ARTIGO DE OPINIÃO
Prevenção e Controle do Câncer em Tempos de Capitalismo de Vigilância: Caminhos para o Combate à Desinformação
Cancer Prevention and Control in the Age of Surveillance Capitalism: Paths to Fight Disinformation
Prevención y Control del Cáncer en Tiempos de Capitalismo de Vigilancia: Caminos para Combatir la Desinformación
https://doi.org/10.32635/2176-9745.RBC.2025v71n1.4829
Fernando Lopes Tavares de Lima1; Telma de Almeida Souza2
1Instituto Nacional de Câncer (INCA), Coordenação de Prevenção e Vigilância, Divisão de Vigilância e Análise de Situação. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mail: flima@inca.gov.br. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-8618-7608
2INCA, Coordenação de Ensino, Divisão de Ensino Lato Sensu e Técnico. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mail: tsouza@inca.gov.br. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0003-2786-1890
Endereço para correspondência: Fernando Lopes Tavares de Lima. Rua Marquês de Pombal, 125, 6º andar – Centro. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. CEP 20230-240. E-mail: flima@inca.gov.br
INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, testemunhou-se um crescimento acelerado do acesso à Internet, o que modificou as formas de interagir e obter informações. A expansão da conectividade móvel contribuiu para o desenvolvimento de uma sociedade hiperconectada, na qual aproximadamente 5,4 bilhões de indivíduos estão conectados à Internet em todo o mundo1. Essa revolução tecnológica foi acompanhada de uma transformação social, que influenciou e influencia percepções e comportamentos.
O conceito de capitalismo de vigilância, desenvolvido por Zuboff2, oferece uma perspectiva crítica sobre essas transformações. A autora argumenta que as grandes empresas tecnológicas coletam, analisam e monetizam dados pessoais, estabelecendo um ciclo de vigilância que explora a privacidade para obter lucro e moldar comportamentos. Para que essa forma de negócio prospere, é crucial que as pessoas permaneçam conectadas pelo maior tempo possível, fornecendo seus dados, que são convertidos em mercadoria negociável2.
Em um contexto em que há abundância de dados, as redes sociais se tornam espaços em que a desinformação se dissemina com facilidade e rapidez, engajando os usuários e gerando lucro para determinados grupos. Esse modelo de capitalismo se alimenta da infodemia, um fenômeno caracterizado pela disseminação rápida e ampla de informações, verdadeiras e falsas, sobre um determinado tema de saúde3. A infodemia alcança diversas áreas da saúde, incluindo o câncer.
A crescente infodemia sobre o câncer representa uma ameaça à saúde pública, pois expõe a população a riscos ao promover a disseminação de informações falsas que podem prejudicar a tomada de decisões4,5. Por isso, torna-se relevante a implementação de estratégias eficazes para reconhecer e combater a desinformação e promover informações baseadas em evidências. Esse combate deve ser compreendido como parte de um processo mais amplo e complexo de transformação na comunicação e educação em saúde, visando ao controle do câncer.
O objetivo deste texto é apresentar os desafios da prevenção e controle do câncer em tempos de capitalismo de vigilância e possíveis caminhos para combater a desinformação nessa área.
DESENVOLVIMENTO
A desinformação na área da saúde é um desafio em constante crescimento que vem ganhando maior atenção da comunidade científica desde 20026. A desinformação não se restringe aos usuários individualmente, mas constitui um problema para a sociedade, impactando a saúde pública e reduzindo a confiança nas instituições de saúde e na ciência6-8.
Inicialmente, é fundamental compreender as diferentes formas de desinformação. A informação incorreta (misinformation) refere-se à propagação de informações falsas sem intenção maliciosa. A desinformação (disinformation) envolve a criação deliberada e a disseminação de informações falsas com o propósito de enganar e prejudicar, enquanto a má informação (malinformation) diz respeito a informações verdadeiras, porém compartilhadas fora de contexto ou distorcidas para causar dano8,9.
Para entender melhor a disseminação da desinformação, é essencial examinar não apenas suas várias formas de manifestações, mas também os motivos pelos quais as pessoas acreditam nela, dinâmica impulsionada por fatores psicológicos e sociais. Pessoas tendem a acreditar em desinformação quando esta coincide com suas crenças e preconceitos pessoais, um fenômeno conhecido como viés de confirmação. Além disso, a desinformação, além de atrair pela novidade do conteúdo, explora emoções intensas como medo e raiva, inibindo o pensamento crítico e aumentando a suscetibilidade das pessoas a aceitarem informações falsas como verdadeiras10.
A desinformação não é um fenômeno novo, mas se expandiu consideravelmente a partir de 2006, com a popularização das mídias sociais3,6,8. A infodemia, caracterizada pelo excesso de informações sobre um determinado tema de saúde3, dificulta a distinção entre informações confiáveis e desinformação, criando um ambiente propício para a disseminação de informações enganosas. O fenômeno é alimentado por narrativas que exploram medos e inseguranças e por estratégias retóricas, estabelecendo uma conexão complexa e retroalimentada com a polarização e a desconfiança nas fontes oficiais e científicas8,11.
As mídias sociais apresentam uma vasta quantidade de informações, geradas ou amplificadas pelo público, que praticamente não são filtradas pelas plataformas digitais3. Nesses espaços, essas narrativas são amplificadas por algoritmos que criam câmaras de eco e privilegiam conteúdos sensacionalistas com objetivo de aumentar o engajamento dos usuários8, impulsionando a todos para a era da infodemia3. A falta de regulamentação e de responsabilização das empresas de tecnologia, associada à ausência de mecanismos de verificação de fatos, permite que informações falsas se espalhem rapidamente6,7,10-12.
É importante ressaltar, entretanto, que a disseminação de informações falsas não é um efeito colateral das mídias sociais. Na verdade, as empresas proprietárias das plataformas têm interesse econômico em não combater a desinformação em massa. O modelo de negócios, conhecido como capitalismo de vigilância, depende da coleta e análise de grandes volumes de dados para personalizar a venda de anúncios e influenciar comportamentos12. Por isso, buscam maximizar o tempo de engajamento dos usuários, promovendo conteúdos que evocam emoções intensas. Essa estratégia transforma a desinformação em um catalisador para o aumento de receita com publicidade2,12. Os algoritmos, ocultos nas plataformas digitais, são de difícil compreensão pelos usuários, e exacerbam o problema da infodemia ao privilegiar o número de interações em detrimento da precisão da informação. Isso resulta em um cenário em que as empresas de tecnologia têm um incentivo econômico para não combater a desinformação, pois isso poderia diminuir o tempo de permanência dos usuários e, consequentemente, a quantidade de dados coletados e seu lucro.
Muitos criadores de conteúdo, comerciantes, políticos e as próprias plataformas lucram com a promoção de informações falsas12, incluindo as que abordam o câncer. A infodemia do câncer abrange desde mitos sobre as causas da doença até a promoção de medidas preventivas e tratamentos não comprovados, o que pode incentivar a adoção de ações sem base em evidências4,5,13. Mesmo que a tomada de decisões de pacientes e usuários seja especialmente baseada em valores e relações interpessoais, a credibilidade inadequada em informações não verificadas pode resultar em atrasos no tratamento e em decisões prejudiciais à saúde dos pacientes, exacerbando suas condições e reduzindo suas chances de recuperação14.
O estado emocional dos pacientes com câncer, associado a outros fatores, como a escolaridade e o acesso à rede de apoio disponível, os torna especialmente suscetíveis à desinformação, e essa vulnerabilidade é exacerbada pela dificuldade em acessar informações confiáveis e pela esperança em encontrar soluções rápidas e alternativas que prometem curas milagrosas13,14. A disseminação de desinformação pode levar a escolhas prejudiciais, como aderir a tratamentos não comprovados ou recusar cuidados médicos baseados em evidências. Por isso, reforçar a confiança na ciência e nos profissionais de saúde é fundamental para mitigar os efeitos danosos da desinformação e assegurar que as decisões dos pacientes se baseiem em práticas orientadas pela ciência4,8.
Diante da complexidade dos fatores associados a esses riscos, faz-se necessário articular ações intersetoriais que considerem os aspectos tecnológicos e sociais para mitigar os impactos negativos da desinformação na saúde individual e coletiva13,14. Entre os descritos na literatura3,8,11, destacam-se o letramento midiático e científico da população; a proteção da integridade das informações científicas; a regulamentação e a responsabilização das grandes empresas de tecnologia; o engajamento comunitário e parcerias globais; e o fortalecimento das respostas institucionais.
O letramento midiático e científico visa fortalecer a capacidade das pessoas em distinguir informações confiáveis e enganosas11. Sua ampliação, associada a estratégias de educação em saúde, desempenha um papel vital para promover uma cultura de discernimento informacional, na qual os indivíduos desenvolvem a competência necessária para avaliar criticamente as informações3,8. No entanto, esse processo deve adotar um caráter menos instrumental e incentivar projetos que incentivem a colaboração entre cientistas e população15.
A proteção da integridade das informações científicas é requisito para fortalecer a confiança nas instituições de saúde. Para tanto, devem-se garantir a transparência das fontes de informação e promover a verificação das informações8,11. Além disso, essa estratégia deve ser acompanhada por uma tradução precisa do conhecimento, que minimize a influência de interesses externos e adapte as informações para a população3.
A regulamentação das mídias sociais é um passo importante para controlar a disseminação de desinformação e responsabilizar tanto as empresas quanto os usuários envolvidos11. Para tanto, devem-se estabelecer leis e normas que promovam maior transparência e responsabilidade das plataformas digitais quanto ao conteúdo de suas redes. Isso inclui a criação de processos robustos para a filtragem e verificação de fatos, além de medidas proativas para a remoção rápida de conteúdos falsos e prejudiciais, promovendo um ambiente informativo mais seguro e confiável3,11.
O desenvolvimento de parcerias tanto globais como locais entre governos, sociedade civil e comunidade científica permite o compartilhamento de melhores práticas e recursos para enfrentar a desinformação e qualifica as estratégias de comunicação11. Estudos indicam que incentivar influenciadores com grandes audiências a disseminar informações de alta qualidade pode ser eficaz para reduzir a desinformação, assim como é crucial que criadores de conteúdo de alta qualidade científica tornem suas informações mais cativantes e compreensíveis para o público8. Assim, estabelecer redes de comunicação cooperativas pode facilitar a troca de informações precisas e fortalecer a resiliência coletiva contra a desinformação.
Considerando que os métodos para produzir notícias falsas têm sido aprimorados, o fortalecimento das respostas institucionais deve ser intensificado por meio do desenvolvimento de políticas fundamentadas em evidências, melhorando a capacidade de identificação de informações equivocadas e ampliando o alcance das notícias verdadeiras. Em face a esse panorama, a infodemiologia emerge como uma ferramenta essencial.
A infodemiologia é um recente campo de estudo sistemático das informações de saúde disponíveis na Internet, como redes sociais, motores de busca e fóruns on-line, que objetiva identificar e responder a crises de desinformação que possam afetar a saúde da população3. Isso envolve a implementação de um sistema contínuo de monitoramento e a análise dos padrões de troca de informações e dados na Internet, processo conhecido como infovigilância3.
No contexto da prevenção e controle do câncer, a infodemiologia e a infovigilância permitem monitorar e analisar a disseminação de informações relacionadas ao câncer na Internet, identificando os temas mais prevalentes e as fontes mais compartilhadas, além de compreender como essas informações influenciam o comportamento dos usuários4,5,13,14. Com base nessas análises, podem ser desenvolvidas estratégias para combater os mitos e as desinformações sobre câncer.
Entretanto, para se alcançar esse objetivo, faz-se necessário o domínio de diferentes ferramentas e métodos para coletar, analisar e interpretar dados, como a raspagem de dados da Internet, análise de redes sociais, análise de conteúdo, análise de sentimento, aprendizagem de máquinas e análise de tendências de interesse populacional16. Assim, a implementação eficaz da infodemiologia requer investimentos para lidar com a complexidade da gestão de grandes volumes e variedades de dados nas plataformas digitais, bem como para desenvolver e adotar ferramentas tecnológicas adequadas. Além disso, é importante formar equipes interdisciplinares dedicadas à permanente coleta e análise desses dados.
Diante do cenário hiperconectado da sociedade atual, esses investimentos são indispensáveis para fortalecer a capacidade das instituições em construir políticas públicas de saúde baseadas em evidências no contexto da prevenção e controle do câncer.
CONCLUSÃO
Em tempos de capitalismo de vigilância, grandes empresas de tecnologia, a partir de seus algoritmos, buscam maximizar o engajamento dos usuários, privilegiando a disseminação de conteúdos sensacionalistas e emocionalmente carregados. Esse ambiente é propício para a propagação de informações falsas, incluindo as relacionadas à prevenção e controle do câncer.
A infodemia, bastante prevalente nesse contexto, dificulta a distinção entre informações verdadeiras e falsas e expõe pacientes e cuidadores a terapias não comprovadas, induzindo a decisões prejudiciais à saúde. As instituições de saúde, tradicionalmente engajadas em batalhas contra indústrias baseadas no capitalismo de produção, como as químicas, de agrotóxicos, tabaco, bebidas alcoólicas e ultraprocessados, agora enfrentarão um novo desafio com as grandes empresas de tecnologia, que possuem um nítido conflito de interesses ao lidar com a desinformação.
Diante da complexidade do capitalismo de vigilância, é primordial a busca por caminhos que visem diminuir os impactos da desinformação em saúde, identificando padrões de disseminação de desinformação e embasando políticas públicas baseadas em evidências científicas. Como um campo emergente ainda em desenvolvimento, é necessário que mais investimentos sejam realizados para que se possa efetivamente contribuir para a prevenção e o controle do câncer.
CONTRIBUIÇÕES
Ambos os autores contribuíram substancialmente na concepção e no planejamento do estudo; na obtenção, análise e interpretação dos dados; na redação e revisão crítica; e aprovaram a versão final a ser publicada.
DECLARAÇÃO DE CONFLITO DE INTERESSES
Nada a declarar.
FONTES DE FINANCIAMENTO
Não há.
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Recebido em 23/7/2024
Aprovado em 15/8/2024
Editora-científica: Anke Bergmann. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1972-8777
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