EDITORIAL

 

Desafios e Estratégias para Mitigar os Impactos dos Desastres Climáticos nos Tratamentos Oncológicos: Aprendizados da Enchente de Maio de 2024 no Rio Grande do Sul

Challenges and Strategies to Mitigate the Impacts of Climate Disasters on Oncology Treatments: Lessons Learned from the May 2024 Flood in Rio Grande do Sul

Desafíos y Estrategias para Mitigar los Impactos de los Desastres Climáticos en los Tratamientos Oncológicos: Aprendiendo de la Inundación de Mayo de 2024 en Río Grande del Sur

 

 

https://doi.org/10.32635/2176-9745.RBC.2024v70n3.4935

 

Letícia Baggio1; Gabriela Xavier Ortiz2; Camila Carolina Fischer3

 

1Pesquisadora autônoma. E-mail: baggio.leti@gmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0003-0484-5644

2,3Hospital Mãe de Deus. Porto Alegre (RS), Brasil. E-mails: gabrielax@ufcspa.edu.br; camila.cafischer@gmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-7895-5742; Orcid iD: https://orcid.org/0009-0009-9270-3072

 

Endereço para correspondência: Letícia Baggio. Rua Silva Jardim, 424 – Centro. Nova Prata (RS), Brasil. CEP 95320-000. E-mail: baggio.leti@gmail.com

 

A saúde, definida no seu conceito amplo de bem-estar físico, mental e social, é diretamente afetada por fatores ambientais, sejam eles naturais ou decorrentes da ação humana1. Em razão dos impactos do aquecimento global2, ondas de calor extremo, secas, inundações, ciclones ou incêndios florestais têm afetado o ambiente, tornando-se uma realidade preocupante no Brasil2,3.

 

Em maio de 2024, o Rio Grande do Sul (RS) vivenciou a pior enchente de sua história, totalizando 182 óbitos em 470 municípios afetados, com mais de 629 mil desabrigados4. Em Porto Alegre e Região Metropolitana, a inundação bloqueou as principais vias de acesso da cidade, com interrupção do funcionamento do aeroporto e rodoviária, além de interrupção quase total na distribuição de água potável e energia elétrica. Nesse cenário, instituições de saúde públicas e privadas tanto de baixa quanto de alta complexidade foram diretamente afetadas, seja pela necessidade de evacuação pelo alto nível da água ou pela insuficiência de recursos básicos para funcionamento.

 

Como enfatizado pela American Society of Clinical Oncology (ASCO)5, situações de crise afetam pacientes em tratamento de doenças e agravos não transmissíveis (Dant) como o câncer, uma vez que requerem acesso consistente aos serviços de saúde. Danos na infraestrutura local resultam em desabastecimentos logísticos de insumos, interrupção na realização de exames, atendimentos e diagnósticos, dificuldades de locomoção de pacientes até os serviços e indisponibilidade de profissionais de oncologia para fornecer cuidados com segurança, aumentando a morbimortalidade a longo prazo6,7. No contexto gaúcho da calamidade, foram exatamente esses desafios que colocaram o sistema de saúde em prova para seguir na assistência aos pacientes oncológicos.

 

Com base nos quatro estágios de gerenciamento de desastres humanitários – mitigação, preparação, resposta e reconstrução8,9 –, compartilham-se aqui experiências e dados da literatura sobre manutenção de tratamentos contra o câncer e atividades de pesquisa clínica oncológica após um serviço de saúde que atende a aproximadamente mil pacientes oncológicos por mês ser atingido pela enchente. As principais frentes de trabalho para continuidade do atendimento envolveram a gestão da cadeia de suprimentos, processos assistenciais e comunicação assertiva. Idealmente, deve haver profissionais responsáveis previamente definidos, incluindo backups, em planos de contingência atualizados, a serem seguidos nos comitês de crise emergenciais, com tempos de resposta que variam de 2 a 24 horas para tomadas de decisão9.

 

Durante as fases de mitigação e preparação, as ações devem ser direcionadas para estabelecer um local provisório para atendimento do serviço oncológico, caso o local original das operações se torne inacessível10. Licenças temporárias podem ser fornecidas para locais alternativos que exijam a realocação da farmácia e outros serviços, principalmente referente a quesitos de tamanho do espaço, requisitos de saneamento ou equipamentos8. O acesso ao local deve ser estratégico, com análise das rotas de acesso viáveis para pacientes, profissionais de saúde e transporte de produtos farmacêuticos8.

 

Na fase de resposta, deve-se estruturar uma cadeia de suprimentos provisória dos insumos básicos de medicamentos e materiais médicos no contexto oncológico, considerando que haverá dispensação de medicamentos via oral e injetáveis. A transferência dos estoques da área afetada para área segura deve ser realizada por uma equipe liderada por farmacêutico com meios de transporte adaptados – no RS ocorreu mediante barcos voluntários e do exército – para evitar perdas e garantir continuidade dos tratamentos, uma vez que serão enfrentadas oscilações de consumo sem previsão histórica e possíveis rupturas nos estoques de segurança11.

 

O contato próximo a fornecedores e fabricantes entre o hospital que enfrenta o desastre é fundamental para saber com rapidez a disponibilidade de insumos na região e a capacidade de abastecimento8. Os medicamentos devem ser transferidos preferencialmente para um local com fontes secundárias de energia como geradores elétricos8. Na impossibilidade de controle da umidade por desumidificadores ou ar-condicionado, a exposição de cloreto de cálcio granulado no local de armazenamento pode auxiliar a manter o nível de umidade dentro dos parâmetros aceitáveis. Ainda, no caso do RS, outros hospitais e distribuidoras de medicamentos localizados em áreas não afetadas foram importantes parceiros para o armazenamento e a descentralização desses estoques.

 

Não há uma lista definida de medicamentos essenciais básicos no contexto oncológico como a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) ou a Relação de Medicamentos Essenciais proposta pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para emergências humanitárias12. Para contornar riscos de ruptura, sugere-se que a lista de medicamentos que o serviço oncológico tem disponível considere previamente, além da criticidade terapêutica na classificação XYZ, o risco de ruptura e a complexidade de operação logística (OL), mapeando a demanda atual, tempos de entrega de fornecedores e a exposição geográfica, evitando concentração de OL da maior parte de insumos em um único fornecedor12.

 

Para não sobrecarregar a demanda de outros serviços de saúde operantes na região afetada, a descentralização da manipulação das terapias de infusão do local de administração é uma estratégia interessante. Sobre essa experiência, a manipulação diária dos medicamentos oncológicos ocorreu em hospitais parceiros não afetados pelo desastre. Após, organizaram-se rotas de transporte para o novo local de atendimento de acordo com o perfil de cada medicamento, com kit derramamento, avaliando as condições climáticas e otimizando a agenda de pacientes, a fim de evitar desperdícios e perdas. Apenas pacientes em condições clínicas críticas com prognóstico grave foram transferidos para outros locais para assistência integral.

 

Ainda, dentro da operação logística de medicamentos, atenção deve ser dada aos cuidados no recebimento de doações de insumos. O rigor nos critérios sanitários de recebimento de medicamentos e práticas de farmacovigilância devem monitorar e evitar o recebimento e uso de medicamentos falsos, medicamentos não registrados no Brasil, próximos do vencimento/vencidos, danificados ou de origem duvidosa13. Não antecipar os riscos associados a doações irracionais pode acarretar uma responsabilidade financeira e ética ainda maior do que lidar com os problemas decorrentes da falta de medicamentos14,15.

 

Os processos assistenciais devem ser redesenhados para a melhor jornada do paciente dentro das condições adaptadas no cenário de calamidade. O atendimento integral com todos os representantes da equipe multidisciplinar foi essencial para proporcionar o cuidado centrado ao paciente. Houve aumento no acionamento dos profissionais envolvidos, principalmente das equipes de nutricionistas, psicólogos e assistentes sociais, por causa das circunstâncias de vulnerabilidade. Também, ponderações devem ser feitas pela equipe assistencial na administração de novos ciclos dos medicamentos oncológicos sem a possibilidade da realização de exames prévios para ajustes de dose, a fim de evitar toxicidade terapêutica em pacientes com emagrecimento.

 

Registros assistenciais e administrativos devem ser realizados utilizando método adaptado em caso de inexistência de sistemas eletrônicos institucionais, mantendo padrões de confidencialidade8. Por exemplo, a rastreabilidade e o acompanhamento do estoque podem ser feitos por software de planilhas eletrônicas. Já as prescrições, evoluções médicas ou rótulos de medicamentos, de forma manual. Para superar barreiras de deslocamento da equipe de saúde e dos pacientes, a teleconsulta é uma aliada no manejo dos pacientes16, distribuindo as equipes administrativas e assistenciais em grupos, parte em formato de trabalho remoto, parte em trabalho presencial.

 

A comunicação deve ser eficiente com os pacientes em atendimento do serviço afetado. No início das inundações no RS, mídias sociais foram utilizadas como estratégias, a fim de propagar informações sobre interrupções de serviços e novos locais de atendimento aos pacientes8. Essas ferramentas foram apontadas como facilitadoras na comunicação em desastres humanitários por diversos órgãos, incluindo a ASCO5. Após reestruturação de novo local provisório, os pacientes foram contatados por telefone, priorizando o atendimento de pacientes que estavam com tratamento em atraso. Neste caso, a existência e a adaptação do round multidisciplinar envolvendo todas as áreas foram essenciais para o funcionamento da operação, avaliando a agenda de pacientes com 24 horas de antecedência conforme disponibilidade de insumos.

 

Além dos impactos aos processos assistenciais do tratamento oncológico, a crise climática pode impactar significativamente a pesquisa clínica oncológica de diversas formas, por exemplo, os estudos podem enfrentar dificuldades de recrutamento em áreas atingidas e o acesso aos Centros de Pesquisa pode ser interrompido. Medicamentos e materiais de ensaios clínicos exigem controles de temperatura específicos e extremamente rigorosos, podendo a ruptura da cadeia de suprimentos afetar a continuidade da pesquisa. Populações da pesquisa que antes não eram consideradas vulneráveis podem ter sua situação social alterada, trazendo dilemas éticos aos pesquisadores.

 

Problemas de saúde preexistentes dos participantes podem ser agravados e novos podem ocorrer, afetando a segurança e o bem-estar dos pacientes, o que pode levar a maiores taxas de abandono e/ou gerar limitações de elegibilidade. Em um contexto em longo prazo, os serviços de saúde, de uma forma geral, podem sofrer sobrecarga em função dos problemas de saúde induzidos pelo clima, como doenças respiratórias por poluição do ar ou doenças relacionadas ao calor, podendo resultar em redução dos recursos destinados à pesquisa clínica.

 

A fase de reconstrução do serviço de saúde acontecerá concomitantemente ao atendimento provisório, portanto, construir planos de contingência robustos, resilientes, adaptáveis e regionalizados é fundamental17. O impacto da crise climática na oncologia seguirá exigindo estratégias dinâmicas e adaptativas para garantir que os serviços possam continuar a atingir seus objetivos ao mesmo tempo que superam os desafios impostos por um ambiente em mudança. O melhor caminho na construção de ações de superação de desastres é e seguirá sendo o trabalho colaborativo entre profissionais de saúde de todos os serviços.

 

 

REFERÊNCIAS

1.            Ministério da Saúde (BR) [Internet]. Brasília, DF: MS; 2000. Saúde Ambiental. [acesso 2024 ago 20]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/svsa/saude-ambiental

2.            Intergovernmental Panel on Climate Change. Climate change 2022: impacts, adaptation and vulnerability. Contribution of working group ii to the sixth assessment report of the intergovernmental panel on climate change. Cambridge: Cambridge University Press; 2022. doi: https://doi.org/10.1017/9781009325844

3.            National Geographic [Internet]. Burbank: Nactional Geographic; 1996-2015. Redação National Geographic Brasil. O que são eventos climáticos extremos e por que eles são tão perigosos? 2024 maio 10. [Acesso ago 29]. Disponível em: https://www.nationalgeographicbrasil.com/meio-ambiente/2024/05/o-que-sao-eventos-climaticos-extremos-e-por-que-eles-sao-tao-perigosos

4.            G1. Enchentes no RS: total de mortos e desaparecidos. G1, Rio Grande do Sul, 2024 jul 2 [ acesso 2024 ago 20]. Disponível em: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-dosul/noticia/2024/07/02/enchentes-no-rs-total-de-mortos-e-desaparecidos.ghtml

5.            Bernicker E, Averbuch SD, Edge S, et al. Climate change and cancer care: a policy statement from ASCO. JCO Oncol Pract. 2024;20(2):178-186. doi: https://doi.org/10.1200/op.23.00637

6.            Lynch KA, Merdjanoff AA. Impact of disasters on older adult cancer outcomes: a scoping review. JCO Glob Oncol. 2023;9:e2200374. doi: https://www.doi.org.br/10.1200/GO.22.00374

7.            Man RXG, Lack DA, Wyatt CE, et al. The effect of natural disasters on cancer care: a systematic review. Lancet Oncol. 2018;19(9):e482-e499. doi: https://doi.org/10.1016/s1470-2045(18)30412-1

8.            International Pharmaceutical Federation. Responding to disasters: guidelines for pharmacy 2016. Hague: International Pharmaceutical Federation; 2016.

9.            Negi S. Humanitarian logistics challenges in disaster relief operations: a humanitarian organizations’ perspective. J Transp Supply Chain Manag. 2022;16:691. doi: https://doi.org/10.4102/jtscm.v16i0.691

10.         Lotfi T, Bou-Karroum L, Darzi A, et al. Coordinating the provision of health services in humanitarian crises: a systematic review of suggested models. PLoS Curr. 2016;8. doi: https://doi.org/10.1371%2Fcurrents.dis.95e78d5a93bbf99fca68be64826575fa

11.         Kovács G, Falagara Sigala I. Lessons learned from humanitarian logistics to manage supply chain disruptions. J Supply Chain Manag. 2021;57(1):41-9. doi: https://doi.org/10.1111/jscm.12253

12.         Perlino C, Daniel H, Cadwallader AB. Which drugs should be on the essential medicines list? AMA J Ethics. 2024;26(4):282-8. doi: https://doi.org/10.1001/amajethics.2024.282

13.         Dolinskaya I, Besiou M, Guerrero-Garcia S. Humanitarian medical supply chain in disaster response. J Humanit Logist Supply Chain Manag. 2018;8(2):199-226. doi: http://dx.doi.org/10.1108/JHLSCM-01-2018-0002

14.         World Health Organization. Guidelines for medicine donations [Internet]. 3 ed. Geneva: World health organization; 2011. [acesso 2024 ago 29]. Disponível em https://www.who.int/publications/i/item/9789241501989

15.         Rasheed H, Nawaz HA, Rao AZ, et al. Role of pharmacists in responding to humanitarian crisis. Enc Pharm Pract Clini Pharm. 2019:317-24. doi: https://doi.org/10.1016%2FB978-0-12-812735-3.00358-7

16.         Salehinejad S, Jannati N, Sarabi RE, et al. Use of telemedicine and e-health in disasters: a systematic review. J Emerg Pract Trauma. 2021;7(1):56-62. doi: https://doi.org/10.34172/jept.2020.34

17.         Toner E, Schoch-Spana M, Waldhorn R, et al. Framework for healthcare disaster resilience: a view to the future [Internet]. Baltimore: JHU; 2018. [acesso 2024 ago 29]. Disponível em: https://www.alnap.org/help-library/framework-for-healthcare-disasterresilience-a-view-to-the-future

 

 

 

Recebido em 2/9/2024

Aprovado em 2/9/2024

 

Editora-científica: Anke Bergmann. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1972-8777

 

 

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