ARTIGO ORIGINAL

 

A Percepção dos Pacientes Onco-Hematológicos sobre Cuidado Paliativo Exclusivo

The Perception of Onco-Hematological Patients about Exclusive Palliative Care

La Percepción de los Pacientes Onco-Hematológicos sobre Cuidado Paliativo Exclusivo

 

 

https://doi.org/10.32635/2176-9745.RBC.2024v70n4.4655

 

Paulo Sérgio Lima Donza1; Marlise Barros de Medeiros2

 

1,2Instituto Nacional de Câncer (INCA). Rio de Janeiro (RJ), Brasil.

1E-mail: paulodonza@gmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-5663-5721

2E-mail: marlisemedeiros@gmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-7813-6296

 

Endereço para correspondência: Paulo Sérgio Lima Donza. Avenida Mem de Sá, 93, apto. 1002 – Centro. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. CEP 20230-150. E-mail: paulodonza@gmail.com

 

 

RESUMO

Introdução: Apesar dos avanços científicos e da disseminação de informações sobre o câncer, muitos pacientes são diagnosticados em estágios avançados, com poucas chances de cura. Portanto, compreender o ponto de vista do paciente é essencial para aprimorar a abordagem da equipe ao comunicar a proposta paliativa. Objetivo: Compreender a percepção que os pacientes possuem quanto aos cuidados paliativos exclusivos. Método: Estudo qualitativo, descritivo, pautado na análise fenomenológica. A pesquisa foi realizada com pacientes internados em um setor onco-hematológico, maiores de 18 anos, em cuidados paliativos exclusivos, a partir da pergunta norteadora “Qual é a sua percepção sobre cuidados paliativos exclusivos?” Resultados: O estudo contou com a participação de dez pacientes com idade entre 33 e 81 anos, havendo predominância do sexo feminino (70%). Revelaram-se cinco tópicos principais de interesse, incluindo aceitação e transferência para unidades de cuidados paliativos. A discussão enfatiza a percepção da doença como algo que afeta não apenas o corpo, mas também a forma como os pacientes se relacionam com o mundo. Conclusão: Os enfermeiros possuem um papel crucial na assistência aos pacientes em cuidados paliativos exclusivos, e a comunicação interdisciplinar é importante para enfrentar desafios, como a falta de conhecimento sobre os cuidados paliativos e a estigmatização dessas unidades. A pesquisa destaca a necessidade de abordagens completas, equitativas e humanizadas para melhorar o tratamento dos pacientes em cuidados paliativos, enfatizando a importância da capacitação profissional para lidar com comunicações difíceis nesse contexto.

Palavras-chave: Cuidados Paliativos; Comunicação em Saúde; Assistência Terminal; Enfermagem Oncológica.

 

 

ABSTRACT

Introduction: Despite scientific advances and the dissemination of information about cancer, many patients are diagnosed at advanced stages with few chances of cure. Therefore, understanding the patient's perspective is essential to enhance the team's approach when communicating the palliative care proposal. Objective: To understand the perception that patients have about exclusive palliative care. Method: Qualitative, descriptive study, based on phenomenological analysis. The research was conducted with patients admitted to an oncology-hematology unit, over 18 years old, receiving exclusive palliative care, according to the research question "What is your perception of exclusive palliative care?" Results: The study involved ten patients aged 33 to 81 years, with a predominance of females (70%). Five main topics of interest were revealed, including acceptance and transfer to palliative care units. The discussion emphasizes the perception of the illness as something that affects not only the body but also how patients relate to the world. Conclusion: Nurses play a crucial role in assisting patients receiving exclusive palliative care, and interdisciplinary communication is important in facing challenges such as lack of knowledge about palliative care and the stigmatization of these units. The research highlights the need for comprehensive, equitable, and humanized approaches to improve the treatment of patients in palliative care, emphasizing the importance of professional training to deal with difficult communications in this context.

Key words: Palliative Care; Health Communication; Terminal Care; Oncological Nursing.

 

 

RESUMEN

Introducción: A pesar de los avances científicos y la difusión de información sobre el cáncer, muchos pacientes son diagnosticados en etapas avanzadas, con pocas posibilidades de cura. Por lo tanto, comprender la perspectiva del paciente es esencial para mejorar el enfoque del equipo al comunicar la propuesta de cuidados paliativos. Objetivo: Comprender la percepción que los pacientes tienen sobre los cuidados paliativos exclusivos. Método: Estudio cualitativo, descriptivo, basado en el análisis fenomenológico. La investigación se realizó con pacientes ingresados en una unidad onco-hematológica, mayores de 18 años, en cuidados paliativos exclusivos, utilizando la pregunta orientadora "¿Cuál es su percepción sobre los cuidados paliativos exclusivos?" Resultados: El estudio contó con la participación de diez pacientes de entre 33 y 81 años, con predominio de mujeres (70%). Se revelaron cinco temas principales de interés, incluida la aceptación y transferencia a unidades de cuidados paliativos. La discusión enfatiza la percepción de la enfermedad como algo que afecta no solo al cuerpo, sino también a la forma en que los pacientes se relacionan con el mundo. Conclusión: Los enfermeros desempeñan un papel crucial en la asistencia a pacientes en cuidados paliativos exclusivos, y la comunicación interdisciplinaria es importante para enfrentar desafíos como la falta de conocimiento sobre los cuidados paliativos y la estigmatización de estas unidades. La investigación resalta la necesidad de enfoques integrales, equitativos y humanizados para mejorar el tratamiento de pacientes en cuidados paliativos, haciendo hincapié en la importancia de la capacitación profesional para manejar comunicaciones difíciles en este contexto.

Palabras clave: Cuidados Paliativos; Comunicación en Salud; Cuidado Terminal; Enfermería Oncológica.

 

 

INTRODUÇÃO

O câncer é uma das principais causas de morte prematura em muitos países, com incidência crescente em razão de mudanças demográficas e epidemiológicas globais, como a redução da fertilidade, o envelhecimento populacional e as mudanças comportamentais e estruturais na sociedade que aumentam os fatores de risco associados a essa doença1.

 

O adoecimento pelo câncer determina diversas modificações em várias áreas da vida dos pacientes, principalmente no contexto familiar. Ao receber o diagnóstico de câncer, muitos tentam reorganizar todas as suas demandas sociais com o objetivo de minimizar as suas dores e das pessoas que compõem a sua rede de apoio. Esse diagnóstico, muitas vezes, abre caminho para uma incerteza do que virá pela frente, se será doloroso, extenso, se há possibilidade de cura ou morte2.

 

Apesar dos avanços científicos e da disseminação de informações sobre o câncer, muitos pacientes são diagnosticados em estágios avançados da doença, com poucas chances de cura. Os cuidados paliativos (CP) proporcionam uma perspectiva mais ampla de atuação aos profissionais de saúde, buscando melhorar a qualidade de vida dos pacientes por meio do alívio da dor e do sofrimento causados pela progressão do câncer2,3. O CP foi definido como:

 

a prevenção e alívio do sofrimento de pacientes e suas famílias, sendo eles adultos e crianças, enfrentando problemas físicos, psicológicos, sociais e espirituais associados a doenças que ameaçam a vida. Os maiores confortos desses problemas podem vir por meio da prevenção e alívio do sofrimento, identificação precoce, avaliação e tratamento4.

 

Os cuidados paliativos exclusivos (CPE), que é uma modalidade de tratamento, visa proporcionar alívio dos sintomas e melhora na qualidade de vida de pacientes com doenças graves e/ou avançadas5. O CPE possui uma abordagem multidisciplinar composta por vários profissionais de saúde e tem como objetivo oferecer conforto e suporte aos pacientes em todas as dimensões de sua vida, incluindo aspectos físicos, emocionais, sociais e espirituais5,6.

 

Em relação ao conhecimento sobre CP, é comum que pacientes sintam medo e dúvidas sobre essa modalidade de cuidado, especialmente se não foram informados adequadamente. Em situações cuja equipe de saúde deveria ter um diálogo aberto e honesto com o paciente sobre a sua proposta terapêutica, muitas vezes, há uma falta de comunicação adequada que colabore para que essas dúvidas criem dimensões maiores impedindo até que o doente participe das tomadas de decisões sobre o seu plano terapêutico5.

 

Segundo um estudo realizado, pacientes que enfrentam malignidades onco-hematológicas frequentemente desenvolvem quadros de depressão, ansiedade e estresse após o diagnóstico7. A jornada de um paciente desde o diagnóstico até o tratamento e a perspectiva de cura frequentemente é marcada por angústia e sofrimento, mas também por esperança e persistência. É plausível argumentar que uma abordagem precoce de um plano de cuidados visando à qualidade de vida e apoiando uma jornada de resiliência seja fundamental para ajudá-los a enfrentar as adversidades. No entanto, várias barreiras dificultam a compreensão e aceitação desse tipo de cuidado, especialmente quando a proposta é apresentada tardiamente em um contexto de fim de vida6,7.

 

Nesse sentido, este estudo foi conduzido visando responder à seguinte pergunta norteadora: “Qual é a percepção dos pacientes onco-hematológicos sobre cuidados paliativos exclusivos?” Com isso, o objetivo desta pesquisa é compreender a percepção que os pacientes possuem quanto aos CPE em um instituto de referência nacional em câncer.

 

MÉTODO

Estudo qualitativo, descritivo, pautado na análise fenomenológica. A pesquisa foi conduzida em uma enfermaria destinada ao tratamento e cuidados de pacientes onco-hematológicos. Atualmente, esse setor apresenta 26 leitos ativos, quatro quartos de leito único, e oito enfermarias compartilhadas.

 

Os participantes do estudo foram pacientes internados em um setor onco-hematológico, já deliberados em CP, com idade a partir de 18 anos, de um instituto de referência em tratamento de câncer no Estado do Rio de Janeiro. Tratando-se de pesquisa qualitativa, a amostra não é predeterminada quantitativamente. O número de participantes foi determinado por técnica de saturação, que consiste em coletar os dados até elementos tornarem-se repetitivos8.

 

Para garantir a qualidade dos dados coletados, pacientes em condições de saúde grave ou que não eram representativos da população-alvo do estudo foram excluídos. Além disso, pacientes com deficiência cognitiva ou problemas de comunicação também foram excluídos, visando obter respostas precisas e coerentes. Esses critérios de exclusão buscaram assegurar a confiabilidade dos resultados obtidos.

 

Para coletar dados, entrevistas fenomenológicas foram conduzidas com pacientes entre agosto e outubro de 2023, explorando suas experiências em relação ao tema proposto. As entrevistas ocorreram em um ambiente reservado dentro do setor, permitindo que os pacientes expressassem suas experiências de forma aberta, enquanto o pesquisador norteava o diálogo. Pacientes que não podiam se deslocar foram entrevistados à beira do leito, com sua autorização. A questão principal da entrevista foi a percepção dos pacientes sobre CPE.

 

Os dados obtidos foram analisados de forma fenomenológica em três etapas: a descrição do fenômeno, a redução e a compreensão. A primeira etapa consiste em descrever e revelar o fenômeno vivido, que é manifestado pela linguagem e transcrito em forma de texto para ser apreciado e compreendido. A segunda etapa, a redução, tem como objetivo definir a essência do fenômeno descrito. Por fim, a terceira etapa, a compreensão fenomenológica, ocorre simultaneamente com a interpretação9.

 

Os participantes autorizaram a sua participação no estudo por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), recebendo um código de identificação “E” (entrevistado) para garantir o anonimato. Sua participação foi voluntária, com liberdade para desistir a qualquer momento. As informações coletadas foram usadas apenas para fins de pesquisa e serão mantidas anonimamente.

 

As entrevistas foram gravadas e armazenadas em um dispositivo controlado pelos pesquisadores. Após a transcrição, os áudios foram excluídos permanentemente. Medidas de segurança eletrônica foram implementadas, incluindo programas antimalware, para proteger os dados coletados.

 

A presente pesquisa poderia ter oferecido riscos relacionados ao desconforto emocional do paciente em relatar suas vivências dentro do ambiente hospitalar. Caso fosse identificado qualquer sinal de que a entrevista estivesse gerando desconforto, ela seria interrompida imediatamente e o assunto discutido.

 

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) sob o número de parecer 6176757 (CAAE: 70123923.0.0000.5274), com base na Resolução n.º 46610 de 12 de dezembro de 2012 do Conselho Nacional de Saúde.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

No período entre setembro e outubro de 2023, foram conduzidas entrevistas que proporcionaram uma visão significativa do nível de conhecimento dos pacientes entrevistados sobre CPE. O estudo contou com a participação de dez pacientes com idade entre 33 e 81 anos, havendo predominância do sexo feminino (70%).

 

No que diz respeito aos outros dados demográficos, a maioria dos participantes encontrava-se na condição de solteiro(a) (50%), seguida da condição de casado(a) (30%) e viúvo(a) (20%). Quanto à escolaridade e à situação laboral, respectivamente, houve predomínio do 2º grau completo (50%), e a maioria dos participantes possuía um vínculo empregatício conforme apresentado na Tabela 1).

 

A síntese dos significados apresentados demonstra uma compreensão de um período de extrema sensibilidade tanto para os profissionais de saúde quanto para os pacientes e seus familiares, quando o diagnóstico de neoplasia é comunicado, independentemente do estágio da doença. Nesse momento, são compartilhadas informações cruciais sobre o tratamento, prognóstico, adaptações na rotina diária, alterações corporais e outros aspectos. A relevância dessa comunicação frequentemente a vincula a uma notícia desfavorável, dependendo do impacto emocional que exerce sobre os envolvidos11.

 

As interações entre as diversas necessidades dos pacientes, sejam elas físicas, psicológicas, sociais ou econômicas, foram destacadas. Nesse cenário, é importante reconhecer que todas essas necessidades estão relacionadas entre si, emergindo conexões entre o sofrimento psicológico, o acesso a uma rede de saúde qualificada e o contexto socioeconômico dos pacientes, elementos fundamentais para uma abordagem abrangente e eficaz no tratamento do câncer3,6.

 

A Tabela 2 evidencia os tópicos resultantes das entrevistas com os pacientes quando explorados os seus conhecimentos sobre os CPE. Esses cinco elementos foram desenvolvidos com base nas respostas fornecidas em decorrência da pergunta norteadora. Para a identificação dos participantes, utilizou-se 'E' para representar 'entrevistado', seguido de um código numérico com base na idade dos envolvidos em ordem crescente.

 

Os resultados destacaram cinco principais tópicos de interesse. Em primeiro lugar, constatou-se que 30% dos pacientes foram devidamente introduzidos no contexto do CP após o profissional médico relatar o seguimento do seu tratamento. Por outro lado, uma parcela considerável, representando 70%, não tiveram qualquer abordagem referente aos CP. Além disso, 20% dos pacientes, após receberem a notícia de que seriam submetidos aos CPE, manifestaram a não aceitação desses cuidados, enquanto outros 20% demonstraram aceitar essa abordagem. Por fim, 40% dos pacientes compartilharam suas percepções sobre a possibilidade de transferência para a unidade de referência em CP.

 

Como evidenciam os resultados da pesquisa, constata-se que 70% dos pacientes não receberam uma abordagem adequada sobre CP. Essa conduta é de extrema importância para garantir qualidade de vida, conforto e dignidade até o fim da vida. Profissionais de saúde qualificados em CP devem possuir habilidades específicas para lidar com questões complexas, como comunicação sensível, tomada de decisões compartilhadas e planejamento avançado de cuidados.

 

A forma como uma notícia desfavorável é comunicada pode impactar tanto a evolução da doença quanto a vida das pessoas envolvidas, influenciando o aspecto psicológico e sua aceitação no que diz respeito aos CPE, como os 20% dos pacientes que, após a conversa com o profissional, não aceitaram os seus cuidados proporcionais.

 

Uma proporção significativa dos entrevistados compartilhou suas percepções sobre a transferência para a unidade de CP. Comunicar a notícia de transferência geralmente é permeada por medo, inseguranças e uma compreensão errada de “encaminhamento para a morte”. As falas a seguir são as respostas sobre a unidade de CP em que sujeitos da pesquisa vivenciavam a notícia da transferência para essa unidade.

 

Então, morrer a gente não quer. Tem que aceitar. Mas está tudo bem (E6).

 

(..) ir para onde? INCA IV? Paliativo? Nada disso! Ué, você já jogou a toalha?

Aí eu passei dois dias assim: Eu vou morrer. Coisas que eu nunca pensei em dois anos. Ai não dá, né? (E4).

 

A comunicação é uma ferramenta essencial de conforto para pacientes em estágio terminal. Uma comunicação efetiva pode melhorar o conforto do paciente, ao passo que falhas na comunicação ou a sua omissão tendem a aumentar seu desconforto e prejudicar a sua confiança nos profissionais de saúde5.

 

A aplicação da análise fenomenológica possibilitou a identificação de categorias que representam aspectos-chave das experiências vivenciadas pelos pacientes em CP. As categorias identificadas são:

 

A falta de conhecimento sobre a linha de tratamento paliativo: uma deficiência na comunicação de notícias difíceis 

Na perspectiva fenomenológica, a comunicação pode permitir uma transformação pessoal enraizada na experiência do corpo próprio. O corpo reflete a percepção e é a fonte da transcendência, possibilitando resgatar o passado e criar uma visão de futuro, resultando em um eu renovado em cada nova experiência12.

 

Sob a perspectiva de Merleau-Ponty, a comunicação desempenha um papel essencial na construção da nossa realidade e na compreensão de nós mesmos e dos outros. Cada gesto e expressão refletem a totalidade da experiência corporal, revelando sentimentos. Merleau-Ponty9 considera a linguagem como um gesto ambíguo e espontâneo, capaz de preencher lacunas e dissipar opacidades, chamando atenção para a totalidade da existência. Mesmo os desencontros na comunicação podem fornecer uma visão da facticidade do ser humano e do mundo.

 

O estudo se deu em um hospital oncológico, uma instituição de ensino e referência em oncologia, com alta rotatividade de profissionais, principalmente residentes. Isso dificulta a construção de vínculos entre profissionais e pacientes, especialmente ao comunicar diagnósticos desfavoráveis. A informação de que a doença não é passível de tratamento curativo nem sempre é comunicada pelos mesmos profissionais, o que representa um desafio para quem transmite e quem recebe a notícia, principalmente no tratamento paliativo.

 

A comunicação centrada no paciente é essencial para fornecer um atendimento de alta qualidade, independentemente do provedor2. Em um hospital universitário, profissionais em formação enfrentam desafios, especialmente ao lidar com pacientes com câncer avançado. Muitos necessitam de aprimoramento para comunicar diagnósticos ou notícias que afetam o curso do tratamento. Assim, observa-se no seguinte depoimento:

 

O meu médico nunca tocou em assunto de paliativo. Ele quer fazer a quimio, quer fazer a medicação, exames. Aí chega um residente que nem sabe o que o hospital tem pra oferecer. Na minha cabeça ele falou assim, o que deu pra entender é: Não tem mais nada pra fazer [...] As pessoas têm que ter o conhecimento do que tem aqui dentro, pra saber oferecer pro paciente (E4).

 

Durante a entrevista, os entrevistados demonstraram desconforto ou dúvida ao responderem à pergunta principal. Alguns pacientes ficaram indignados com a falta de humanização ao serem informados sobre a falta de tratamento eficaz para o câncer. Outros, com menos escolaridade, mostraram confusão sobre as conversas médicas sobre CPE. Apesar de terem recebido informações sobre o tratamento, não entenderam totalmente o significado e o impacto na luta contra a doença.

 

Pois é, nunca ninguém me explicou isso. As vezes chegam e só falam que vão colocar um remedinho, mas não explicam o que é (E6).

 

A percepção da doença: o difícil enfrentamento dos sinais e sintomas manifestados durante os cuidados paliativos

Não há dúvida de que as questões emocionais estão intrinsecamente conectadas às questões físicas dos pacientes. Durante as conversas, alguns clientes, mesmo sem verbalizar seus sentimentos, expressavam agonia, dúvidas e incertezas por meio de suas expressões faciais e corporais, revelando preocupações sobre como seria a vida após saberem que, em seus casos, não havia mais chances de cura.

 

O enfrentamento da doença e as variações diárias nos sintomas têm um grande impacto psicológico nos pacientes em CPE, afetando suas relações pessoais e interações com a equipe de saúde. Alguns pacientes expressaram desconforto ao discutir sua condição de saúde, revelando indignação e revolta em relação à sua experiência hospitalar. Conforme os seguintes relatos:

 

Paliativo? Eu tô fora dessas coisas da equipe médica. Eu até, como é que se diz, essa parte de assistência médica sei de nada... (E7).

 

Me sinto bem perdido. Vai ser tudo novo. Parece que tô voltando pra trás (E9).

 

Nessa fase, os sintomas refletem um sofrimento intenso e persistente, compreendendo um conjunto de agrupamentos que envolvem náusea, desequilíbrio nutricional abaixo das necessidades corporais (caquexia, emagrecimento), fadiga, ansiedade, padrão respiratório ineficaz, e regulação ineficaz da termorregulação (pele fria e pegajosa, cianose, sudorese, extremidades sem circulação)13.

 

A percepção da doença e do corpo destaca que este não é apenas um objeto, mas um meio de perceber e se relacionar com o mundo. A corporeidade desempenha um papel central na expressão e interpretação desses sinais, proporcionando conforto ao compartilhar angústias e medos. A perspectiva fenomenológica de Merleau-Ponty destaca a importância de compreender essas experiências complexas para além de uma análise puramente clínica14.

 

Para iniciar qualquer abordagem com pacientes em CPE, é essencial preparar-se emocionalmente e planejar cuidadosamente a abordagem aos pacientes em CPE para evitar desconforto. Além da intervenção psicológica e do preparo para lidar com sintomas, é crucial que os profissionais desenvolvam estratégias de comunicação para enfrentar o sofrimento e apoiar os pacientes durante o processo de final de vida.

 

Corrobora isso o pensamento de Merleau-Ponty que considera o corpo não só no seu aspecto físico, mas o corpo é o próprio sujeito em si e o sujeito em si também é um ser no mundo, no seu contexto sociocultural. Portanto, uma comunicação sobre aspectos da saúde física não está fora do contexto da identidade do sujeito e de seu engajamento no mundo15.

 

A qualidade de vida como prioridade

O conceito de qualidade de vida é “a percepção do indivíduo de sua inserção na vida, no contexto da cultura e sistemas de valores nos quais ele vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações”16.

 

Quanto ao conceito de qualidade de vida, podem-se identificar duas esferas distintas: a objetiva e a subjetiva. A objetividade aborda a posição dos indivíduos e suas interações na sociedade, enquanto a subjetividade engloba a compreensão das condições físicas, emocionais, sociais e espirituais17.

 

No contexto dos pacientes em tratamento oncológico, a busca pela qualidade de vida, em meio aos desafios impostos pela doença, é algo bastante idealizado. Neste estudo, fica evidente que o maior anseio desses indivíduos é desfrutar de momentos mais extensos ao lado de suas famílias, amigos e entes queridos. Buscam, também, períodos de bem-estar mental e físico, possibilitando o desfrute de momentos de lazer, a prática de atividades físicas e a consecução de uma vida mais plena na sociedade.

 

Queria muito sair logo daqui e aproveitar minha família. Sinto muita falta de fazer as coisas que eu fazia antes da doença (E3).

 

A avaliação dos efeitos do tratamento oncológico na qualidade de vida relacionada à saúde (QVRS) de pacientes com diagnóstico de câncer pode ser uma ferramenta valiosa para a equipe multiprofissional, especialmente os profissionais de enfermagem. Essa avaliação pode orientar o planejamento de intervenções destinadas a minimizar eventuais efeitos adversos18.

 

Introduzir estratégias de conforto, alinhadas às necessidades percebidas e comunicadas pelo paciente, é fundamental para proporcionar um sentimento de fortalecimento e encorajamento para tomar decisões pessoais18,19. Assim, considerando os relatos das pessoas entrevistadas, a equipe de enfermagem tem um papel crucial no desenvolvimento do bem-estar e do autocuidado dos pacientes em CPE não somente por intervir nos sintomas causados pela doença, mas por elevar a sensação de conforto.

 

A estigmatização da unidade de cuidados paliativos entre os pacientes 

Identificou-se que a comunicação de uma má notícia é permeada por sentimentos que revelam as fases da negação, depressão ou a aceitação. Ao acompanhar os pacientes internados que recebem essa notícia, pode-se perceber, ao longo dos dias, a necessidade de fornecer apoio, escuta, compreensão de suas manifestações emocionais para ajudá-lo a passar por essa etapa11.

 

Observaram-se reações como isolamento e silenciamento do paciente, que não aceita tocar no assunto, ou que faz perguntas sobre o estado atual da doença para todos da equipe de enfermagem, na expectativa de ouvir algo diferente. Os pacientes entrevistados, apesar de terem consciência do estado atual da doença, só pensaram na finitude da vida após a notícia da transferência para a unidade de CP.

 

Esclarecer que, na unidade de CP, serão oferecidas modalidades para garantir qualidade de vida e alívio de sintomas, mas sem terapias de cura, pode evitar que o paciente se sinta abandonado, ocasionando menos sofrimento. Portanto, é crucial dedicar tempo e espaço para que o paciente e seus familiares aceitem conscientemente e com serenidade a transição para a unidade de CP6,15

 

No diálogo com E6, pode-se observar o esquivamento em falar sobre o assunto. Mesmo conhecendo seu estado atual, a família assume a responsabilidade de conversar ou não sobre o assunto.

 

Se alguém falou sobre esses cuidados comigo, na hora eu não percebi. Eu não vou falar que falaram. Tenho que dizer a verdade. Quando você fez a pergunta, eu imaginei que poderia ser isso mesmo (E6).

 

Mas por que você imaginou que poderia ser isso? (Pesquisador).

Imaginei pela palavra (E6).

 

Seus filhos, suas irmãs, comentaram com você sobre isso? (Pesquisador).

Não! Nunca comentaram sobre isso. O que eles conversam com os médicos, não passam para mim. Mais pelo meu psicológico, né (E6). 

 

Com esses breves relatos, compreende-se que comunicar a aproximação da finitude, mesmo que não se tenha condições de prevê-la certamente, é trazer ao sujeito a contemplação da sua existência. Muitas vezes, é o início de uma reflexão do princípio até o atual “fim”, que não foi planejado, mas que agora deve ser e que, muitas vezes, é o contrário dos planos desejados até então. É justo que se leve tempo para elaborar e aceitar a circunstância.

 

Os profissionais devem entender a complexidade humana, incluindo as fases emocionais como depressão, raiva e negação. Na enfermagem, é fundamental que a empatia seja o principal recurso de cuidado. Isso implica em compreender o outro em suas necessidades humanas complexas e profundas, especialmente em momentos cruciais da vida.

 

 CONCLUSÃO

Apesar dos avanços científicos nos tratamentos e da melhor disseminação de informações sobre o câncer, muitos pacientes ainda recebem diagnósticos em estágios avançados da doença, com poucas perspectivas de cura. Diante desse cenário, os CP emergem como uma nova abordagem para os profissionais de saúde, visando proporcionar uma qualidade de vida mais elevada aos pacientes.

 

A pesquisa mostrou que a prática dos profissionais de enfermagem desempenha um papel fundamental no cuidado dos pacientes em CPE. Quando conduzida de maneira universal, integral, equânime e humanizada, proporciona significativos benefícios para o tratamento desses usuários, que frequentemente enfrentam considerável debilidade por causa da progressão da doença. Conduzido pela perspectiva da fenomenologia de Merleau-Ponty, ao destacar a interconexão entre o sujeito e o mundo, pode influenciar a equipe de enfermagem a compreender a concepção do paciente, aprimorando assim a eficácia da relação terapêutica estabelecida.

 

Os resultados evidenciaram que a complexidade da comunicação de notícias difíceis em CP demanda necessidade de um trabalho interdisciplinar, não somente do profissional médico. Como os pacientes com câncer avançado apresentam várias complicações físicas, emocionais e sociais, trazendo, muitas vezes, uma complexidade na sua visão como ser no mundo, é essencial que os profissionais ofereçam uma assistência holística, contribuindo positivamente no processo de cuidados de final de vida.

 

Na presente pesquisa, evidenciou-se que a comunicação clara e eficaz, ao desmistificar o câncer e os CP, instiga a observação desses indivíduos para além de seus corpos debilitados, possibilitando vê-los como seres humanos genuínos, com desejos, significados, e com a habilidade de atribuir novos sentidos à sua própria existência e à maneira como se percebem e se posicionam diante do mundo.

 

As limitações deste estudo incluem a quantidade restrita de participantes entrevistados e a coleta de dados realizada exclusivamente em um setor, apesar de a problemática estar presente em toda a unidade hospitalar. A demanda de pacientes em CPE era significativa, porém poucos estavam em condições físicas e psicológicas durante as coletas de dados para fornecer informações para o estudo. Mesmo com essas limitações, é importante destacar que a relevância e a confiabilidade da pesquisa não foram comprometidas.

 

Embora o tema dos CP esteja amplamente presente na atualidade, com diversos estudos buscando aprimorar a visão holística desses cuidados, ainda persiste uma lacuna no preparo dos profissionais de saúde para lidar com notícias difíceis e enfrentar situações complexas no ambiente hospitalar. Contudo, é importante promover capacitações para esses profissionais, de modo a transformar, de forma positiva, a assistência prestada aos pacientes. 

 

CONTRIBUIÇÕES

Paulo Sérgio Lima Donza contribuiu substancialmente na concepção e no planejamento do estudo; na obtenção, análise e interpretação dos dados; na redação e revisão crítica. Marlise Barros de Medeiros contribuiu substancialmente na obtenção, análise e interpretação dos dados; na redação e na revisão crítica. Ambos os autores aprovaram a versão final a ser publicada.

 

 

DECLARAÇÃO DE CONFLITOS DE INTERESSES

Nada a declarar.

 

 

FONTES DE FINANCIAMENTO

Não há.

 

 

REFERÊNCIAS

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16. The WHOQOL Group. The World Health Organization quality of life assessment (WHOQOL): position paper from the World Health Organization. Soc Sci Med. 1995;41:1403-10.

17. Corrêa KM, Oliveira JDB, Taets GGC. Impacto na qualidade de vida de pacientes com câncer em meio à pandemia de Covid-19: uma reflexão a partir da teoria das necessidades humanas básicas de Abraham Maslow. Rev Bras Cancerol. 2020;66(temaAtual):e-1068. doi: https://doi.org/10.32635/2176-9745.RBC.2020v66nTemaAtual.1068

18. Silveira FM, Wysocki AD, Mendez RDR, et al. Impacto do tratamento quimioterápico na qualidade de vida de pacientes oncológicos. Acta Paul Enferm. 2021;34:eAPE00583.

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Recebido em 16/4/2024

Aprovado em 2/12/2024

 

Editor-associado: Mario Jorge Sobreira da Silva. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-0477-8595

Editora-científica: Anke Bergmann. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1972-8777

 

 

Tabela 1. Características demográficas dos participantes do estudo, RJ, Brasil, 2023

Variáveis

n

%

Sexo

 

 

Masculino

 3

 30

Feminino

 7

 70

Estado civil

 

 

Solteiro(a)

5

50

Casado(a)

3

30

Viúvo(a)

2

20

Escolaridade

 

 

1º grau completo

1

10

1º grau incompleto

3

30

2º grau completo

5

50

2º grau incompleto

0

0

Superior

1

10

Situação laboral

 

 

Aposentado(a)

2

20

Desempregado(a)/do lar

2

20

Possui emprego

6

60

 

 

Tabela 2. Tópicos resultantes das entrevistas

Elementos resultantes com base nas entrevistas

Entrevistados (E)

%

Pacientes que foram introduzidos no contexto dos cuidados paliativos

E1; E5; E7

30

Pacientes que não tiveram nenhuma abordagem sobre cuidados paliativos

E2; E3; E4; E6; E8; E9; E10

70

Pacientes que não aceitaram cuidados paliativos

E3; E7

20

Pacientes que aceitaram cuidados paliativos

E1; E5

20

Percepções sobre a transferência para a unidade de cuidados paliativos

E4; E6; E7; E8

40

 

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