ARTIGO DE OPINIÃO

 

Política Nacional de Cuidados Paliativos: Desafios da Qualificação Profissional em Cuidados Paliativos no Brasil

National Palliative Care Policy: Challenges of Professional Qualification in Palliative Care in Brazil

Política Nacional de Cuidados Paliativos: Desafíos de la Calificación Profesional en Cuidados Paliativos en el Brasil

 

 

https://doi.org/10.32635/2176-9745.RBC.2024v70n3.4753

 

Manuela Samir Maciel Salman1; Maria Fernanda da Cunha Cassavia2; Bárbara Cury Soubhia Salman3; Amirah Adnan Salman4; Liz Bryan5; Livia Costa de Oliveira6

 

1-4Instituto Premier. São Paulo (SP), Brasil. E-mails: manuela.salman@institutopremier.org.br; barisoubhia@hotmail.com; fe_cassavia@hotmail.com; amirah.salman@institutopremier.org.br. Orcid iD: https://orcid.org/0009-0009-3253-3251; Orcid iD: https://orcid.org/0009-0003-6950-0038; Orcid iD: https://orcid.org/0009-0000-8124-8611; Orcid iD: https://orcid.org/0000-0003-0087-2661

5Quality End of Life Care for All (QELCA). Londres, Reino Unido. E-mail: liz@qelca.co.uk. Orcid iD: https://orcid.org/0009-0006-1032-4035

6Instituto Nacional de Câncer (INCA), Hospital do Câncer IV (HC IV), Unidade de Cuidados Paliativos. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mail: livia.oliveira@inca.gov.br. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-5052-1846

 

Endereço para correspondência: Livia Costa Oliveira. INCA/HC IV/Unidade de Cuidados Paliativos. Rua Visconde de Santa Isabel, 274 – Vila Isabel. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mail: livia.oliveira@inca.gov.br

 

INTRODUÇÃO

Visando proporcionar experiências de vida e de morte mais dignas, por meio do alívio da dor, do sofrimento (em suas dimensões física, psicoemocional, espiritual e social) e de outros sintomas de pessoas com sofrimento relacionado a doenças ou condições de saúde graves/ameaçadoras da vida e seus familiares/cuidadores, o Ministério da Saúde publicou a Política Nacional de Cuidados Paliativos no âmbito do Sistema Único de Saúde em 22 de maio de 20241. Cabe destacar que até 2019 somente 50% dos países possuíam políticas de cuidado paliativo2.

 

Para promover qualidade de vida e de morte (desfechos de ordem multidimensional), os profissionais de saúde das diferentes categorias (médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, psicólogos, nutricionistas, fonoaudiólogos, assistentes sociais, profissionais destinados à assistência espiritual, cirurgião-dentista, farmacêuticos, entre outros) devem estar qualificados para proporcionar uma assistência que deverá integrar ações de variados graus de complexidade com abrangência à diversidade sociocultural, biográfica e de valores, e proporcionais à evolução da doença (incluindo aqueles indivíduos com prognóstico de sobrevida mais estendida, bem como aqueles em cuidados de fim de vida). No entanto, em todo mundo, existe uma carência de educação em cuidado paliativo3.

 

Considerando a irrefutável fragilidade no ensino de cuidados paliativos no Brasil4, entre as 15 diretrizes da Política Nacional de Cuidados Paliativos1, uma refere-se ao estímulo à adoção de estratégias de educação na área. Cabe destacar ainda uma outra diretriz referente ao fomento à produção e disseminação de conhecimentos, à inovação e ao desenvolvimento científico e tecnológico no campo dos cuidados paliativos, por meio da articulação entre governos e instituições de ensino, pesquisa e/ou desenvolvimento1 (Figura 1).

 

Figura 1. Diretrizes da Política Nacional de Cuidados Paliativos1 com destaque para ações relacionadas ao ensino na temática

 

DESENVOLVIMENTO

Os cuidados paliativos pressupõem a ação de equipes interprofissionais comprometidas com a pessoa com sofrimento relacionado à doença grave e não apenas com a enfermidade, para o cuidado integral de aspectos físicos, mentais, espirituais e sociais dos indivíduos, o que requer a complementação de saberes e a partilha de responsabilidades5. Portanto, a implementação efetiva da Política Nacional de Cuidados Paliativos1 implica aos profissionais de saúde das diferentes categorias a necessidade da aquisição de conhecimentos e habilidades técnicas em comunicação, alívio de desconfortos físicos, compaixão, escuta ativa, disponibilidade para abordar questões emocionais (pessoais e daqueles que são cuidados), entre muitos outros6,7.

 

Espera-se que qualquer profissional de saúde qualificado com os princípios básicos da paliação, conhecido como cuidado paliativo "primário", possa realizar esse tipo de abordagem8. E, diante de situações mais complexas, espera-se que os pacientes sejam encaminhados para um nível de assistência mais elevado onde encontrem inclusive profissionais com maior especialização na temática9.

 

No entanto, a irrefutável falta de profissionais qualificados é um dos desafios que deverão ser enfrentados frente à publicação da Política, acrescida à falta de corpo docente especializado e à falta de material didático10. Essa deficiência começa na formação acadêmica. O treinamento em competências específicas necessárias ao cuidado paliativo é frequentemente não contemplado nas diretrizes curriculares dos cursos de graduação das áreas da saúde que, por outro lado, privilegiam os aspectos biológicos do ser humano, enfatizando a objetividade científica e o controle sobre a doença, cenário em que o paciente "vira" apenas um número11,12. Por exemplo, em relação à formação médica no Brasil, em 2018, apenas 14 cursos de graduação tinham alguma disciplina para abordagem do assunto na grade curricular e, em 2020, dos 191 serviços de cuidados paliativos existentes no país, apenas 37,2% estavam envolvidos com o ensino de graduação10,13. Tudo isso contrapõe a necessidade crescente de que qualquer profissional de saúde generalista seja capaz de compreender a subjetividade do indivíduo em cuidado paliativo.

 

Cabe destacar que discutir o tema somente em torno das grades curriculares dos cursos de graduação da área da saúde pode representar uma simplificação excessiva dessa problemática. Faz-se necessário, adicionalmente, o desenvolvimento de diferentes níveis de educação que possam ir de encontro às necessidades da população, à estrutura do sistema de saúde de cada Região do Brasil e à especificidade de cada profissão. É necessário que o processo educacional em cuidado paliativo transpareça uma demanda permanente para o atendimento a essa necessidade complexa. O estabelecimento de parcerias entre os serviços de cuidados paliativos já existentes e os centros educacionais pode ser uma importante estratégia para que a educação e a formação sejam estruturadas de forma eficiente e sustentável e considere a potência do aprendizado transformacional de profissionais, visando a um estado permanente de reflexão, ao exercício regular de decisões compartilhadas interprofissionais, a discussões bioéticas, e ao alcance do equilíbrio entre a teoria e a prática14,15.

 

Na proposta da educação permanente para o ensino do cuidado paliativo, o intuito deverá ser o de provocar o trabalhador da saúde, habituado a uma educação tradicional centrada no professor e na transmissão do conteúdo, a construir suas competências em programas adaptados de acordo com as necessidades de aprendizagem do indivíduo-aluno16. Sobretudo porque não é incomum deparar-se com processos de educação preconcebidos, com roteiros estruturados e conteúdo geral, independentemente da realidade, cujas competências envolvidas não necessariamente são compatíveis com as necessidades dos profissionais e da população17.

 

Compreender o que o profissional possui de conhecimentos, habilidades, atitudes e ativos biográficos em sua estrutura cognitiva deve ser considerado na prática de ensino, facilitando o processo de aprendizagem e sua transmutação em ações práticas para a mudança da realidade. Além disso, deve-se ter em mente que, para que habilidades relacionadas à paliação sejam desenvolvidas, além da parte técnica e científica, a parte emocional e a predisposição do profissional para o aprendizado devem ser consideradas18. Educar deve ocorrer para além do depósito de conteúdo do/pelo educador, por meio de um processo permanente de construção mútua de conteúdo significativo à realidade do profissional envolvido19.

 

Portanto, o método de aprendizagem deverá ser guiado pela ação, combinado por métodos interativos em sala de aula e observação clínica, com foco na natureza holística do cuidado paliativo, reflexão profunda sobre experiências passadas e atuais, destacando o trabalho emocional da compaixão, além do autocuidado para promoção de resiliência14,15. Programas educacionais dessa natureza podem proporcionar oportunidades ímpares para o estímulo à reflexão sobre o aprendizado em torno de temáticas que corroboraram a promoção da qualidade de vida e de morte, destacando-se entre elas os princípios do cuidado paliativo, autocuidado e compaixão. Permitem ainda que os participantes se envolvam na resolução ativa de problemas para promover o alívio das pessoas com sofrimento relacionado à doença ou condição grave e de suas famílias e cuidadores nos cuidados de fim de vida20.

 

Ademais, precisa-se de uma educação sobre a morte para todos, pois, na sociedade atual, convive-se com a morte interdita e necessita-se cada vez mais reumanizar esse fato. A proposta feita por Kovács21 em “Educação para a morte – Proposta para o século XXI" é listada a seguir (Figura 2):

 

1.    Discussão sobre a morte nas escolas: desenvolver, envolvendo professores e alunos, discussões e atividades pedagógicas sobre morte e luto; lidar com crianças e adolescentes que estão passando por situações de perda e luto; apresentar, discutir e preparar os professores para o uso de filmes e vídeos sobre o tema da morte.

2.    Discussão sobre a morte com o público leigo: favorecer reflexões sobre conceitos e teorias sobre a morte em espaços comunitários, como postos de saúde, bibliotecas, escolas, universidades, igrejas.

3.    Assessorar os meios de comunicação no tratamento de assuntos sobre a morte: debater e orientar sobre como são veiculadas notícias que envolvem perdas e morte para a não banalização dessas situações, e as apresentações virem acompanhadas de tempo de reflexão, com possibilidade de discussão sobre o assunto. Pensar em maneiras de mostrar a morte menos escancarada para que o objetivo não seja somente o aumento de audiência. Não é eliminar ou ocultar o assunto, mas sim tratá-lo de forma mais humana.

4.    Discussão sobre perdas e mortes em hospitais.

5.    Discussão bioética no contexto hospitalar: criação de grupos multidisciplinares para essa finalidade.

 

Figura 2. Proposta de educação para a morte segundo Kovács21

 

 

CONCLUSÃO

Diante do aumento da sobrevida de pessoas com doenças ou condições graves, da recente publicação da Política Nacional de Cuidados Paliativos no Brasil e da necessidade premente de aumento dos saberes e práticas nesse tipo de cuidado, é indispensável avançar com rapidez e eficiência na educação em cuidados paliativos no Brasil.

 

 

CONTRIBUIÇÕES

Manuela Samir Maciel Salman e Livia Costa de Oliveira contribuíram substancialmente na concepção e no planejamento do estudo; na obtenção, análise e interpretação dos dados; na redação e revisão crítica. Maria Fernanda da Cunha Cassavia e Liz Bryan contribuíram substancialmente na concepção e no planejamento do estudo; na obtenção, análise e interpretação dos dados; na redação e revisão crítica. Bárbara Cury Soubhia Salman e Amirah Adnan Salman contribuíram na obtenção, análise e interpretação dos dados; na redação e revisão crítica. Todos os autores aprovaram a versão final a ser publicada.

 

 

DECLARAÇÃO DE CONFLITO DE INTERESSES

Nada a declarar.

 

 

FONTES DE FINANCIAMENTO

Não há.

 

 

REFERÊNCIAS

1. Ministério da Saúde (BR). Portaria GM/MS Nº 3.681, de 7 de maio de 2024. Institui a Política Nacional de Cuidados Paliativos - PNCP no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS, por meio da alteração da Portaria de Consolidaçãhttps://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-gm/ms-n-3.681-de-7-de-maio-de-2024-561223717 o GM/MS nº 2, de 28 de setembro de 2017 [Internet]. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2024 maio 22 [acesso 2024 maio 10]; Edição 98; Seção I:215. Disponível em:

2. Worldwide Hospice Palliative Care Alliance. Global Atlas of palliative care [Internet]. 2 ed. London: WHPCA; 2020. [acesso 2024 maio 20]. Disponível em: http://www.thewhpca.org/resources/global-atlas-on-end-of-life-care

3. Callaway MV, Foley K. The international palliative care initiative. J Pain Symptom Manage. 2018;55(2S):S1-S5. doi: https://doi.org/10.1016/j.jpainsymman.2017.05.012

4. Zamarchi GCG, Leitão BFB. Estratégias educativas em cuidados paliativos para profissionais da saúde. Rev Bioét. 2023;31:e3491PT. doi: https://doi.org/10.1590/1983-803420233491PT

5. World Health Organization. National cancer control programmes: policies and managerial guidelines [Internet]. 2 ed. Geneva: WHO; 2002. [acesso 2024 maio 13]. Disponível em: https://iris.who.int/handle/10665/42494

6. Gamondi C, Larkin P, Payne SA. Core competencies in palliative care: an EAPC white paper on palliative care education: part 1. Eur J Palliat Care. 2013;20(2):86-91.

7. Gamondi C, Larkin P, Payne SA. Core competencies in palliative care: an EAPC white paper on palliative care education: part 2. Eur J Palliat Care. 2013;20(3):140-5.

8. Quill TE, Abernethy AP. Generalist plus specialist palliative care--creating a more sustainable model. N Engl J Med. 2013;368:1173. doi: https://doi.org/10.1056/nejmp1215620

9. Pavlic DR, Aarendonk D, Wens J, et al. Palliative care in primary care: European Forum for Primary Care position paper. Prim Heath Care Res Dev. 2019;20:e133. doi: https://doi.org/10.1017%2FS1463423619000641

10. Academia Nacional de Cuidados Paliativos. Atlas dos cuidados paliativos no Brasil 2019 [Internet]. 1. ed. São Paulo: ANCP; 2020. [acesso 2024 maio 28]. Disponível em: https://api-wordpress.paliativo.org.br/wp-content/uploads/2020/05/ATLAS_2019_final_compressed.pdf

11. Nascimento MRBM. Os desafios da implementação dos cuidados paliativos no Brasil [monografia na Internet]. Brasília, DF: Centro Universitário de Brasília; 2011. [acesso 2024 maio 08]. Disponível: https://repositorio.uniceub.br/jspui/bitstream/123456789/2719/2/20510570.pdf

12. Azeredo NSG, Rocha CF, Carvalho PRA. O enfrentamento da morte e do morrer na formação de acadêmicos de medicina. RBEM. 2011;35(1):37-45.

13.Academia Nacional de Cuidados Paliativos. Análise situacional e recomendações para estruturação de programas de cuidados paliativos no Brasil [Internet]. São Paulo: ANCP; 2018. [acesso 2024 maio 08]. Disponível: https://paliativo.org.br/wp-content/uploads/2018/12/ANALISE-SITUACIONAL_ANCP-18122018.pdf

14. Gillett K, Bryan L. ‘Quality End of Life Care for All’ (QELCA): the national rollout of an end-of-life workforce development initiative. BMJ Support Palliat Care 2015;6(2):225-30. doi: https://doi.org/10.1136/bmjspcare-2014-000816

15. Gillett K, Reed L, Bryan L. Using action learning sets to support change in end-of-life care. Leadersh Health Serv (Bradf Engl). 2017;30(2):184-93. doi: https://doi.org/10.1108/lhs-10-2016-0055

16. Freire P. Política e educação: ensaios [Internet]. 5. ed. São Paulo: Cortez; 2001. [acesso 2024 maio 10]. Disponível em: http://www.gestaoescolar.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/otp/livros/politica_educacao.pdf

17. Frenk J, Chen L, Bhutta ZA, et al. Health professionals for a new century: transforming education to strengthen health systems in an interdependent world. Lancet. 376(9756):1923-58. doi: https://doi.org/10.1016/s0140-6736(10)61854-5

18. Feuz C, Rosewall T, Willis S. Radiation therapy students' knowledge, attitudes, and beliefs about palliative and end-of-life care for cancer patients. JMIRS. 2015;46(3):271-9. doi: https://doi.org/10.1016/j.jmir.2015.06.001

19. Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa [Internet]. São Paulo: Paz e Terra; 1996. [acesso 2024 maio 10]. Disponível em: http://www.apeoesp.org.br/sistema/ck/files/4-%20Freire_P_%20Pedagogia%20da%20autonomia.pdf

20. Oliveira LC, Rosa KSC, Salman AA, et al. Quality of death educational programme in a national reference palliative care unit. BMJ Support Palliat Care. 2024;13(e3):e924-7. doi: https://doi.org/10.1136/spcare-2023-004478

21. Kovacs MJ, organizadora. Morte e existência humana: caminhos de cuidados e possibilidades de intervenção. 1 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2008.

 

 

 

Recebido em 10/6/2024

Aprovado em 17/6/2024

 

Editora-científica: Anke Bergmann. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1972-8777

 

 

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