Funcionalidade de Indivíduos com Doença Oncológica Internados em Unidades de Terapia Intensiva
Functionality of Individuals with Oncological Disease Admitted to Intensive Care Units
Funcionalidad de los Individuos con Enfermedad Oncológica Internados en Unidades de Cuidados Intensivos
https://doi.org/10.32635/2176-9745.RBC.2024v70n2.4605
Dayana Cristina Käfer1; Eliane de Oliveira de Matos2; Daiane de Cesaro3; Milena Savaris4; Clause Aline Seger5; Ana Carolina Teixeira6; Matheus Santos Gomes Jorge7
1-7Universidade de Passo Fundo. Passo Fundo (RS), Brasil.
1E-mail: dayanakafer@hotmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-0694-4286
2E-mail: eli.mattos2010@hotmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0001-7225-6994
3E-mail: daidecesaro@hotmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0003-4521-4558
4E-mail: milenasavaris@hotmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-3957-0102
5E-mail: clau.seger@gmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-0891-7505
6E-mail: anacteixeira.rs@gmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-4118-2969
7E-mail: matheusjorge@upf.br. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-4989-0572
Endereço para correspondência: Dayana Cristina Käfer. Rua Morom, 2894 – Boqueirão. Passo Fundo (RS), Brasil. CEP 99025-024. E-mail: dayanakafer@hotmail.com
Introdução: Indivíduos com câncer representam cerca de 20% de todas as admissões em unidades de terapia intensiva. A redução da capacidade funcional é resultante do câncer e seus tratamentos e pode ser potencializada pela imobilização advinda neste setor. Objetivo: Analisar a funcionalidade de indivíduos com doença oncológica internados em unidades de terapia intensiva. Método: Estudo observacional de coorte prospectiva, no qual foram avaliados indivíduos com câncer, internados em unidades de terapia intensiva dentro de 24 horas da admissão e da alta quando esta ocorreu por meio da escala Perme. As condições sociodemográficas foram coletadas com a aplicação de um questionário e as informações clínicas obtidas do prontuário. Os dados foram analisados por estatística descritiva e inferencial. Foi aplicado o teste t para amostras pareadas e independentes. Para correlacionar as variáveis quantitativas, foi utilizado o teste de correlação de Pearson. Resultados: Foram incluídos 42 indivíduos com câncer em estado crítico, predominantemente homens e com média de idade de 62,86 anos. O principal tipo tumoral identificado foi no sistema gastrointestinal (40,5%). A ventilação mecânica foi indicativa de menor funcionalidade. Foram registradas associações significativas entre o tempo de internação e a funcionalidade na admissão e alta. O desfecho dos pacientes admitidos com menor funcionalidade foi o óbito. Ao comparar os resultados de admissão e alta, houve melhora significativa do estado funcional. Conclusão: Os indivíduos com câncer admitidos em unidades de terapia intensiva apresentaram melhora da funcionalidade durante a internação.
Palavras-chave: Estado Funcional; Neoplasias/complicações; Unidades de Terapia Intensiva; Deambulação Precoce; Serviços de Fisioterapia.
ABSTRACT
Introduction: Individuals with cancer represent approximately 20% of all intensive care admissions. The reduction in functional capacity results from cancer and its treatments, and can be potentialized by immobilization caused by the disease. Objective: To analyze the functionality of individuals with oncological disease admitted to intensive care units. Method: Observational prospective cohort study, where individuals with cancer admitted to intensive care units were evaluated within 24 hours of admission and discharge when this occurred. The sociodemographic conditions were obtained through the application of a questionnaire utilizing the Perme scale, and clinical information was collected from the medical charts. Data were analyzed using descriptive and inferential statistics. The t test was applied for paired and independent samples. To correlate the quantitative variables, the Pearson correlation test was used. Results: 42 critically ill cancer patients were included, predominantly males with mean age of 62.86 years. The main tumor type identified was of the gastrointestinal system (40.5%). Mechanical ventilation was indicative of lower functionality. Significant associations were recorded between length of stay and functionality at admission and discharge. The outcome of patients with lower functionality at admission was death. When comparing the admission and discharge results, there was a significant improvement in functional status. Conclusion: Individuals with cancer admitted to intensive care units showed improved functionality during hospitalization.
Key words: Functional Status; Neoplasms/complications; Intensive Care Units; Early Ambulation; Physical Therapy Services.
RESUMEN
Introducción: Las personas con cáncer representan el 20% de los ingresos a unidades de cuidados intensivos. La reducción de la capacidad funcional es el resultado del cáncer y sus tratamientos, y puede empeorar debido a la inmovilización causada en este sector. Objetivo: Analizar la funcionalidad de individuos con cáncer internados en unidades de cuidados intensivos. Método: Estudio de cohorte prospectivo observacional, en el que se evaluaron individuos con cáncer internados en unidades de cuidados intensivos dentro de las 24 horas posteriores al ingreso y al alta de cuando esto ocurrió mediante la escala de Perme. Se recogieron datos sociodemográficos e informaciones clínicas a través de un cuestionario y de registros médicos, respectivamente. Los datos fueron analizados mediante estadística descriptiva e inferencial. Se aplicó la prueba t para muestras pareadas e independientes y la prueba de correlación de Pearson para las variables cuantitativas. Resultados: Se incluyeron 42 pacientes predominantemente masculinos y con una edad promedio de 62,86 años. El principal tipo de tumor fue del sistema gastrointestinal (40,5%). La ventilación mecánica fue indicativa de menor funcionalidad. Había asociaciones significativas entre la duración de la estancia en la unidad de cuidados intensivos y la funcionalidad al ingreso y al alta. Los pacientes con menor funcionalidad al ingreso tuvieron como resultado la muerte. Al comparar los resultados de ingreso y alta, hubo una mejora significativa en el estado funcional. Conclusión: Los individuos con cáncer ingresados en unidades de cuidados intensivos mostraron mejor funcionalidad durante su estancia.
Palabras clave: Estado funcional. Neoplasias/complicaciones. Unidades de Cuidados Intensivos; Ambulación Precoz; Servicios de Fisioterapia.
Os indivíduos com câncer representam cerca de 20% de todas as admissões em unidades de terapia intensiva (UTI)1 e internam para o manejo de distúrbios fisiopatológicos subjacentes, como o estado pós-operatório, sepse e insuficiência respiratória, além de problemas específicos de malignidade, incluindo disfunções orgânicas em virtude do câncer expansivo ou infiltrativo, de emergências oncológicas, quimiotoxicidade, radiotoxicidade, síndrome de lise tumoral, entre outros2-4.
A fadiga e a redução da capacidade funcional são consequências do câncer e de suas formas de tratamento5. Além disso, a imobilização advinda da permanência em UTI gera uma série de complicações que incluem disfunções severas do sistema osteomioarticular e respiratório, como a fraqueza muscular e a imobilidade respiratória decorrente da ventilação mecânica (VM), o que prejudica a ativação neuromuscular e, consequentemente, a função muscular, resultando em deterioração da força inspiratória diafragmática e prejudicando inclusive o processo de desmame6,7.
Com o avanço das tecnologias em saúde, houve uma redução do número de mortes de pacientes com câncer na UTI. Contudo, naqueles com declínio de funcionalidade e presença de outras disfunções orgânicas, essa redução de mortalidade é menos evidente8. Nesse sentido, torna-se importante avaliar a funcionalidade dessa população para o fornecimento de informações diagnósticas e prognósticas em pesquisas e na prática clínica9.
Diante disso, o presente estudo objetiva analisar a funcionalidade de indivíduos com doença oncológica internados em UTI.
Estudo observacional do tipo coorte prospectiva, no qual foram avaliados indivíduos internados em três UTI de um hospital de alta complexidade do interior do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Ao todo, as UTI contêm 40 leitos.
Este estudo faz parte de um projeto maior intitulado “Funcionalidade e condições de saúde de indivíduos hospitalizados em unidade de terapia intensiva”, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Hospital e pelo CEP da Universidade de Passo Fundo, sob o número de protocolo 5.379.902 (CAAE: 57717222.3.0000.5342). O estudo está de acordo com as Declarações de Helsinque e a Resolução 466/1210 do Conselho Nacional de Saúde, que trata sobre as condições éticas de estudos que envolvem seres humanos. Os participantes, ou seus responsáveis, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) com explicação prévia e esclarecimento de dúvidas.
Os critérios de inclusão para este estudo foram indivíduos com diagnóstico de câncer, indivíduos internados nas UTI por mais de 24 horas, com idade igual ou superior a 18 anos.
De acordo com a literatura, aproximadamente 20% dos indivíduos internados em UTI são indivíduos com diagnóstico oncológico1. No presente estudo, foram incluídos 42 indivíduos oncológicos críticos, o tamanho da amostra justifica-se pelo período de coleta de dados.
A coleta de dados ocorreu entre abril e setembro de 2022. Nesse período, os pacientes recebiam atendimento fisioterapêutico diariamente. Sete examinadores, todos fisioterapeutas, foram previamente treinados para a aplicação dos protocolos avaliativos desta pesquisa. Mediante o aceite do indivíduo ou dos responsáveis por meio da assinatura do TCLE, iniciou-se a coleta de dados, que aconteceu em dois momentos: até 24 horas após a admissão do indivíduo na UTI e até 24 horas após a alta da UTI, quando esta ocorreu. Indivíduos que apresentaram o óbito como desfecho foram avaliados apenas na admissão.
Os dados sociodemográficos foram coletados por meio de questionário contendo idade, sexo, etnia e estado civil. Os dados clínicos, como tempo de internação na UTI, localização tumoral, presença de metástase, tratamentos oncológicos realizados, suporte ventilatório, terapia renal substitutiva (TRS), e o desfecho alta ou óbito foram coletados do prontuário do paciente.
A funcionalidade foi avaliada por meio da Perme Intensive Care Unit Mobility Score11, com 15 itens, agrupados em sete categorias: estado mental, potenciais barreiras à mobilidade, força funcional, mobilidade no leito, transferências, dispositivos de auxílio para deambulação e medida de resistência. O escore final varia de 0 a 36 pontos e, quanto maior a pontuação, melhor é a funcionalidade do indivíduo.
Os dados coletados foram codificados e armazenados em um banco de dados no software estatístico IBM SPSS Statistics12 20.0. Para a análise, foram utilizadas as estatísticas descritiva e inferencial. As variáveis qualitativas foram apresentadas empregando-se distribuições de frequências univariadas (absolutas e relativas). As variáveis quantitativas foram descritas por medidas de tendência central (média) e variabilidade (desvio-padrão). Para comparar a pontuação dos domínios e do escore final da Perme Intensive Care Unit Mobility Score11 na admissão e alta da UTI, foi utilizado o teste t de amostras pareadas. Para relacionar as variáveis qualitativas ao escore final de funcionalidade da Perme Intensive Care Unit Mobility Score, foi utilizado o teste t13 de amostras independentes. Por fim, para correlacionar as variáveis quantitativas (idade e tempo de internação) ao escore final de funcionalidade da Perme Intensive Care Unit Mobility Score, foi utilizado o teste de correlação de Pearson14. O nível de significância adotado foi de p < 0,05.
Durante a coleta de dados, foram avaliados 164 indivíduos, dos quais 122 foram excluídos (19 indivíduos não aceitaram participar do estudo e 103 não apresentaram diagnóstico de doença oncológica). Ao final, foram incluídos neste estudo 42 indivíduos (Figura 1).
Figura 1. Fluxograma de seleção amostral
Legenda: UTI = unidades de terapia intensiva.
De acordo com a caracterização da amostra, observou-se que a média de idade foi 62,86 ± 16,59 anos. Houve predomínio do sexo masculino (54,8%), da cor branca e de indivíduos com companheiros. O tempo médio de internação foi de 9,45 ± 12,03 dias. Os tipos de neoplasias mais prevalentes foram no sistema gastrointestinal, no sistema ósseo, no sistema nervoso central, no pulmão e mediastino, na próstata e na cabeça e pescoço, respectivamente. Não houve indivíduos com neoplasias hematológicas no estudo. A modalidade de tratamento oncológico mais observada foi a cirurgia. Ainda, a maioria da amostra não apresentou metástase, não utilizou suporte ventilatório e não realizou TRS. O índice de mortalidade foi de 21,4% (Tabela 1).
Tabela 1. Caracterização dos indivíduos com doença oncológica internados em UTI. Passo Fundo, RS, 2022
Variáveis |
Representação |
Idade (média ± desvio-padrão), anos |
62,86 ± 16,59 |
Sexo [n (%)] |
|
Masculino |
23 (54,8) |
Feminino |
19 (45,2) |
Cor [n (%)] |
|
Branca |
39 (92,9) |
Não branca |
03 (7,3) |
Estado civil [n (%)] |
|
Com companheiro |
27 (64,3) |
Sem companheiro |
06 (14,3) |
Tempo de internação em UTI (média ± desvio-padrão), dias |
9,45 ± 12,03 |
Localização do tumor [n (%)] |
|
Sistema gastrointestinal |
17 (40,5) |
Sistema ósseo |
05 (11,9) |
Sistema nervoso central |
05 (11,9) |
Pulmão e mediastino |
05 (11,9) |
Próstata |
04 (9,8) |
Cabeça e pescoço |
03 (7,1) |
Outros locais |
08 (19,0) |
Tratamento oncológico [n (%)] |
|
Não realizou tratamento oncológico |
05 (11,9) |
Cirurgia |
26 (61,9) |
Quimioterapia |
21 (50,0) |
Radioterapia |
09 (21,4) |
Metástase [n (%)] |
|
Não |
36 (85,7) |
Sim |
06 (14,3) |
Óbito [n (%)] |
|
Não |
33 (78,6) |
Sim |
09 (21,4) |
Suporte ventilatório [n (%)] |
|
Não necessitou de suporte ventilatório |
26 (61,9) |
Ventilação mecânica não invasiva |
02 (4,8) |
Ventilação mecânica invasiva |
14 (33,3) |
Terapia renal substitutiva [n (%)] |
|
Não |
37 (88,1) |
Sim |
05 (11,9) |
Legendas: n = valor absoluto; % = valor relativo; UTI = unidade de terapia intensiva.
Ao analisar a funcionalidade, observa-se que os indivíduos apresentaram melhora em todos os domínios da Perme Intensive Care Unit Mobility Score na alta da UTI em relação à admissão, bem como no escore final do questionário, exceto nos domínios “estado mental” e “atividade endurance” (Tabela 2).
Tabela 2. Funcionalidade dos indivíduos com doença oncológica internados em UTI. Passo Fundo, RS, 2022
Domínios |
Admissão (n = 33) |
Alta (n = 33) |
IC95% |
p |
Estado mental |
2,42 ± 1,09 |
2,82 ± 0,72 |
-0,809 – 0,21 |
0,062 |
Barreiras à mobilidade |
1,55 ± 0,93 |
2,15 ± 0,97 |
-0,982 – -0,231 |
0,004 |
Força funcional |
3,03 ± 1,46 |
3,58 ± 1,03 |
-1,048 – -0,043 |
0,045 |
Mobilidade no leito |
2,55 ± 2,63 |
3,97 ± 2,05 |
-2,466 – -0,383 |
0,005 |
Transferências |
2,48 ± 3,48 |
5,09 ± 3,48 |
-4,097 – -1,115 |
0,000 |
Marcha |
0,70 ± 1,26 |
1,18 ± 1,31 |
-0,979 – -0,010 |
0,018 |
Atividade endurance |
0,42 ± 0,90 |
0,64 ± 0,89 |
-0,474 – 0,050 |
0,161 |
Total |
13,15 ± 9,27 |
19,42 ± 8,38 |
-9,499 – -3,047 |
0,000 |
Legendas: média ± desvio-padrão; n = valor absoluto; IC95% = intervalo de confiança; UTI = unidades de terapia intensiva; valores em negrito (p < 0,05).
Houve correlação inversamente proporcional entre o nível de funcionalidade e o tempo de internação, tanto na admissão quanto na alta da UTI. Não houve correlação entre a funcionalidade e a idade (Tabela 3).
Tabela 3. Correlação entre a funcionalidade e o tempo de internação em indivíduos com doença oncológica internados em UTI. Passo Fundo, RS, 2022
|
Admissão |
Alta |
||
Correlações |
(ρ) |
p |
ρ |
p |
Funcionalidade vs. idade |
0,150 |
0,344 |
0,289 |
0,103 |
Funcionalidade vs. tempo de internação |
– 0,322 |
0,037 |
– 0,532 |
0,001 |
Legendas: valores em negrito (p < 0,05); ρ (coeficiente de correlação).
Os indivíduos com neoplasia do sistema gastrointestinal apresentaram o maior índice de funcionalidade quando comparados aos indivíduos com outros tipos tumorais na admissão na UTI. Já os indivíduos com tumores ósseos e do sistema nervoso central apresentaram menor funcionalidade quando comparados aos demais tipos tumorais na admissão e na alta da UTI, respectivamente. Os indivíduos que utilizaram suporte ventilatório apresentaram menor nível funcional na admissão e alta. Além disso, os indivíduos com menor nível funcional na admissão apresentaram como desfecho o óbito. (Tabela 4).
Tabela 4. Relação entre a funcionalidade e as variáveis sociodemográficas e clínicas dos indivíduos com doença oncológica internados em UTI. Passo Fundo, RS, 2022
Legendas: média ± desvio-padrão; n = valor absoluto; IC95% = intervalo de confiança; UTI = unidades de terapia intensiva; valores em negrito (p < 0,05).
Evidencia-se, neste estudo, a melhora da funcionalidade dos indivíduos com doença oncológica no decorrer do período de internação na UTI, havendo uma correlação inversamente proporcional entre a funcionalidade e o tempo de internação na admissão e na alta. Além disso, a VM demonstrou ser preditora de menor capacidade funcional, e o óbito foi o desfecho para pacientes com pior quadro funcional na admissão. Os indivíduos com neoplasia do sistema gastrointestinal apresentaram maior funcionalidade na admissão na UTI e os pacientes com tumores ósseos e do sistema nervoso central apresentaram os menores escores de funcionalidade na admissão e na alta, respectivamente.
Em virtude dos avanços no tratamento de neoplasias, o número de indivíduos que vivem com câncer está aumentando15. No entanto, complicações relacionadas ao câncer e as suas modalidades de tratamento são comuns durante o curso da doença16 e podem levar a um aumento da demanda por recursos da UTI4.
Diante disso, no presente estudo, os indivíduos com doença oncológica representaram 25,60% do total de internados nas UTI pesquisadas, corroborando a literatura existente1, 17, 18 que identificou o diagnóstico de câncer em 20% dos indivíduos internados. Entretanto, ressalta-se que esse número de admissões pode ser reduzido em virtude da implementação de cuidados paliativos em indivíduos com câncer avançado19.
A média de idade dos participantes foi de 62,86±16,59 anos, resultado semelhante a outros estudos3,20-22. Esse achado pode ser relacionado ao aumento da incidência de câncer no mundo causado pela crescente expectativa de vida e pelo alto nível de comorbidade, fragilidade, alterações fisiológicas relacionadas ao avanço da idade, que podem complicar o tratamento do câncer. Além disso, entre as alterações fisiológicas do envelhecimento, destacam-se as alterações biofísicas na matriz extracelular, alterações em fatores secretados e no sistema imunológico, que contribuem para um microambiente tumoral permissivo23,24.
Não houve correlação entre o nível de funcionalidade e a idade dos indivíduos oncológicos internados nas UTI na admissão e na alta. No entanto, sabe-se que o declínio funcional pode ser predito não somente pela idade cronológica avançada, mas também pelas demais características do paciente, da doença e de fatores relacionados ao tratamento25.
Esta amostra foi composta, na maior parte, pelo sexo masculino (54,8%), o que vai ao encontro dos achados de outros estudos22,25,26, os quais observaram prevalência de homens em suas amostras, sendo elas compostas por indivíduos oncológicos ou não. Isso reflete as projeções de 983.160 novos casos de câncer em homens para o ano de 2022, número maior do que o projetado para mulheres com 934.870 novos casos27.
As razões para o maior número de câncer e de admissões na UTI em homens não são bem esclarecidas, mas podem estar relacionadas ao menor autocuidado do homem, além da maior exposição do homem aos fatores ambientais e biológicos, como tabagismo. Diferenças sexuais em hormônios endógenos, função e resposta imune também podem desempenhar um papel influenciador28.
O tempo médio de internação nas UTI foi de 9,45±12,03 dias, um valor maior em relação ao tempo descrito por outros autores3 que evidenciaram um período em torno de três dias. Por outro lado, foi menor em comparação a outro estudo29, no qual o tempo registrado foi de 30 dias.
As diferenças nas representações dos dias de permanência em UTI podem variar em virtude da natureza eletiva ou emergente da admissão, gravidade do quadro clínico, por exemplo, necessidade de suporte ventilatório ou TRS3 e podem ser relacionadas com a funcionalidade apresentada pelo indivíduo na admissão, conforme evidenciado nesta pesquisa.
Observa-se, neste estudo, uma relação inversamente proporcional entre a funcionalidade e o tempo de internação na admissão e na alta da UTI. Nesse sentido, compreende-se que os indivíduos admitidos na UTI com pior quadro funcional ficaram internados por maior tempo e, na alta, ainda apresentaram menor escore de funcionalidade em comparação àqueles que ficaram internados por menor tempo. Assim, quanto maior o tempo de internação na UTI, maior a deterioração funcional do indivíduo e menor a funcionalidade no momento da alta. Isso também foi evidenciado por outros autores26,30-32.
A neoplasia do sistema gastrointestinal foi identificada em 40,5% da amostra, representando o principal tipo tumoral identificado, informação corroborada pela literatura3. Sabe-se que o câncer colorretal é o tipo tumoral mais comum do sistema gastrointestinal e seu tratamento pode ser debilitante, sendo a cirurgia a modalidade de primeira escolha, com ou sem terapia adjuvante. O procedimento cirúrgico está associado a dor, distúrbios do sono, fadiga, náuseas, vômitos e inatividade, que afetam a funcionalidade33. Entretanto, identificou-se que os indivíduos com neoplasia do sistema gastrointestinal apresentaram melhores escores de funcionalidade em comparação aos indivíduos com outros tipos tumorais na admissão na UTI, o que vai ao encontro da literatura, a qual identificou que pacientes com câncer gástrico e colorretal apresentaram menor incapacidade funcional quando comparados a outros tipos tumorais34. Além disso, um estudo analisou a funcionalidade pré e pós-operatória de pacientes idosos com câncer colorretal e não identificou declínio funcional após a cirurgia35.
Neste estudo, os indivíduos com tumores ósseos apresentaram pior condição funcional em comparação aos indivíduos oncológicos sem tumores ósseos no momento da admissão na UTI. Isso pode ser justificado pelo extenso comprometimento musculoesquelético causado pelo tratamento prioritário, que é a abordagem cirúrgica, muitas vezes combinada com quimioterapia neoadjuvante e adjuvante ou radioterapia36. Além disso, no decorrer do período de internação, a funcionalidade desses indivíduos melhorou, logo no momento da alta não houve diferença entre a funcionalidade dos pacientes com ou sem tumores ósseos.
Na alta da UTI, os indivíduos com neoplasia do sistema nervoso central apresentaram menor funcionalidade em comparação aos indivíduos sem esse tipo tumoral. Esse resultado pode ser influenciado por muitos fatores além da imobilidade advinda da permanência em UTI, tais como topografia da lesão, taxa de crescimento e duração da doença, grau de malignidade, idade do paciente e tipo de tratamento realizado. E as lesões no lobo frontal (aproximadamente 26%) podem causar paresia de membros, apraxia, ataxia e distúrbios da marcha, deteriorando a funcionalidade37. Assim, compreende-se que, embora os indivíduos tenham apresentado nível de funcionalidade semelhante aos outros indivíduos na admissão, estes não evoluíram no quadro funcional tanto quanto seus pares por conta das complicações desse tipo de câncer.
Não houve relação entre o nível de funcionalidade dos indivíduos com doença oncológica e os tipos de tratamento oncológico realizados, tanto na admissão quanto na alta das UTI. Pode-se compreender que os efeitos em longo prazo sejam debilitantes à funcionalidade do indivíduo, pois, embora não tenha sido avaliado há quanto tempo o tratamento oncológico vem sendo realizado, na literatura, investigam-se os efeitos tardios dos tratamentos voltados ao câncer, abordando, por exemplo, as sequelas funcionais provocadas por cirurgias extensas e/ou mutiladoras e seus sintomas persistentes4.
Observou-se que apenas 14,3% dos pacientes possuíam metástases, outros estudos identificaram 27% e 18,7%9,17. Além disso, não houve relação entre o nível de funcionalidade dos indivíduos oncológicos e a ocorrência de metástase, tanto na admissão quanto na alta. Considerando a desproporcionalidade entre pacientes com câncer primário e pacientes com metástases e que a implementação de cuidados paliativos pode reduzir o número de admissões de pacientes com câncer avançado19, compreende-se a não diferença do nível de funcionalidade entre os indivíduos com metástase ou não.
Ao longo dos anos, houve uma redução significativa da mortalidade de indivíduos com doença oncológica em UTI, porém menos evidente naqueles com maiores disfunções orgânicas e declínio de funcionalidade8. Isso foi observado neste estudo, pois os indivíduos oncológicos que tiveram como desfecho o óbito (21,4% da amostra) foram os que apresentaram menor funcionalidade na admissão na UTI. Além disso, os achados desta pesquisa corroboram uma investigação que analisou a funcionalidade de indivíduos com covid-19 internados em UTI, onde aqueles que não obtiveram uma melhora na funcionalidade durante a internação apresentaram como desfecho o óbito31.
No presente estudo, a maioria dos pacientes não realizou TRS, apenas 11,9% dos indivíduos a realizaram, o que também foi identificado em outro estudo, no qual 4% dos pacientes oncológicos críticos com lesão renal aguda (LRA) necessitaram de TRS durante a permanência na UTI38. A LRA nesses pacientes ocorre como consequência do próprio câncer (obstrução do trato urinário, síndrome de lise tumoral aguda), tratamentos anticancerígenos (nefropatia induzida por drogas, procedimentos cirúrgicos de grande porte) ou condições clínicas graves (sepse, hipovolemia)39.
Não houve relação entre o nível de funcionalidade dos indivíduos com doença oncológica e o uso de TRS na admissão e na alta, embora se saiba que fatores catabólicos, como acidose, inflamação, uso de corticosteroides associados a comorbidades e estilo de vida sedentário, podem levar à perda de massa muscular em pacientes em TRS39.
A VM é um dos itens analisados no domínio “potenciais barreiras à mobilidade” e, durante o período de internação na UTI, 33,3% dos indivíduos avaliados necessitaram de VM. Esse resultado está de acordo com um estudo recente27 (39,4%), porém é superior aos resultados de outras pesquisas4 (15,5%) e (18,8%)40.
Observou-se que os indivíduos com doença oncológica admitidos nas UTI apresentaram funcionalidade reduzida e os que necessitaram de VM foram os que demonstraram capacidade funcional ainda menor na admissão, assim como a utilização de suporte ventilatório invasivo demonstrou ser indicativa de menor funcionalidade na alta da UTI, resultado apresentado por outros autores em 202232, o que pode ser potencializado por períodos prolongados de VM30.
O impacto da VM e seu tempo de duração na funcionalidade é justificado pela ação muscular respiratória majoritariamente passiva que leva a uma redução da ativação neuromuscular e deterioração da força inspiratória diafragmática, o que dificulta o processo de desmame e extubação7. Somado a isso, a utilização concomitante e frequente de sedativos e bloqueadores neuromusculares resulta em imobilidade e consequente desenvolvimento de fraqueza muscular adquirida em UTI41,42. Além disso, a VM pode não somente indicar redução de funcionalidade, como pode ser definida como um forte preditor de mau prognóstico e mortalidade em indivíduos oncológicos17.
Considerando a capacidade funcional do indivíduo com doença oncológica prévia à admissão na UTI, o impacto do tempo de internação e de duração em VM na funcionalidade, assim como a fraqueza muscular adquirida em UTI, faz-se necessária a implementação de protocolos seguros de mobilização precoce dessa população, pois, entre seus benefícios, estão: redução da fraqueza muscular adquirida em UTI, melhora das capacidades e volumes pulmonares, diminuição da duração da VM, aumento das taxas de sucesso de desmame e extubação, redução do risco e duração de delirium, melhora da funcionalidade e diminuição do tempo de internação, promovendo, assim, maior rotatividade de leitos e redução na taxa de readmissões na UTI43.
O fisioterapeuta é o profissional qualificado para a mobilização precoce e reabilitação do indivíduo internado em UTI, proporcionando melhora da capacidade funcional motora e da condição respiratória, objetivando, em longo prazo, a reinserção do indivíduo na sociedade após a alta hospitalar e a melhora da qualidade de vida44. A atuação desse profissional nas UTI, em conjunto com a equipe multiprofissional qualificada, pode ter sido a grande responsável pela melhora da capacidade funcional apresentada pelos pacientes oncológicos críticos no presente estudo.
Nesta pesquisa, observou-se como limitações a avaliação e a reavaliação do indivíduo, que não foram realizadas pelo mesmo avaliador. Entretanto, o grupo de profissionais destinados à coleta de dados foi previamente treinado para minimizar possíveis vieses. Isso não inviabilizou a geração dos dados do presente estudo e a difusão do conhecimento.
Os indivíduos com câncer admitidos em UTI apresentaram funcionalidade reduzida na admissão. No entanto, houve uma melhora durante a sua permanência. Os indivíduos que utilizaram suporte ventilatório e tiveram maior tempo de internação apresentaram menores níveis de funcionalidade. A menor funcionalidade na admissão levou ao óbito como desfecho. Assim, os protocolos de mobilização precoce devem ser implementados em UTI para potencializar a melhora da capacidade funcional dos indivíduos com doença oncológica.
CONTRIBUIÇÕES
Todos os autores contribuíram substancialmente na concepção e no planejamento do estudo; na obtenção, análise e interpretação dos dados; na redação e revisão crítica; e aprovaram a versão final a ser publicada.
DECLARAÇÃO DE CONFLITO DE INTERESSES
Nada a declarar.
FONTES DE FINANCIAMENTO
Não há.
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Recebido em 5/3/2024
Aprovado em 10/6/2024
Editora-científica: Anke Bergmann. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1972-8777
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