ARTIGO ORIGINAL

 

Análise do Rodízio de Opioides em Pacientes com Tumores Ginecológicos Internadas em uma Unidade de Cuidados Paliativos entre os anos de 2021 e 2022

Analysis of Opioid Switching in Patients with Gynecological Tumors Admitted to a Palliative Care Unit between 2021 and 2022

Análisis del Cambio de Opioides en Pacientes con Tumores Ginecológicos Ingresadas en una Unidad de Cuidados Paliativos entre 2021 y 2022

 

 

https://doi.org/10.32635/2176-9745.RBC.2024v70n4.4786

 

Beatriz Lorena Santana dos Santos1; Mario Jorge Sobreira da Silva2; Gustavo Tavares Lameiro da Costa3; Maria Fernanda Barbosa4

 

1,2,4Instituto Nacional de Câncer (INCA). Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mails: beatrizstn6@gmail.com; mario.silva@inca.gov.br; barbosamf@gmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0009-0008-4359-3666; Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-0477-8595; Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-2018-6151

3Instituto Nacional de Cardiologia (INC). Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mail: costavox@hotmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-5178-4111

 

Endereço para correspondência: Beatriz Lorena Santana dos Santos. Avenida Nossa Senhora de Fátima, 60 – Bairro de Fátima. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. CEP 20240-050. E-mail: beatrizstn6@gmail.com

 

 

RESUMO

Introdução: Os cuidados paliativos visam melhorar a qualidade de vida de pacientes com câncer, abordando questões físicas, psicossociais e espirituais, tendo o controle da dor como um dos seus pilares. Objetivo: Analisar o perfil de pacientes com tumores ginecológicos internadas na unidade de cuidados paliativos de um hospital de referência em oncologia que utilizaram opioides e a associação do rodízio de opioides com as variáveis clínicas e terapêuticas. Método: Estudo transversal com pacientes hospitalizadas em uma unidade de cuidados paliativos no Rio de Janeiro (2021-2022). Foram coletados, dos registros clínicos e administrativos, dados sociodemográficos, clínicos e terapêuticos das pacientes durante o período de internação. Em seguida, foi analisada a associação entre o rodízio de opioides e as variáveis clínicas e terapêuticas das pacientes. Utilizaram-se os testes qui-quadrado e exato de Fisher nas análises de associação de variáveis categóricas, e o teste de Kruskal-Wallis para as variáveis contínuas. Resultados: Foram analisados os registros de 193 pacientes com média de idade de 54 (+14,97) anos, com maior frequência das autoidentificadas como pardas (66,8%) e pretas (18,1%) e com até seis anos de escolaridade (63,3%). Predominaram os casos de câncer do colo do útero (65,5%), principalmente em estádio III (47%). O rodízio de opioides foi observado em 38,0% das pacientes e foi estatisticamente associado à insuficiência renal e ao tempo de internação, com valor de p<0,05. Conclusão: O controle da dor oncológica requer compreensão do uso de opioides e dos fatores clínicos que podem impactar na prescrição desses medicamentos.

Palavras-chave: Dor do Câncer; Hospitalização; Cuidados Paliativos; Analgésicos Opioides.

 

 

ABSTRACT

Introduction: Palliative care aims to improve the quality of life of cancer patients by addressing physical, psychosocial, and spiritual issues, being pain control one of its pillars. Objective: To analyze the profile of patients with gynecological tumors admitted to the palliative care unit of a reference oncology hospital who used opioids, and the association of opioid switching with clinical and therapeutic variables. Method: Cross-sectional study involving inpatients in a palliative care unit in Rio de Janeiro (2021-2022). Sociodemographic, clinical, and therapeutic data of the patients were collected from clinical and administrative records during their hospitalization. Subsequently, the association between opioid rotation and the clinical and therapeutic variables of the patients was analyzed. The chi-square and Fisher's exact tests for the categorical variables, and the Kruskal-Wallis test for continuous variables were utilized. Results: Records of 193 patients were analyzed, with a mean age of 54 (+14.97) years, predominantly self-claimed as Brown (66.8%) and Black (18.1%), with up to six years of education (63.3%). Cases of cervical cancer were predominant (65.5%), mainly at stage III (47%). Opioid rotation was observed in 38.0% of the patients and was statistically associated with renal insufficiency and length of stay, with a p<0.05. Conclusion: Management of oncological pain relies on understanding opioid use and the clinical factors that may impact the prescription of these medications.

Key words: Cancer Pain; Hospitalization; Palliative Care; Analgesics Opioid.

 

 

RESUMEN

Introducción: Los cuidados paliativos tienen como objetivo mejorar la calidad de vida de los pacientes con cáncer, abordando cuestiones físicas, psicosociales y espirituales con el control del dolor como uno de sus pilares. Objetivo: Analizar el perfil de pacientes con tumores ginecológicos ingresadas en la unidad de cuidados paliativos de un hospital de referencia en oncología, que utilizaban opioides y la asociación de la rotación de opioides con variables clínicas y terapéuticas. Método: Estudio transversal con pacientes hospitalizadas en una unidad de cuidados paliativos en Río de Janeiro (2021-2022). Se recolectaron, de los registros clínicos y administrativos, datos sociodemográficos, clínicos y terapéuticos de las pacientes durante el período de hospitalización. Posteriormente, se analizó la asociación entre la rotación de opioides y las variables clínicas y terapéuticas de las pacientes. Se utilizaron las pruebas ji al cuadrado y exacta de Fisher en los análisis de asociación de variables categóricas, y la prueba de Kruskal-Wallis para las variables continuas. Resultados: Se analizaron los registros de 193 pacientes con una edad promedio de 54 (±14,97) años, siendo la mayoría autodenominada como parda (66,8%) y negra (18,1%), con hasta seis años de escolaridad (63,3%). Predominaron los casos de cáncer de cuello uterino (65,5%), principalmente en estadio III (47%). La rotación de opioides se observó en el 38,0% de las pacientes y estuvo asociada estadísticamente con insuficiencia renal y el tiempo de hospitalización, con un valor de p<0,05. Conclusión: El control del dolor oncológico requiere una comprensión del uso de opioides y de los factores clínicos que pueden impactar la prescripción de estos medicamentos.

Palabras clave: Dolor en Cáncer; Hospitalización; Cuidados Paliativos; Analgésicos Opioides.

 

 

INTRODUÇÃO

Os tumores ginecológicos são classificados de acordo com a sua localização conforme a décima revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde1 (CID-10). Segundo essa classificação, são observados os cânceres do colo do útero, do corpo do útero, de ovário, de endométrio e de vulva. Em 2022, verificou-se que o câncer do colo do útero foi o quarto tumor mais incidente entre as mulheres em todo o mundo, correspondendo a 6,8% dos casos. Além disso, o câncer do colo do útero foi o oitavo mais comum, com 661.021 novos casos diagnosticados2.

 

Nas últimas décadas, houve uma redução na incidência do câncer do colo do útero, atribuída ao maior acesso ao diagnóstico precoce, conforme é possível observar em países da Europa como Portugal, o qual apresentou declínio nas taxas de mortalidade3. No entanto, observa-se que outros tumores ginecológicos, como o câncer de ovário, continuam a apresentar uma crescente incidência no mundo4.

 

Em sentido contrário ao que se observa em outros países economicamente desenvolvidos, no Brasil a incidência do câncer do colo do útero permanece elevada. As estimativas do Instituto Nacional de Câncer (INCA)5 para 2023-2025 indicam uma expectativa de 1.944 óbitos, com uma taxa de mortalidade de 1,8 por 100 mil mulheres para esse tipo de câncer por ano. Para o câncer de ovário, a previsão é de 3.920 óbitos, correspondendo a uma taxa de mortalidade de 3,62 por 100 mil habitantes, a cada ano do triênio.

 

O diagnóstico com estadiamento avançado é observado em muitos casos, limitando as opções terapêuticas que envolvem uma abordagem curativa. Em decorrência disso, os cuidados paliativos emergem como uma linha de cuidado necessária para melhorar a qualidade de vida das pessoas afetadas por essas neoplasias6.

 

Os modelos de saúde atuais apontam para a necessidade do cuidado paliativo durante todo o processo de assistência ao paciente oncológico. Nesse processo, estão incluídas as abordagens de diferentes sintomas experimentados em todas as linhas de cuidado como: dor, constipação, náuseas, dispneia, ansiedade e depressão, os quais impactam de forma significativa a qualidade de vida do paciente7,8.

 

A dor é um sintoma comum em pacientes com malignidade avançada, com potencial para impactar significativamente sua qualidade de vida, principalmente pacientes que passaram por diferentes tratamentos. De acordo com a Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP), trata-se de “uma experiência sensitiva e emocional desagradável associada, ou semelhante àquela associada, a uma lesão tecidual real ou potencial"9. Na prática clínica, a equipe multiprofissional deve compreender clinicamente todos os aspectos da dor, tendo em vista a complexidade desse sintoma, devendo realizar sua avaliação durante a anamnese do paciente, em especial naqueles em cuidados paliativos10.

 

Nesse contexto, os opioides desempenham um papel fundamental, especialmente no controle da dor em pacientes com doenças que ameaçam a vida, proporcionando alívio, melhorando a qualidade de vida e promovendo conforto e dignidade durante o tratamento paliativo na sobrevida do paciente oncológico11. O tratamento da dor com opioides deve ser ajustado às necessidades individuais de cada paciente. Nesse contexto, a substituição de um opioide por outro, conhecida como "rodízio de opioides", busca garantir um controle eficaz da dor, ajustando as doses de forma adequada para otimizar o alívio e minimizar eventos adversos12.

 

Considerando a relevância do uso de opioides nos cuidados paliativos na qualidade de vida dos pacientes, este artigo tem como objetivo descrever o perfil epidemiológico de pacientes com tumor ginecológico primário, internadas na unidade de cuidados paliativos de um hospital de referência de oncologia, que utilizaram opioides durante o período de 2021 e 2022, e analisar a associação entre as variáveis terapêuticas e clínicas e o processo de rodízio de opioides. Essa compreensão é fundamental para contribuir na otimização do manejo da dor e dos cuidados paliativos em pacientes com tumor ginecológico.

 

MÉTODO

Estudo transversal que observou os perfis sociodemográfico e clínico de pacientes diagnosticadas com tumores ginecológicos primários, hospitalizadas e em uso de opioides em uma unidade especializada em cuidados paliativos de um instituto público de referência em oncologia, situado na cidade do Rio de Janeiro, durante o período de 1º de janeiro de 2021 e 31 de dezembro de 2022.

 

O estudo foi conduzido em um instituto de referência em oncologia que possui três unidades especializadas no tratamento de diferentes tipos de neoplasias e uma unidade de cuidados paliativos. Neste estudo específico, as pacientes diagnosticadas com tumores ginecológicos foram inicialmente tratadas na unidade especializada em ginecologia oncológica, com o objetivo de controle ou remissão da doença. Após determinado período e conforme a evolução do quadro clínico, essas pacientes foram transferidas para a unidade de cuidados paliativos, onde receberam assistência especializada.

 

Nesta pesquisa, as informações referentes ao itinerário terapêutico das pacientes ocorreram na unidade de cuidados paliativos, sendo possível observar todo o histórico de tratamentos prévios.

 

Foram incluídas no estudo as pacientes que utilizaram opioides na unidade de cuidados paliativos especializados e excluídas as pacientes sem informações sociodemográficas completas.

 

A coleta de dados envolveu variáveis sociodemográficas, incluindo idade, cor ou raça autodeclarada, e escolaridade. Foram coletadas informações sobre as variáveis clínicas, como diagnóstico, conforme a CID1, e o estadiamento, segundo a Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia13 (Figo), que foram categorizadas em estádio inicial e avançado. As variáveis terapêuticas envolveram a coleta de tratamentos anteriores como: histórico de cirurgia, braquiterapia, radioterapia, quimioterapia e o tempo de tratamento na unidade de oncologia ginecológica, sendo analisado todo o itinerário terapêutico anterior da paciente.

 

Referente aos cuidados paliativos especializados, foram coletados dados sobre: performance status (PS), escala utilizada para avaliar a capacidade funcional do paciente oncológico no momento do encaminhamento para a unidade; comorbidades presentes; ocorrência de insuficiência renal; motivos da internação; presença de rodízio de opioides; e vias de administração dos opioides prescritos. O PS foi classificado em: 0 – quando a paciente estava com atividade física normal; 1 – quando da presença de poucos sintomas; 2 – com sintomas moderados; 3 – quando precisava ficar 50% do tempo acamada; 4 – nas situações em que estavam completamente debilitadas no momento do encaminhamento para a unidade14.

 

O rodízio de opioides foi classificado em níveis seguindo a escala analgésica, sendo observado o de opioides fracos para opioides fortes, ou o contrário. O tempo de internação na unidade de cuidados paliativos especializados também foi analisado.

 

Os dados coletados representam todo o itinerário terapêutico da paciente no instituto, sendo as informações provenientes de sistemas informatizados de dados clínicos, administrativos e prontuários físicos. As informações coletadas foram tabuladas em planilha desenvolvida no Microsoft Excel®.

 

Os dados foram analisados no software RStudio15, sendo realizada estatística descritiva por meio de média, mediana, desvio-padrão para variáveis contínuas, ou número e proporção para variáveis categóricas. A análise da associação entre o rodízio de opioides com as variáveis clínicas e terapêuticas foi realizada utilizando os testes estatísticos qui-quadrado e exato de Fisher16 para verificar a associação entre duas variáveis categóricas, sendo adotada a significância de p<0,05, com intervalos de confiança de 95%, obtendo também a razão de prevalência (RP) dos grupos expostos e não expostos ao rodízio de opioides. Na análise das variáveis contínuas, foi utilizado o teste de Kruskal-Wallis16, a fim de avaliar associação. A associação entre os fatores clínicos e o uso de opioides foi importante para avaliar se o itinerário terapêutico do paciente teve impacto no tratamento da dor como desfecho da rotação de opioides.

 

O presente trabalho foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da instituição, sob o número de parecer 7149607 (CAAE: 68705423.9.0000.5274), com base na Resolução n.º 466/201217 do Conselho Nacional de Saúde.

 

RESULTADOS

Foram identificadas 407 pacientes diagnosticadas com neoplasia ginecológica primária, matriculadas na unidade de cuidados paliativos. Desse total, 205 pacientes apresentaram algum episódio de internação com o uso de opioides. Foram excluídas 12 pacientes das análises por falta de informações sociodemográficas no prontuário.

 

Neste estudo, identificou-se que a idade média das mulheres foi de 54 anos, com desvio-padrão de 14,97. O coeficiente de variação de 0,27 evidencia uma variabilidade relativa moderada dos dados em relação à média, destacando a dispersão dos valores, sendo observado que 34,72 % das pacientes possuíam idade acima de 60 anos. Os dados de escolaridade indicam que a maioria dos pacientes possuía apenas o nível fundamental, com ≤6 anos de estudo (63,21%) (Tabela 1).

 

Na análise do perfil clínico, observou-se que o câncer do colo do útero foi o mais prevalente na população analisada, representando 65,81% dos casos, seguido pelo câncer de endométrio, com 22,28%. O estadiamento avançado ao diagnóstico (III e IV) representou 66,84% das pacientes analisadas, conforme pode ser visto na Tabela 2.

 

Os tratamentos oferecidos na unidade de cuidados ginecológicos incluíram diferentes opções destinadas à cura (pacientes em estadiamento inicial) ou ao controle da doença (pacientes em estadiamento avançado). Do total de pacientes, 49,22% foram submetidas à cirurgia, 74,61% receberam radioterapia e 50,78% foram tratadas com braquiterapia.

 

Em relação aos tratamentos sistêmicos, 39,38% das pacientes receberam derivados de platina e 34,20% foram submetidas a mais de duas linhas de quimioterapia. Alguns pacientes não receberam tratamento sistêmico específico para o câncer ginecológico. A mediana de tempo de tratamento observada nas pacientes na unidade especializada em ginecologia oncológica foi de 658 dias (min.= 2; IQR=861; máx.= 8.825), indicando uma grande variabilidade de tempos de tratamento das pacientes na unidade de oncologia.

 

A hipertensão (23,32%) foi a comorbidade mais prevalente no grupo, seguida da diabetes junto à hipertensão (19,69%) e outras comorbidades também foram encontradas (9,84%). A maior parte das pacientes apresentava PS 3 (53,37%) no momento do encaminhamento à unidade de cuidados paliativos exclusivos. A frequência de metástases a distância foi de 64,77%, e o grupo que não apresentou nenhuma metástase (3,11%) tinha faixa etária acima de 70 anos.

 

Na unidade de cuidados paliativos, os principais motivos de internação no período de estudo foram a dor mal controlada (18,32%), náuseas e vômitos (9,95%), obstrução maligna (10,47%) e sangramento (4,71%). É relevante destacar que a frequência de pacientes internados com os quatro sintomas mencionados foi de 50,79%.

 

O rodízio de opioides na unidade correspondeu a 38,34% no período observado. As pacientes que não fizeram o rodízio utilizaram morfina (59,07%) no período da internação para o controle de sintomas. Na análise do rodízio de opioides, foi observado o esquema de alteração de um opioide forte para outro mais forte em 31,08% dos casos. Na maioria dos casos, a troca foi de um opioide fraco por um forte (51,35%). Nessas situações, observou-se mudança do tramadol pela morfina. Em alguns casos (17,57%), foi observada troca de um opioide forte para um mais fraco.

 

Quando analisadas as variáveis clínicas e terapêuticas, apenas a presença de insuficiência renal demonstrou associação estatística com o rodízio de opioides nas pacientes estudadas, conforme apresentado na Tabela 3.

 

O rodízio de opioides também foi analisado em relação ao número de dias da paciente na internação na unidade de cuidados paliativos, sendo observado que aquelas que passaram mais dias na internação realizaram mais rodízios de opioides. A variabilidade dos dias de internação nos intervalos interquartis observados também foi maior nas pessoas que realizaram o rodízio de opioides (Figura 1).

 

Na análise da associação entre os dias de internação e o rodízio de opioides, observou-se uma diferença estatisticamente significativa com um valor de p<0,05. A mediana de dias de internação entre usuárias que realizaram a mudança de um opioide forte para um fraco foi de 29 dias, enquanto as que utilizaram a mudança de um opioide forte, como a morfina, para outro mais forte, como o fentanil, foi de 23 dias. As pacientes que não realizaram nenhum tipo de rodízio apresentaram mediana de 14 dias de internação. A dispersão dos dias de internação foi maior no grupo que "fez rodízio" (IQR = 27 dias) em comparação com o grupo que "não fez rodízio" (IQR = 13 dias). Isso sugere que os dias de internação para pacientes que fizeram rodízio de opioides variaram mais amplamente com a presença de alguns outliers em ambos os grupos.

 

DISCUSSÃO

O rodízio de opioides das pacientes com tumor ginecológico primário, internadas na unidade de cuidados paliativos de um hospital de referência em oncologia, que utilizaram opioides entre os anos de 2021 e 2022, se demonstrou associado à presença de insuficiência renal nas pacientes e ao tempo de internação da unidade hospitalar.

 

A maioria das pacientes incluídas na análise possuía diagnóstico de câncer do colo do útero. A alta prevalência do câncer do colo do útero em estádio avançado na população estudada pode ser reflexo das fragilidades nas estratégias de prevenção e diagnóstico precoce no Brasil, bem como dos aspectos sociais relacionados a essa neoplasia18. O perfil etário mais frequente observado, entre 40 e 59 anos, está em consonância com estudos que identificam essa faixa como a mais atingida pela doença19. A alta frequência de mulheres que se autodeclararam como pardas e pretas pode ser reflexo das vulnerabilidades e disparidades do acesso aos serviços de saúde da população negra, conforme já destacado em outros estudos20,21.

 

No que tange às características clínicas identificadas na população estudada, observou-se encaminhamento tardio das pacientes com câncer ginecológico para a unidade de cuidados paliativos, reproduzindo um padrão de debilidade já verificado por Falci et al.22. O excesso de sintomas como náusea, obstrução maligna e dor mal controlada são os mais comuns em pacientes com tumor ginecológico encaminhadas para paliação23. O uso da morfina na internação parece refletir a necessidade do uso de opioides mais fortes para o controle da dor24, presente na maioria da população estudada. No grupo que não rodiziou os opioides na unidade de cuidados paliativos, a morfina já estava prescrita desde a unidade de ginecologia oncológica. Observou-se, em algumas situações, o rodízio de opioides fortes para opioides fracos. Embora os motivos das trocas de medicamentos não tenham sido objeto dessa investigação, é possível pressupor que o desmame do uso de opioides, nos casos de controle da dor, possa justificar esse tipo de conduta clínica12.

 

Foi observada significância estatística na análise de associação entre insuficiência renal e rodízio de opioides. Os tumores ginecológicos podem apresentar complicações renais em razão de uma série de fatores intrínsecos à localização do tumor que causam obstrução das vias urinárias e, ao longo do processo, podem levar ao quadro de hidronefrose25. É importante salientar, também, que os tratamentos anteriores, como terapias baseadas em fármacos derivados de platina, podem contribuir para o desencadeamento de insuficiência renal, principalmente se houver comorbidades como hipertensão e diabetes preexistente nas pacientes26.

 

O uso de opioides em pacientes oncológicos com insuficiência renal é um grande desafio para o controle da dor. Esses medicamentos são conhecidos pela interação direta e indireta com os rins, aumentando o risco de lesão renal aguda, especialmente em pacientes polimedicados em cuidado paliativo27. Dessa forma, é comum observarem-se condutas distintas na prática clínica, com maior frequência de rodízio de opioides nessa população, como foi identificado no presente estudo, favorecendo a adoção inicial de opioides menos tóxicos para o sistema renal, e alternando para opioides mais fortes com o intuito de promover o controle da dor28,29.

 

A associação entre o número de dias de internação e o rodízio de opioides também foi observada, permitindo afirmar que pacientes que passaram mais tempo em cuidados paliativos foram mais propensos a realizar mais rodízio de opioides. A dor mal controlada é um dos sintomas característicos das usuárias com tumores ginecológicos, que frequentemente podem necessitar de trocas de opioides durante períodos prolongados de internação em cuidados paliativos. A mudança de um tipo de opioide para outro é uma tentativa de melhorar o controle da dor nessas situações24. Ademais, do ponto de vista farmacológico, deve-se destacar que os pacientes podem desenvolver tolerância ao uso opioides28,29. Portanto, é necessário que a equipe multiprofissional avalie a possibilidade de utilizar alternativas terapêuticas não medicamentosas para o controle álgico nesses pacientes6.

 

Com base no estudo, evidenciou-se que o cuidado paliativo para pacientes com tumores ginecológicos requer uma abordagem cautelosa em virtude de uma variedade de desafios, especialmente relativos às suas condições clínicas, que exercem um impacto significativo na qualidade de vida. O perfil das pacientes revelou algumas vulnerabilidades sociais, muitas vezes relacionadas a diagnósticos tardios e tentativas de múltiplos tratamentos. Portanto, é crucial que o tratamento paliativo seja abrangente, abordando não apenas os aspectos físicos, mas também os emocionais das pacientes, garantindo uma atenção integral e personalizada às suas necessidades individuais20.

 

O estudo apresentou algumas limitações na caracterização da dor das pacientes que realizaram o rodízio de opioides e daquelas que não a realizaram por se tratar de um estudo transversal. As escalas de dor adotadas não foram analisadas, o que pode ter dificultado a identificação do perfil de dor das pacientes e a caracterização adequada da dor experimentada pelas usuárias de opioides. Apesar disso, os resultados apresentados revelaram dados pouco explorados em outros estudos e reforçam a importância de aperfeiçoar as estratégias de controle da dor adotadas para as pacientes que apresentam insuficiência renal, principalmente com abordagens que aumentem o risco de lesão renal.

 

CONCLUSÃO

O estudo identificou que o rodízio de opioides pode estar associado à presença de complicações renais nas pacientes com câncer ginecológico em cuidados paliativos. Além disso, uma das consequências observadas nas pacientes analisadas que fizeram rodízio de opioides foi o aumento do tempo de internação hospitalar. Sabe-se que o uso de opioides no controle da dor oncológica em pacientes com tumores ginecológicos primários é essencial para proporcionar alívio eficaz e melhorar a qualidade de vida dessas mulheres. Portanto, atentar-se às condições que podem dificultar o controle da dor deve ser uma das condutas indispensáveis a ser adotada pelas equipes de saúde, a fim de garantir o manejo seguro e adequado da dor em pacientes com câncer ginecológico em cuidados paliativos.

 

 

CONTRIBUIÇÕES

Beatriz Lorena Santana dos Santos contribuiu na concepção e no planejamento do estudo; na obtenção, análise e interpretação dos dados; e na redação. Mario Jorge Sobreira da Silva contribuiu na concepção e no planejamento do estudo; na obtenção, análise e interpretação dos dados. Gustavo Tavares Lameiro da Costa contribuiu na análise e interpretação dos dados; e na redação. Maria Fernanda Barbosa contribuiu na concepção e no planejamento do estudo. Todos os autores aprovaram a versão final a ser publicada.

 

 

DECLARAÇÃO DE CONFLITO DE INTERESSES

Nada a declarar.

 

 

FONTES DE FINANCIAMENTO

Não há.

 

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em 16/7/2024

Aprovado em 11/10/2024

Editora-científica: Anke Bergmann. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1972-8777

 

Tabela 1. Dados sociodemográficos de pacientes com tumor ginecológico internadas em uma unidade de cuidados paliativos que utilizaram opioides, entre os anos de 2021-2022

Variável

n

%

Faixa etária

 

 

≥ 18 e < 40 anos

37

19,17

≥ 40 e < 60 anos

89

46,11

> 60 anos

67

34,72

Cor da pele autodeclarada

 

 

Pardos

94

48,71

Pretos

35

18,13

Brancos

64

33,16

Escolaridade

 

 

Ensino Fundamental

122

63,21

Ensino Médio

57

29,54

Ensino Superior

14

7,25

 

 

 

 

Tabela 2. Perfil clínico de pacientes com tumor ginecológico internadas em uma unidade de cuidados paliativos que utilizaram opioides, entre os anos de 2021-2022

Variável

n

%

Diagnóstico principal

 

 

Câncer do colo do útero

127

65,81

Câncer do corpo do útero

43

22,28

Câncer de ovário

14

7,25

Outros

9

4,66

Estadiamento do tumor ao diagnóstico

Estadiamento inicial (I e II)

61

31,61

Estadiamento avançado (III e IV)

129

66,84

Não informado

3

1,55

Comorbidades

 

 

Sim

111

57,51

Não

82

42,49

Performance status

 

 

1

17

8,81

2

38

19,69

3

103

53,37

4

34

17,62

Sem informação

1

0,51

Insuficiência renal

 

 

Sim

75

38,86

Não

118

61,14

Metástase

 

 

Nenhuma

6

3,11

Local e linfonodos

62

32,12

A distância

125

64,77

Rodízio de opioides

 

 

Sim

74

38,34

Não

119

61,66

 

 

 

 

Tabela 3. Associação entre o rodízio de opioides e as variáveis clínicas e terapêuticas de pacientes com tumor ginecológico internadas em uma unidade de cuidados paliativos que utilizaram opioides, entre os anos de 2021-2022

Variáveis

Razão de prevalência

 (IC 95%)

Prevalência (%)

p

 

Cirurgia

1,17 (0,87, 1,58)

50,76

0,290

 

Radioterapia

1,17 (0,70, 1,95)

49,33

0,543

 

Braquiterapia

1,22 (0,90, 1,67)

49,61

0,190

 

Comorbidades

0,92 (0,66, 1,29)

52,77

0,640

 

Insuficiência renal

1,42 (1,09, 1,84)

38,75

0,005

 

 

 

 

 

 

Legenda: IC = intervalo de confiança.

 

 

 

 

Figura 1. Relação entre o tempo de internação e o rodízio de opioides em pacientes com tumor ginecológico internadas em uma unidade de cuidados paliativos que utilizaram opioides, entre os anos de 2021-2022

 

 

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