, apixaban, for the prevention of venous thromboembolism in patients with myeloma treated with IMiD compounds: a pilot study), têm investigado a segurança e a eficácia da apixabana na profilaxia primária no MM, com resultados encorajadores.
Faltam também dados para apoiar a escolha da profilaxia ideal em situações especialmente relevantes como insuficiência renal e trombocitopenia4.
CONCLUSÃO
A estratégia ideal de profilaxia de trombose no cenário do MM permanece em aberto. São necessários estudos robustos que validem um agente ideal para a anticoagulação, bem como ferramentas de aferição do risco trombótico e de conduta nas situações especiais. Além disso, compreender que câncer e doença cardiovascular compartilham cascatas inflamatórias que favorecem os fenômenos trombóticos pode representar uma oportunidade adicional de atuar na prevenção, identificando e intervindo sobre os fatores que contribuem para a ativação dessas cascatas. Nesse contexto, o cardio-oncologista pode contribuir para o tratamento oncológico, realizando o manejo adequado da doença cardiovascular com o objetivo de reduzir eventos trombóticos e, assim, facilitar o tratamento do câncer.
CONTRIBUIÇÕES
Renata Bourdette Ferreira contribuiu substancialmente na concepção e/ou no planejamento do estudo; na obtenção, análise e/ou interpretação dos dados; e na redação. Marcos Jose Pereira Renni contribuiu substancialmente na obtenção, análise e/ou interpretação dos dados; na revisão crítica. Ambos os autores aprovaram a versão final a ser publicada.
DECLARAÇÃO DE CONFLITO DE INTERESSES
Nada a declarar.
FONTES DE FINANCIAMENTO
Não há.
REFERÊNCIAS
1. Gervaso L, Dave H. Venous and arterial thromboembolism in patients with cancer: state-of-the-art review. JACC Cardio Oncol. 2021;3(2):173190. doi: https://doi.org/10.1016/j.jaccao.2021.03.001
2. Donnellan E, Khorana AA. Cancer and venous thromboembolic disease: a review. Oncologist. 2017;22:199-207.
3. Renni M. Cerqueira MH, Trugilho IA, et al. Mecanismos do tromboembolismo venoso no câncer: uma revisão da literatura. J Vasc Bras. 2017;16(4):308-13. doi: https://doi.org/10.1590/1677-5449.007817
4. Fotiou D, Gavriatopoulou M. Multiple myeloma and thrombosis: prophylaxis and risk prediction tools. Cancers (Basel). 2020;12(1):191.
5. Covut F, Ahmed R. Validation of the IMPEDE VTE score for prediction of venous thromboembolism in multiple myeloma: a retrospective cohort study. Br J Haematol. 2021;193(6):1213-9.
6. Stefano V, Larocca A. Thrombosis in multiple myeloma: risk stratification, antithrombotic prophylaxis, and management of acute events. a consensus-based position paper from an ad hoc expert panel. Haematologica. 2022;107(11):2536-47
7. Fotiou D, Gavriatopoulou M, Ntanasis-Stathopoulos I, et al. Updates on thrombotic events associated with multiple myeloma. Expert Rev Hematol. 2019;12(5):355-65. doi: https://doi.org/10.1080/17474086.2019.1604214
8. Chung I, Lip GY. Virchow's triad revisited: blood constituents. Pathophysiol Haemost Thromb. 2003;33(5-6):449-54. doi: https://doi.org/10.1159/000083844
9. Camilli M, Lannaccone G, La Vecchia G. Platelets: the point of interconnection among cancer, inflammation and cardiovascular diseases. Expert Review of Hematol. 2021;14(6)537-46. doi: https://doi.org/10.1080/17474086.2021.1943353
10. Donnellan E, Khorana AA. Cancer and venous thromboembolic disease: a review. Oncologist. 2017;22(2):199-207. doi: https://doi.org/10.1634/theoncologist.2016-0214
11. Nicol M, Siguret V, Vergaro G, et al Thromboembolism and bleeding in systemic amyloidosis: a review. ESC Heart Failure. 2022;9(1):11-20. doi: https://doi.org/10.1002/ehf2.13701
12. Chakraborty R, Bin Riaz I, Malik SU, et al. Venous thromboembolism risk with contemporary lenalidomide-based regimens despite thromboprophylaxis in multiple myeloma: a systematic review and meta-analysis. Cancer. 2020;126(8):1640-50. doi: https://doi.org/10.1002%2Fcncr.32682
13. Lyon AR, López-Fernández T, Couch LS. ESC Guidelines on cardio-oncology developed in collaboration with the European Hematology Association (EHA), the European Society for Therapeutic Radiology and Oncology (ESTRO) and the International Cardio-Oncology Society (IC-OS). Eur Heart J. 2022;43(41):4229-361. doi: https://doi.org/10.1093/eurheartj/ehac244
14.Lapietra G, Serrao A. Venous thromboembolism prophylaxis in patients with multiple myeloma: where are we and where are we going? J Thromb Thrombolysis. 2021;52(2):584-9.
15. Terpos E, Kleber M, Engelhardt M, et al. European myeloma network guidelines for the management of multiple myeloma-related complications. Haematologica. 2015;100(10):1254-66. doi: https://doi.org/10.3324/haematol.2014.117176
16. Bradbury C, Craig Z, Cook G, et al. Thrombosis in patients with myeloma treated in the myeloma ix and myeloma xi phase 3 randomized controlled trials. Blood. 2020;136 (9):1091-104. doi: https://doi.org/10.1182/blood.2020005125
17.Rubinstein SM, Tuchman SA. Thrombosis in the modern era of multiple myeloma. Blood. 2020;136(9):1019-21.
Recebido em 14/11/2023
Aprovado em 23/2/2024
Editor-associado: Mario Jorge Sobreira da Silva. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-0477-8595
Editora-científica: Anke Bergmann. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1972-8777
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.