ARTIGO DE OPINIÃO

 

Câncer Infantojuvenil do Sistema Nervoso Central: Reflexões para o Sistema Único de Saúde

Childhood and Adolescent CNS Cancer: Reflections for the Brazilian Healthcare System

Cáncer Infantil y Juvenil del SNC: Reflexiones para el Sistema Único de Salud Brasileño

 

 

https://doi.org/10.32635/2176-9745.RBC.2025v71n1.4900

 

Luís Felipe Ribeiro Soares1; Saint Clair Gomes Júnior2; Nathalia Grigorovski de Almeida Kuyven3

 

1Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer (IECPN). Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz); Instituto Fernandes Figueira (IFF), Programa de Pós-graduação em Saúde da Criança e da Mulher. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mail: lufesoares@hotmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0001-8269-0639

 2Fiocruz, IFF. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mail: scgomesjr@gmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1554-943X

 3Instituto Nacional de Câncer (INCA). IECPN. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mail: ngrigorovski@hotmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1094-0034

 

Endereço para correspondência: Luís Felipe Ribeiro Soares. Rua General Glicério, 71/102 – Laranjeiras. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. CEP 22245-120. E-mail: lufesoares@hotmail.com

 

 

INTRODUÇÃO

Os tumores infantojuvenis do Sistema Nervoso Central (SNC) são um grupo heterogêneo de patologias responsáveis pela segunda principal causa de mortalidade por doença nessa população1. Em razão da necessidade de cuidados multidisciplinares para o tratamento e reabilitação, bem como das sequelas físicas, cognitivas e psicossociais que podem perdurar por toda a vida, os tumores do SNC são considerados uma condição crônica e complexa (CCC) de saúde2,3. Essa população tem apresentado uma melhora considerável no seu prognóstico e qualidade de vida, graças à incorporação de novas terapias e abordagens nos sistemas de saúde, os quais trouxeram novos desafios aos gestores de saúde e a toda a sociedade, no que se refere à garantia de financiamento e acesso a centros especializados para o tratamento neurocirúrgico e de cuidados intensivos e oncológicos pediátricos3.

 

O cenário da terapia intensiva e da oncologia pediátrica no Brasil é muito aquém do que se preconiza adequado para o cuidado desses pacientes. Há uma carência no número de leitos de Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIP) em todo território nacional e os disponíveis concentrados nas capitais ou Regiões mais ricas do país4,5. Em julho de 2023, o Brasil possuía 6.489 leitos de UTIP, com uma relação no país de um leito de UTIP para cada 6.184 crianças, segundo dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES). Em se tratando de centros especializados em oncologia pediátrica, os números são ainda menores, estando grande parte localizada nas Regiões Sul e Sudeste do país5,6.

 

DESENVOLVIMENTO

A taxa de incidência do câncer infantojuvenil é de 155,8 por milhão, correspondendo de 1% a 4% de todos os tumores malignos da população7. No Brasil, as estimativas para o triênio 2023-2025 são de 7.930 casos de câncer em indivíduos abaixo de 19 anos, segundo dados do Instituto Nacional de Câncer (INCA), havendo uma estimativa de que 8% a 15% desses casos novos sejam para tumores do SNC7-9.

 

As taxas específicas de mortalidade variam conforme a idade, o grau de ressecção e os tipos de tumor, com os astrocitomas apresentando uma média de sobrevida em cinco anos acima de 80%, enquanto os subtipos de maior risco de meduloblastoma têm taxas de sobrevida mais baixas, especialmente em crianças menores de três anos, com taxas de até 45%10.

 

O tratamento dos tumores infantojuvenis do SNC é complexo, envolvendo intervenções cirúrgicas, longos períodos de internação e acompanhamento ambulatorial10. A neurocirurgia, com acompanhamento intensivo pediátrico, é, em geral, o tratamento inicial, podendo ser seguido pela quimio e radioterapia10. O sucesso do tratamento depende do diagnóstico precoce, por meio de um exame físico detalhado e da realização de exame de imagem11,12. No entanto, isto muitas vezes não é possível, uma vez que a sintomatologia varia de acordo com a localização da lesão. Soma-se isso ao fato de que pacientes muito jovens têm dificuldade em relatar os sintomas e estes podem ser erroneamente atribuídos a outras causas, já que muitos sintomas estão presentes em patologias comuns da infância13.

 

É de suma importância aumentar a suspeição diagnóstica das equipes assistenciais no nível primário de atenção à saúde e de pronto atendimento. No âmbito internacional, Wilne et al.14 publicaram, em 2013, um guideline para orientar os profissionais de saúde na assistência de crianças que podem ser portadoras de um tumor no SNC. Mais recentemente, Costa et al.15 analisaram a adequabilidade e a plausibilidade de uma intervenção com agentes de saúde no contexto da atenção primária por um programa de educação continuada focada na identificação precoce do câncer pediátrico. Na análise estratificada dos dados, os profissionais treinados encaminharam 3,6 vezes mais crianças ao hospital de referência por suspeita de lesões em SNC, com aumento no número de casos confirmados no grupo de intervenção15.

 

O impacto da estruturação de um serviço de neurointensivismo já está comprovado na redução dos custos hospitalares e no desfecho clínico desses pacientes16. No que diz respeito ao neurointensivismo pediátrico, no entanto, há uma carência de publicações que corroborem a criação de unidades especializadas. Neste sentido, a criação de um serviço capacitado para o tratamento e cuidado específico de crianças com patologias neurológicas e neurocirúrgicas representa um avanço para o tratamento de crianças com tumores de SNC17.

 

O Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer (IECPN) tem sido pioneiro no cuidado neurointensivo pediátrico no Sistema Único de Saúde (SUS). Inaugurado em 2013, o serviço de pediatria conta com 15 leitos de UTI e dez leitos de enfermaria, e iniciou, desde 2022, o tratamento quimioterápico de crianças com tumores de SNC. Nos últimos dez anos, foram realizadas 1.760 internações e 1.747 cirurgias, sendo 470 neurocirurgias para tratamento de tumores do SNC, o que representa mais de 90% de todas as crianças com diagnóstico de tumor de SNC no Estado do Rio de Janeiro.

 

Com a infraestrutura adequada e equipe assistencial capacitada, o IECPN se propôs a oferecer os cuidados pediátricos assistenciais a toda a rede de saúde nacional, via Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC). A CNRAC tem como objetivo regular o fluxo da referência interestadual de pacientes que necessitam de assistência hospitalar de alta complexidade desde que haja ausência de oferta de serviços em seu Estado de residência ou com insuficiência avaliada. Segundo o órgão, não há demanda para os cuidados de crianças com tumores de SNC. Há que se perguntar se, diante dos dados epidemiológicos e da escassez de serviços capacitados para um país de dimensões continentais, não há subnotificação de casos ou mesmo atraso no diagnóstico.

 

É importante salientar que tanto o diagnóstico quanto o tratamento desses tumores têm impacto na vida da criança e adolescente e em todo o núcleo familiar. O curso de tratamento da doença tende a ser longo, o que implica em afastamento do paciente do ambiente escolar e do convívio social numa fase crucial para diferentes dimensões do seu desenvolvimento, bem como em afastamento de seus responsáveis de atividades remuneradas, com importante repercussão econômico-financeira. Além disso, tanto o tumor quanto o tratamento podem levar a déficits no neurodesenvolvimento que, para serem minimizados, vão demandar cuidados multidisciplinares para abordagem e reabilitação.

 

Esse contexto aproxima as crianças e adolescentes com tumores do SNC do conceito de pessoas com deficiências, demandando, por parte da sociedade, um olhar para as suas necessidades especiais por meio de políticas que garantam o acesso a terapias de suporte, planos educacionais individualizados, suporte emocional e garantia de direitos para o paciente e seus familiares, visando promover a inclusão e o bem-estar dessas pessoas.

 

O cuidado com a criança com tumor do SNC exige, além de tecnologia e infraestrutura, o adequado funcionamento dos sistemas de saúde, com articulação entre todos os seus níveis. O que nos leva ao questionamento: Estaria o SUS preparado para lidar com esses pacientes?

 

A Lei 14.30818 de 8/3/2022, que estabelece a Política Nacional de Atenção à Oncologia Pediátrica (PNAOP), é um marco importante na garantia de acesso e direitos às crianças e adolescentes com tumores do SNC, pois define diretrizes para os gestores de saúde tais como: integrar a PNAOP com a Política Nacional para a Prevenção e Controle do Câncer; implementar planos estaduais de atenção em oncologia pediátrica, assim como as respectivas linhas de cuidado; criar centros especializados e de serviços de teleconsultoria para facilitar o diagnóstico precoce e o seguimento clínico; fortalecer os processos de regulação de serviços de diagnóstico, tratamento, reabilitação e cuidados centrados na família, entre outros, e incluir nos currículos dos cursos de graduação e residências da área de saúde disciplinas referentes ao câncer infantojuvenil.

 

Como se observa, os desafios para a implementação da PNAOP são enormes, mas as perspectivas são encorajadoras. O sucesso dessas ações depende da implementação de estratégias coordenadas entre os diferentes níveis de gestão do SUS, como também do envolvimento dos profissionais da saúde e da sociedade civil. De maneira geral, é necessário que haja garantia de recursos para a oferta de serviços e pesquisas com foco na oncologia pediátrica nos campos da medicina translacional, pesquisa clínica, avaliação de tecnologia em saúde, avaliação econômica, epidemiologia, ciências humanas e outros campos do conhecimento. Também é necessária a realização de investimentos na capacitação das equipes multidisciplinares da atenção primária e de pronto atendimento, com foco na elaboração de protocolos de triagem e encaminhamento, e integração entre os níveis de atenção à saúde. Este último visando o fortalecimento de centros regionais de referência, assim como a manutenção de centros de excelência em neuro-oncologia pediátrica com infraestrutura e equipe especializada, de modo a garantir tratamento, melhora na qualidade de vida e nas taxas de sobrevida desses pacientes.

 

Além disso, também é necessário pensar em matrizes de indicadores que permitam aos profissionais envolvidos nos diferentes níveis de gestão monitorar a implementação da PNAOP. A definição dessas matrizes não é uma tarefa trivial, dada a diversidade regional do território brasileiro, uma vez que estes indicadores devem ir muito além da taxa de mortalidade, procedimentos realizados ou valor gasto. É preciso que se pense em indicadores que ponderem dimensões do cuidado para diferentes cenários, considerando questões como: o grau de educação e capacitação das equipes multidisciplinares para a suspeição e rápido encaminhamento aos serviços de triagem; a implementação e uso dos protocolos de diagnóstico; a incorporação das famílias nas decisões clínicas e abordagens terapêuticas; a sensibilização da população para a questão do câncer infantojuvenil; a integração e comunicação entre os diferentes níveis de atenção à saúde; o funcionamento dos centros regionais de referência e dos centros de excelência em neuro-oncologia pediátrica; além de outros indicadores com impacto na incorporação de novos e melhores tratamentos, aumento da sobrevida e, principalmente, melhoria na qualidade de vida destes pacientes e suas famílias.

 

CONCLUSÃO

O desenvolvimento e consequente incorporação de novas tecnologias vêm exercendo uma verdadeira revolução na trajetória de diagnóstico, tratamento e prognóstico das crianças e adolescentes com tumores do SNC nos próximos anos. A introdução de plataformas de sequenciamento de nova geração gerou grandes conjuntos de dados digitais, com aplicações clínicas importantes, como preditores de risco, detecção precoce, prognóstico e identificação de marcadores. Desta forma, à medida que o tratamento do câncer se torna cada vez mais complexo e desafiador, tecnologias como Inteligência Artificial (IA), Machine Learning, Deep Learning, Big Data, entre outras, se tornarão cada vez mais fundamentais para apoiar e facilitar a continuidade do cuidado. Estas soluções são capazes de, por exemplo: analisar padrões de imagens radiológicas na busca de anormalidades; identificar sinais precoces de uma doença; realizar triagem genômica na busca de terapias mais adequadas ao perfil genético; sintetizar o conteúdo de inúmeras fontes na busca da melhor evidência; identificar fatores de risco para uma melhor prevenção; e auxiliar na farmacovigilância.

 

Esse cenário traz à tona a necessidade dos gestores do SUS terem a seu dispor ferramentas que permitam planejar a alocação de recursos e a disponibilização dos serviços de forma a garantir um acesso equânime a toda a população que demande por essas tecnologias e não acentuar ainda mais as diferenças regionais de alocação de recursos que prioriza as Regiões mais ricas e desenvolvidas.

 

 

CONTRIBUIÇÕES

Luís Felipe Ribeiro Soares contribuiu na concepção e no planejamento do estudo; na obtenção, análise e interpretação dos dados; e na redação. Saint Clair Gomes Júnior contribuiu na concepção e no planejamento do estudo; na obtenção, análise e interpretação dos dados; na redação e revisão crítica. Nathalia Grigorovski de Almeida Kuyven contribuiu na concepção e no planejamento do estudo; na obtenção, análise e interpretação dos dados; na revisão crítica. Todos os autores aprovaram a versão final a ser publicada.

 

 

DECLARAÇÃO DE CONFLITO DE INTERESSES

Nada a declarar.

 

 

FONTES DE FINANCIAMENTO

Não há.

 

 

REFERÊNCIAS

1. Chintagumpala M, Gajjar A. Brain tumors. Pediatr Clin North Am. 2015;62(1):167-78. doi: https://doi.org/10.1016/j.pcl.2014.09.011

2. Tsimicalis A, Stevens B, Ungar WJ, et al. The cost of childhood cancer from the family’s perspective: a critical review. Pediatric Blood Cancer. 2011;56(5):707-17. doi: https://doi.org/10.1002/pbc.22685  

3. Fardell JE, Wakefield CE, Abreu Lourenco R, et al. Long-term health-related quality of life in young childhood cancer survivors and their parents. Pediatr Blood Cancer. 2021;68(12):e29398.

4. Barbosa AP, Cunha AJLAD, Carvalho ERMD, et al. Terapia intensiva neonatal e pediátrica no Rio de Janeiro: distribuição de leitos e análise de eqüidade. Rev Assoc Med Bras. 2002;48(4):303-11.

5. Souza DCD, Troster EJ, Carvalho WBD, etal. Disponibilidade de unidades de terapia intensiva pediátrica e neonatal no município de São Paulo. J Pediatr (Rio J). 2004;80(6):453-60.

6. Desiderata. Trabalho coletivo saúde em foco. Panorama da oncologia pediátrica. Boletim Informativo. 2019;6:7.

7. Santos MO, Lima FCS, Martins LFL, et al. Estimativa de incidência de câncer no Brasil, 2023-2025. Rev Bras Cancerol. 2023;69(1):e-213700. doi: https://doi.org/10.32635/2176-9745.RBC.2023v69n1.3700

8. Instituto Nacional de Câncer, Sociedade Brasileira de Oncologia Pediátrica, organizadores. Câncer na criança e no adolescente no Brasil: dados dos registros de base populacional e de mortalidade. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde, Instituto Nacional de Câncer, Sociedade Brasileira de Oncologia Pediátrica; 2008. 220 p.

9. Magalhães GA, Magalhães DMA, Bellas GO, et al. Análise epidemiológica, clínica e patológica de crianças com neoplasias do sistema nervoso central tratadas com radioterapia no Instituto Nacional de Câncer. Rev Bras Cancerol. 2023;69(4):e-054051.

10. Keating RF, Goodrich JT, Packer RJ. Tumors of the pediatric central nervous system. 2 ed. New York: Thieme; 2013. 549 p.

11. Wood JR, Green SB, Shapiro WR. The prognostic importance of tumor size in malignant gliomas: a computed tomographic scan study by the Brain Tumor Cooperative Group. J Clin Oncol. 1988;6(2):338-43.

12. Kuhnt D, Becker A, Ganslandt O, et al. Correlation of the extent of tumor volume resection and patient survival in surgery of glioblastoma multiforme with high-field intraoperative MRI guidance. Neuro-Oncol. 2011;13(12):1339-48.

13. Goldman RD, Cheng S, Cochrane DD. Improving diagnosis of pediatric central nervous system tumours: aiming for early detection. CMAJ Can Med Assoc J. 2017;189(12):E459-63.

14. Wilne S, Koller K, Collier J, et al. The diagnosis of brain tumours in children: a guideline to assist healthcare professionals in the assessment of children who may have a brain tumour. Arch Dis Child. 2010;95(7):534-9.

15. Costa AMAM; Magluta C; Gomes Júnior SC. Evaluation of continuing education of family health strategy teams for the early identification of suspected cases of cancer in children. BMC Med Educ. 2017;17(1):155

16. Bell MJ, Carpenter J, Au AK, et al. Development of a pediatric neurocritical care service. Neurocrit Care. 2009;10(1):4-10. doi: https://doi.org/10.1007/s12028-008-9061-3

17. Cappell J, Kernie SG. Advances in pediatric neurocritical care. Pediatr Clin North Am. 2013;60(3):709-24. doi: https://doi.org/10.1016/j.pcl.2013.02.008

18. Presidência da República (BR). Lei nº 14.308 de 8 de março de 2022. Institui a Política Nacional de Atenção à Oncologia Pediátrica. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2022 março 9; Edição 46; Seção 1:2

 

 

 

Recebido em 21/8/2024

Aprovado em 31/10/2024

 

Editora-científica: Anke Bergmann. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1972-8777

 

 

image001

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.