ARTIGO DE OPINIÃO

 

Comunidade Compassiva das Favelas da Rocinha e Vidigal: Estratégia para Auxílio no Controle do Câncer

Compassionate Community of the Slums of Rocinha and Vidigal: Strategy to Help in Cancer Control

Comunidad Compasiva de las Favelas de Rocinha y Vidigal: Estrategia para Ayudar en el Control del Cáncer

 

 

https://doi.org/10.32635/2176-9745.RBC.2024v70n2.4714

 

Alexandre Ernesto Silva1; Cintia Maia Prates2; Luciana da Silva Couto3; Lívia Costa Oliveira4

 

1Universidade Federal São João del-Rei (UFSJ). São João del-Rei (MG), Brasil. E-mail: alexandresilva@ufsj.edu.br. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0001-9988-144X

2-4Instituto Nacional de Câncer (INCA), Hospital do Câncer IV (HC IV), Unidade de Cuidados Paliativos. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mails: cintiamaia2005@gmail.com; lucianacouto.fisio@gmail.com; livia.oliveira@inca.gov.br. Orcid iD: https://orcid.org/0009-0002-6387-6002; Orcid iD: https://orcid.org/0009-0006-2870-567X; Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-5052-1846

 

Endereço para correspondência: Lívia Costa Oliveira. INCA/HC IV/Unidade de Cuidados. Rua Visconde de Santa Isabel, 274 – Vila Isabel. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. CEP 20560-120. E-mail: livia.oliveira@inca.gov.br

 

 

INTRODUÇÃO

O câncer possui incidência crescente e é uma das principais causas de morte no mundo¹. Seu diagnóstico carrega em si repercussões indesejadas de ordens físicas, psicossociais e/ou espirituais em pacientes e familiares/entes queridos que passam a conviver com uma situação inesperada e de perspectivas indefinidas. Nesse cenário, se faz necessário o acesso ao tratamento abrangente da doença, incluindo, imperiosamente, o cuidado paliativo². O cuidado paliativo, considerado como direito humano e recomendado pela Organização Mundial da Saúde³, consiste em abordagem multidisciplinar e multidimensional para prevenção e alívio do sofrimento, envolvendo a identificação precoce, a avaliação rigorosa e o tratamento da dor e de outros problemas de ordem física, biopsicossocial e espiritual4.

 

No entanto, é irrefutável a precária disponibilidade de oferta desse tipo de cuidado em diferentes Regiões do mundo5. Frente ao desafio da sobrecarga dos sistemas de saúde, em meados dos anos 2000, o médico e sociólogo britânico Kellehear idealizou um modelo de oferta de cuidado paliativo chamado Comunidade Compassiva6. Esse modelo tem como base os cinco pilares para a promoção da saúde presentes na Carta de Ottawa, que são: a construção de políticas públicas saudáveis, a criação de ambientes favoráveis à saúde, o fortalecimento da ação comunitária para a saúde, o desenvolvimento de habilidades pessoais e a reorientação de serviços de saúde7. Atualmente, na Europa, América do Norte e Austrália, encontra-se a maior parte das Comunidades Compassivas8.

 

Essa proposta inovadora de oferta de cuidados paliativos começou a ser desenvolvida no Brasil, nas favelas da Rocinha e Vidigal, localizadas na cidade do Rio de Janeiro, sob liderança do enfermeiro e professor Alexandre Ernesto Silva, em 20199,10. Discorre-se neste artigo sobre essa iniciativa chamada Favela Compassiva.

 

DESENVOLVIMENTO

Comunidades Compassivas podem surgir em diferentes lugares, como bairros, empresas, escolas, condomínios e onde mais houver necessidade de cuidados, sobretudo é mais comum que existam onde o acesso à saúde é mais precário, como nas favelas. Moradores das favelas do Brasil integram um grupo frequentemente impactado pela exclusão, pobreza e privação ou ineficácia no atendimento dos direitos sociais11. Quando acometidos por doenças ameaçadoras da vida, o sofrimento que os acomete pode ser ainda maior do que o observado na população em geral, pois, além do sofrimento que pode ocorrer em virtude da própria história da doença, há outros agravamentos relacionados à dificuldade de mobilidade em razão da geografia do domicílio, à dificuldade de acesso aos serviços de saúde, a medicamentos e à criminalidade local, que reforçam o conceito de exclusão social, os deixando na condição de população vulnerada12,13.

 

Nesse contexto, o enfermeiro e professor Alexandre Ernesto Silva criou, em 2019, a primeira Comunidade Compassiva do Brasil para assistir a pacientes e seus familiares, residentes nas favelas da Rocinha e Vidigal, cidade do Rio de Janeiro, acometidos por doenças ameaçadoras da vida, incluindo o câncer, e elegíveis aos cuidados paliativos9,10, nomeada Favela Compassiva (Figura 1).

 

Figura 1. Favela Compassiva

 

Conceitualmente, trata-se de uma iniciativa complementar (e não substitutiva) ao sistema público de saúde, cujo cuidado é centrado em promover dignidade humana mediante alívio de dor e outros sintomas angustiantes, assim como promover autonomia por meio da funcionalidade e oferecer uma vida digna e, consequentemente, uma digna morte, com alívio de sofrimento físico, psíquico, social e espiritual. As experiências de cuidar não se limitam apenas ao cuidador principal, mas se estendem por toda a rede e comunidades de cuidado, capacitando a própria comunidade para cuidar de seus membros diagnosticados com doenças ameaçadoras da vida. Em contrapartida, as comunidades ganham com o empoderamento social, permitindo que as pessoas que ali vivem assumam a responsabilidade de trabalhar em grupo e tenham a capacidade de identificar e se dedicar a questões de saúde e ao desenvolvimento do cuidado em comunidade6.

 

A comunidade é capacitada a cuidar de seus membros, mobilizando a sociedade civil por intermédio do voluntariado na construção de redes de apoio à saúde e se integrando à rede de atenção primária de saúde local, buscando atenuar a desigualdade no acesso aos cuidados paliativos. Assim, moradores que sempre atuaram espontaneamente de forma compassiva cuidando de seus vizinhos passam a receber capacitação e recursos para desempenhar com mais eficiência o papel de cuidadores voluntários ou agentes compassivos. Juntos com voluntários profissionais formam equipes que se distribuem para melhor assistência aos pacientes em cuidados paliativos, incluindo a atenção aos familiares no período pós-óbito12.

 

Voluntários locais recebem treinamentos contínuos sobre cuidados paliativos e contribuem na captação de pacientes com o perfil de doenças ameaçadoras da vida e potencialmente elegíveis aos cuidados paliativos, na assistência e na formação de vínculo entre eles e os profissionais de saúde que atuam na Favela Compassiva. Esse grupo de atores acompanha os casos mais proximamente, por morarem na comunidade, realizando visitas domiciliares diárias ou semanais, conforme a necessidade, apoiando e prestando socorro continuamente aos pacientes e seus familiares9,10. Em todo esse contexto, a compaixão é um elemento essencial do tecido social e o voluntariado local é a força motriz dessa iniciativa.

 

A Favela Compassiva reúne ainda profissionais de saúde voluntários que compõem equipes multidisciplinares em saúde, incluindo enfermeiros, médicos, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos, dentistas, assistentes sociais, psicólogos, fisioterapeutas e nutricionistas que realizam visitas domiciliares mensais para validação da captação feita pelos voluntários locais, chamados de agentes compassivos no acompanhamento de pacientes já em seguimento, na avaliação clínica, na realização de orientações e no posterior contato com os profissionais de saúde da rede de atenção onde o paciente está inserido para alinhamento das condutas9,10. Há ainda a possibilidade de realização de visitas domiciliares avulsas, presencialmente ou por telemonitoramento, por alguns profissionais das equipes de saúde para um acompanhamento mais intensivo de pacientes que assim necessitem9,10.

 

Outro grupo de atores da Favela Compassiva é composto por apoiadores que, por meio de doações finaceiras e materiais, contribuem para a manutenção do estoque de medicamentos essenciais a esse grupo, fraldas, materiais de curativos, suplemento alimentar e até mesmo materiais como cadeiras de rodas, cadeiras de banho etc., ficando à disposição para todos os pacientes que necessitam. Em casos pontuais de maior complexidade, são realizadas campanhas para apadrinhamento de pacientes em situação financeira mais vulnerada e campanhas para compras de materiais mais específicos como cama hospitalar e colchão pneumático frente a demandas surgidas. Cada apoiador colabora de acordo com as suas possibilidades, independentemente de quanto e como seja sua colaboração, faz sua parte em prol de um mundo mais humano. Todos os processos são feitos com clareza e prestação de contas, mantendo a transparência e seriedade do projeto para com todos os envolvidos.

 

A Favela Compassiva possui ainda uma iniciativa associada que é chamada de Cuidando do Cuidador cujo público-alvo é constituído pelo cuidador familiar e pelos voluntários locais. Por meio da promoção de educação em saúde, são realizadas oficinas de autocuidado e sessões de massagem terapêutica que buscam promover uma influência positiva nos parâmetros psicológicos, comportamentais, cognitivos e fisiológicos desse público-alvo.

 

Até o presente momento, essa iniciativa possibilitou que mais de 100 pacientes que residem em áreas dessas favelas, onde os serviços públicos de saúde não conseguiriam acessar, fossem atendidos e acompanhados até o final de suas vidas de acordo com os princípios dos cuidados paliativos, sendo assistidos e beneficiados também seus familiares e entes queridos. Diante dos bons resultados dessa iniciativa pioneira no Brasil, originou-se a Associação Favela Compassiva em setembro de 2022, constituindo-se, então, como pessoa jurídica.

 

A favela Compassiva necessita continuamente da assistência à população vulnerada e de reforços que incluam inserção e envolvimento de Instituições de ensino e pesquisa científica que contribuam para o atendimento mais equânime, atendendo às demandas existentes, a exemplo do Instituto Nacional de Câncer (INCA).

 

CONCLUSÃO

Dessa maneira, a iniciativa proporciona o acompanhamento dos pacientes para promover o amparo às questões biopsicossociais visando sempre ao alívio do sofrimento, operando como parte de uma abordagem de saúde mais ampla, que reconhece o impacto físico, psicológico, social e emocional das doenças graves, para apoiar os pacientes e suas famílias, inclusive na prestação de assistência no pós-óbito.

 

 

CONTRIBUIÇÕES

Todos os autores contribuíram substancialmente na concepção e no planejamento do estudo; na obtenção, análise e interpretação dos dados; na redação e revisão crítica; e aprovaram a versão final a ser publicada.

 

 

DECLARAÇÃO DE CONFLITO DE INTERESSES

Nada a declarar.

 

 

FONTES DE FINANCIAMENTO

Não há.

 

 

REFERÊNCIAS

1.         Bray F, Laversanne M, Sung H, et al. Global cancer statistics 2022: GLOBOCAN estimates of incidence and mortality worldwide for 36 cancers in 185 countries. CA Cancer J Clin. 2024;74(3):229-63. doi: https://doi.org/10.3322/caac.21834

2.         Duarte IV, Fernandes KF, Freitas SC. Cuidados paliativos domiciliares: considerações sobre o papel do cuidador familiar. Rev SBPH. 2013;16(2):73-88.

3.         World Health Organization. National cancer control programmes: policies and managerial guidelines. 2. ed. Geneva: WHO; 2002. [acesso 2023 out 1]. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/national-cancer-control-programmes

4.         Radbruch L, Lima L, Knaul F, et al. Redefining Palliative Care-A New Consensus-Based Definition. J Pain Symptom Manage. 2020;60(4):754-64. doi: https://doi.org/10.1016/j.jpainsymman.2020.04.027

5.         Abel J, Kellehear A, Karapliagou A. Palliative care - the new essentials. Ann Palliat Med. 2018;7(Supl 2):S3-S14. doi: https://doi.org/10.21037/apm.2018.03.04

6.         Kellehear A. Comunidades compassivas: cuidados de fim de vida como responsabilidade de todos. QJM. 2013;106(12):1071-5. doi: https://doi.org/10.1093/qjmed/hct200

7.         World Health Organization. Regional Office for Europe. Ottawa Charter for Health Promotion, 1986. [Genebra]: WHO. Regional Office for Europe; 1986. [acesso 2024 fev 3]. Disponível em: https://iris.who.int/handle/10665/349652

8.         Roleston C, Shaw R, West K. Compassionate communities interventions: a scoping review. Ann Palliat Med. 2023;12(5):936-51. doi: https://doi.org/10.21037/apm-22-867

9.         Silva AE, Coelho FBP, Pereira FMS, et al. Cuidados paliativos em favelas no Brasil: uma revisão integrativa. RSD. 2021;10(6):e55110616183. doi: https://doi.org/10.33448/rsd-v10i6.16183

10.      Mesquita MGR, Silva AE, Coelho LP, et al. Slum compassionate community: expanding access to palliative care in Brazil. Rev Esc Enferm USP. 2023;57:e20220432. doi: https://doi.org/10.1590/1980-220X-REEUSP-2022-0432en

11.      Catão MÓ. A exclusão social e as favelas na cidade do Rio de. Rev Dir da Cid. 2015;7(3):1002-45. doi: https://doi.org/10.12957/rdc.2015.18839

12.      Fialho S. Comunidade compassiva: uma estratégia empoderadora da promoção da saúde. Relatório de estágio. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa; 2020.

13.      Vasconcelos GB, Pereira PM. Cuidados paliativos em atenção domiciliar: uma revisão bibliográfica. Rev Adm Saúde. 2018;18(70). doi: http://dx.doi.org/10.23973/ras.70.85

 

 

 

Recebido em 10/5/2024

Aprovado em 13/5/2024

 

Editora-científica: Anke Bergmann. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1972-8777

 

 

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