EDITORIAL

 

Disparidade Racial na Assistência ao Câncer

Racial Disparity in Cancer Assistance

Disparidad Racial en la Asistencia al Cáncer

 

 

https://doi.org/10.32635/2176-9745.RBC.2023v69n4.4519

 

Abna Vieira1

 

1Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp). Grupo Oncoclínicas. Universidade de São Paulo (USP), Faculdade de Medicina, Grupo de Pesquisa Race.ID. Sociedade Brasileira de Oncologia Cínica (SBOC), Comitê de Diversidade. São Paulo (SP), Brasil. E-mail: abna.vieira@medicos.oncoclinicas.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-2873-1329

 

 

Embora o câncer atinja pessoas de todas as idades, raças, etnias e sexos, ele nem sempre as afeta igualmente. Diferenças na genética, hormônios, exposições ambientais e outros fatores podem levar a diferenças de risco entre grupos distintos de pessoas1. No entanto, deve-se ressaltar que, para além do impacto da doença, o impacto da assistência prestada ao paciente influencia diretamente nos defechos oncológicos, sejam eles positivos ou negativos2,3.

 

O país de origem, a identidade de gênero, a orientação sexual, a raça ou qualquer outro dado demográfico do paciente não deveria influenciar na taxa de sobrevida do câncer. Infelizmente, não é o que se vê, tendo em vista as disparidades na assistência ao câncer da maior parte da população brasileira2,4,5. De acordo com o censo demográfico de 2022, os negros (a soma de pretos e pardos) representam 56% da população brasileira.

 

No último 23 de outubro, os Ministérios da Saúde e da Igualdade Racial lançaram o Boletim Epidemiológico Saúde da População Negra (BESPN), que inclui dados de notificações de agravos e doenças relacionadas à população negra. Tais dados evidenciam o impacto do racismo como determinante social de saúde e expõem a vulnerabilização da população negra em relação ao acesso das políticas já existentes3.

 

Esse foi o primeiro passo para a implementação efetiva da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), iniciativa do Ministério da Saúde para enfrentar as disparidades de saúde vividas por essa comunidade. Vale ressaltar que a correta coleta do quesito raça-cor por meio da autodeclaração racial é a base e o primeiro artigo de recomendação da PNSIPN. A obtenção desse dado possibilita a formulação de estratégias3 destinadas à resolução de problemas e ao monitoramento dos indicadores de saúde da população negra. Apesar da obrigatoriedade estabelecida, desde 1º de fevereiro de 2017, referente ao preenchimento do campo raça/cor nos prontuários dos pacientes, há diversas barreiras que impedem a plena conformidade dessa exigência. Entre os obstáculos, está a falta de reconhecimento da importância do dado, influenciada pelas dimensões do racismo interpessoal e institucional presentes na sociedade. Visando superar as barreiras que impedem o preenchimento adequado do quesito raça-cor nos registros médicos, é urgente a sensibilização das equipes de saúde.

 

O BESPN destaca que, no Brasil, as principais preocupações em termos de saúde pública estão relacionadas às doenças crônicas não transmissíveis, sendo responsáveis por mais da metade das mortes no país. Entre elas, o câncer representa grande parcela. Os fatores de risco e proteção associados a essas condições podem ser moldados por hábitos de vida que atuam como determinantes no processo saúde-doença da população3.

 

Um estudo publicado na Cadernos de Saúde Pública em 2018 mostra que, no Brasil, mulheres negras com câncer de mama têm uma sobrevida 25% menor do que as mulheres brancas, em dez anos de avaliação4. Estatísticas dos Estados Unidos da América (EUA), por exemplo, mostram que, apesar de serem menos diagnosticadas com câncer de mama, as mulheres negras possuem maior taxa de mortalidade por essa doença, se comparadas às mulheres brancas1,2. No que diz respeito ao câncer de ovário, observa-se pior sobrevida em mulheres negras, pior taxa de cirurgia citorredutora ótima e maior taxa de doença platino resistente. É provável que a disparidade mais gritante esteja no câncer do colo do útero, em que o risco de morte é mais do que o dobro para mulheres negras comparadas com mulheres brancas, e seis vezes maior para mulheres indígenas. Além disso, mulheres negras também têm menos chance de serem referenciadas para aconselhamento genético ou receberem teste genético de predisposição hereditária ao câncer1,2,4.

 

As disparidades na assistência ao câncer são impulsionadas por uma interação complexa de desigualdades presentes tanto dentro quanto fora do sistema de saúde, as quais possuem suas raízes no racismo e suas dimensões (estrutural, institucional e interpessoal), e na discriminação2,5,6. Pacientes negros enfrentam uma probabilidade significativamente maior do que seus pares brancos de não possuir seguro saúde, além de enfrentarem outras barreiras que impactam negativamente o acesso aos cuidados de saúde. Essas barreiras, por sua vez, limitam a participação em programas de rastreio, e o acesso a cuidados e tratamentos essenciais para o câncer2,4-6.

 

Além disso, estuda-se também se o risco hereditário e os determinantes genéticos para subtipos específicos de câncer podem explicar uma parte dessas disparidades. Isso pode ser observado em taxas mais altas de câncer de mama triplo-negativo em mulheres negras e na maior probabilidade de serem diagnosticadas com câncer de mama metastático e de alto grau em comparação com todos os outros grupos1,2,4. Outros determinantes genéticos podem influenciar a susceptibilidade ao câncer em virtude de variantes genéticas provocadas pela obesidade, inflamação crônica e respostas imunes. Uma área crescente de pesquisa em câncer é a análise de diferença na atividade biológica tumoral e sua relação com a raça e a etnia2,4.

 

Um dos objetivos dessa discussão é avaliar se há diferença na resposta tumoral, na imunogenicidade do tumor e na resposta aos tratamentos entre pacientes negros e brancos. No entanto, várias pesquisas apontam que as diferenças biológicas tumorais podem contribuir menos para as disparidades raciais nos desfechos oncológicos em comparação com as barreiras de acesso aos cuidados de saúde, e que não há diferenças raciais na eficácia da terapia local ou sistêmica para os cânceres de mama, pulmão ou colorretal, por exemplo2,4-6.

 

Várias pesquisas sugerem que os pacientes negros têm menor probabilidade do que os pacientes brancos de receber tratamento adequado ao estádio do tumor ou cuidados de acordo com as diretrizes em vários tipos de cânceres invasivos. Em comparação com os pacientes brancos, os pacientes negros possuem menor probabilidade de receber rastreio para câncer de pulmão (quando ele é indicado) e, mesmo após serem encaminhados para centros oncológicos, são menos propensos a receber uma indicação de cirurgia por parte da equipe médica, e mais propensos a recusar a cirurgia depois de esta ter sido recomendada2,6,7.

 

Os pacientes negros também são tratados com menor frequência com quimiorradioterapia para câncer colorretal. Para os cânceres de mama e ginecológicos, as mulheres negras têm menor probabilidade do que as mulheres brancas de receber procedimentos de investigação baseados em evidências ou tratamentos recomendados pelas diretrizes. Outras pesquisas mostraram que, em comparação com as mulheres brancas com planos de tratamento semelhantes, os atrasos são mais frequentes no início do tratamento do câncer da mama na população negra2,6,7.

 

Esses pacientes também são mais propensos a relatar necessidades não atendidas de tratamento do câncer, incluindo cuidados de suporte. Dados mostram que pacientes negros possuem menos acesso a cuidados paliativos especializados, recebem menos analgesia e são submetidos a mais terapia off label no fim de vida. Nas comunidades negras, as necessidades socioeconômicas e de cuidados de apoio não satisfeitas estão associadas à fraca adesão à terapia do câncer. Mesmo depois de ajustar as diferenças de status socioeconômico e de acesso ao sistema de saúde, estudos mostram que os pacientes negros nascidos nos EUA têm maior probabilidade de perceber uma necessidade não satisfeita no tratamento do câncer do que os pacientes brancos nascidos nos EUA6-8.

 

Esses dados mostram que, para além da cobertura de saúde e do acesso aos cuidados, a discriminação e os vieses raciais implícitos no sistema de saúde tendem a contribuir para as disparidades nos desfechos oncológicos. Um conjunto significativo de estudos aponta que o viés e o racismo institucional e dos prestadores de saúde são impulsionadores das disparidades raciais na saúde, contribuindo para diferenças raciais no diagnóstico, prognóstico, decisões de tratamento, e nas experiências de cuidados de saúde entre pacientes negros e brancos7,8.

 

Tais pesquisas chamam atenção para o papel da comunicação e das interações entre prestadores e pacientes na geração dessas disparidades. Melhorar a capacidade dos serviços de saúde de prestar cuidados cultural e linguisticamente apropriados bem como aumentar a diversidade da força de trabalho dos prestadores de saúde podem ajudar a reduzir as disparidades na saúde como um todo.

 

Por fim, a sub-representatividade da população negra em estudos clínicos corrobora e perpetua a disparidade racial no câncer. Apesar de algumas iniciativas, o recrutamento dos pacientes negros na pesquisa clínica segue irrisório. Nos EUA, que seguem sendo o país onde mais se produz estudos clínicos em oncologia, apenas 3% a 5% dos pacientes recrutados são negros, mesmo estes representando cerca de 14% da população. Infelizmente, no Brasil, esses dados ainda não estão disponíveis, sendo necessários estudos nacionais para investigar se a diversidade em estudos clínicos, tão desejada pelas indústrias farmacêuticas, é de fato atingida.

 

Avançar no aumento da diversidade dos participantes de pesquisa clínica e de representatividade dos grupos minorizados entre profissionais de saúde é um passo importante para combater as disparidades na assistência ao câncer e garantir que todas as pessoas se beneficiem dos avanços contínuos no tratamento do câncer.

 

 

REFERÊNCIAS

1.    Centers for Disease Control and Prevention [Internet]. Washington, D.C: CDC; 2023. United States Cancer Statistics: Data visualizations. [acesso 2023 nov 14]. Disponível em: https://www.cdc.gov/cancer/dataviz

2.    Tong M, Hill L, Artiga S. Racial disparities in cancer outcomes, screening, and treatment. KFF. 2022 fev 3. [acesso 2023 nov 14]. Disponível em: https://www.kff.org/racial-equity-and-health-policy/issue-brief/racial-disparities-in-cancer-outcomes-screening-and-treatment/

3.    Ministério da Saúde (BR). Saúde da População negra. Boletim Epidemiol. 2023;2(N. esp):1-57.

4.    Nogueira MC. Guerra MR, Cintra JRD, et al. Racial disparity in 10-year breast cancer survival: a mediation analysis using potential responses approach. Cad Saúde Pública. 2018;34(9):e00211717. doi: https://doi.org/10.1590/0102-311X00211717

5.    Lopes F. Para além da barreira dos números: desigualdades raciais e saúde. Cad Saúde Pública. 2005 [acesso 2023 set 11];21(5):1595-1601. doi: https://doi.org/10.1590/S0102-311X2005000500034

6.    Malta DC, Bernal RTI, Lima MG, et al. Socioeconomic inequalities related to noncommunicable diseases and their limitations: national health survey, 2019. Rev bras Epidemiol. 2021;24(sup2):e-210011. doi: https://doi.org/10.1590/1980-549720210011.supl.2

7.    Hall WJ, Chapman MV, Lee KM, et al. Implicit racial/ethnic bias among health care professionals and its influence on health care outcomes: a systematic review. Am J Public Health. 2015;105(12):e60-76. doi: https://doi.org/10.2105/AJPH.2015.302903

8.   Hoffman KM, Trawalter S, Axt JR, et al. Racial bias in pain assessment and treatment recommendations, and false beliefs about biological differences between blacks and whites. Psychol Cognit Scienc. 2016;113(16)4296-4301 doi: https://doi.org/10.1073/pnas.1516047113

 

 

Recebido em 19/12/2023

Aprovado em 19/12/2023

 

Editora-científica: Anke Bergmann. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1972-8777

 

 

 

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