Editorial

 

Impacto da Nova Lei 14.784/2024 na Pesquisa Clínica em Oncologia

Impact of Law 14,784/24 on Clinical Research in Oncology

Impacto de la Ley 14784/24 sobre la Investigación Clínica en Oncología

 

 

https://doi.org/10.32635/2176-9745.RBC.2024v70n4.4958

 

Cecilia Ferreira da Silva1; Andréia Cristina de Melo2

 

1,2Instituto Nacional de Câncer (INCA), Divisão de Pesquisa Clínica e Desenvolvimento Tecnológico. Rio de Janeiro (RJ), Brasil.

1E-mail: cecilia.silva@inca.gov.br. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0003-4691-4505

2E-mail: andreia.melo@inca.gov.br. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1201-4333

 

Endereço para correspondência: Cecília Ferreira da Silva. Rua André Cavalcanti, 37, 4º andar (sala 18), prédio anexo – Centro. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. CEP 20231-050. E-mail: cecilia.silva@inca.gov.br

 

 

Desde a consolidação do marco regulatório para pesquisas com seres humanos no Brasil em 1996, o país tem se destacado no cenário internacional. A diversidade populacional, o perfil epidemiológico, a localização geográfica estratégica, o potencial de recrutamento e a retenção de participantes tornam o Brasil um local atrativo para estudos clínicos, especialmente em oncologia. O histórico positivo em Boas Práticas Clínicas reforça a posição do país como um parceiro confiável para a pesquisa e o desenvolvimento.

 

O Brasil se destaca no cenário global de pesquisa clínica, ocupando a 20ª posição no ranking mundial e contribuindo com aproximadamente 2% dos estudos globais. A oncologia emerge como a principal área terapêutica nos ensaios clínicos brasileiros, concentrando 30%, 25% e 40% dos dossiês registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) nos anos de 2020, 2021 e 2022, respectivamente1. Essa concentração reflete o aperfeiçoamento, o crescimento e a importância estratégica da oncologia. No cenário mundial, 28% dos medicamentos lançados entre 2011 e 2015, oriundos de ensaios clínicos, foram destinados ao tratamento do câncer2. A relevância da oncologia para a pesquisa clínica no Brasil evidencia o potencial do país para o desenvolvimento de novas terapias e o aprimoramento do tratamento oncológico.

 

O processo regulatório brasileiro, embora fundamental para a proteção dos participantes da pesquisa, apresenta desafios que impactam diretamente a condução de ensaios clínicos no país. A predominância de estudos de fase III, que representaram 57% em 2021 e 59% em 20221, é um reflexo desses desafios. A morosidade do processo regulatório, caracterizado por múltiplas análises e prazos extensos, desestimula a realização de estudos de fases iniciais em território nacional. Essa situação limita a participação do Brasil no desenvolvimento de novas terapias e pode atrasar o acesso da população a tratamentos inovadores.

 

É fundamental repensar o modelo regulatório, buscando um equilíbrio entre a proteção dos participantes e a agilidade necessária para a condução de pesquisas clínicas. Embora haja um robusto arcabouço normativo que regula as pesquisas clínicas no Brasil, composto por resoluções do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e da Anvisa, a necessidade de uma legislação específica para a área foi amplamente desejada e debatida pela comunidade científica. Embora essas normas orientem de forma funcional a condução de pesquisas com seres humanos, seu caráter infralegal limita a evolução da ciência e as demandas da pesquisa clínica. Nesse contexto, surge a nova lei em pesquisa com seres humanos, a Lei n.º 14.8743, sancionada com vetos pela Presidência da República no dia 28 de maio de 2024.

 

Essa lei representa um avanço significativo para a pesquisa clínica no Brasil, atendendo a uma demanda histórica da comunidade científica por um marco regulatório mais específico e ágil. No entanto, a nova legislação, apesar de promissora, ainda apresenta lacunas e incertezas que exigem atenção. A complexidade da lei e a necessidade de regulamentação complementar geram dúvidas sobre sua aplicação prática e podem retardar a sua implementação plena. A comunidade científica aguarda com expectativa a publicação dos decretos regulamentadores que detalharão os procedimentos para a condução das pesquisas, bem como a estruturação efetiva do Sistema Nacional de Ética em Pesquisa.

 

A principal alteração promovida pela lei reside no fluxo regulatório, que sofreu uma reformulação completa, incluindo a criação de um novo sistema de avaliação ética e a redefinição das atribuições e prazos das instâncias envolvidas. O artigo 14, § 7º, da Lei n.º 14.874/20243, ao centralizar a análise ética de pesquisas multicêntricas em um único Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), contraria a Resolução CNS n.º 346/20054 e pode fragilizar a governança ética das pesquisas ao remover a autonomia dos CEP dos centros participantes.

 

Essa centralização, especialmente em um contexto cuja maioria dos CEP acreditados está concentrada atualmente em São Paulo, pode desestimular a participação de centros de pesquisa em outras Regiões do país e acentuar os desequilíbrios regionais no Brasil. A descentralização da acreditação dos CEP é crucial para garantir a diversidade e a representatividade na avaliação ética das pesquisas.

 

Entre os aspectos positivos das mudanças regulatórias, destaca-se o encurtamento dos prazos de análise pelos CEP e Anvisa, o que representa um avanço significativo, com potencial redução do tempo, agilizando o acesso dos participantes a novas terapias e posicionando o Brasil como um polo atraente para a pesquisa clínica internacional.

 

A nova regra de acesso pós-estudo é outro ponto crítico e reflexivo da nova lei, que poderá impactar diretamente o contexto da oncologia. A garantia do acesso gratuito a medicamentos após ensaios clínicos, prevista na Resolução CNS n.º 466/20125 e regulamentada pela Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) n.º 38/20136, representa um potencial benefício aos participantes de pesquisas clínicas, especialmente no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, a nova Lei n.º 14.874/2024, ao flexibilizar os critérios para o fornecimento pós-estudo, transferindo a decisão sobre o fornecimento pós-estudo para o patrocinador, ameaça tal garantia e pode gerar desigualdades no acesso.

 

Dos 701 participantes de pesquisa ativos em estudos clínicos em 2023, na Divisão de Pesquisa Clínica e Desenvolvimento Tecnológico do Instituto Nacional de Câncer (INCA), apenas 1,8% fazia parte de algum programa assistencial (acesso expandido, uso compassivo ou pós-estudo) e foi iniciado entre 2014 e 2023. Cenários semelhantes devem ocorrer em outros centros de pesquisas. Considerando a magnitude dos investimentos em pesquisa e desenvolvimento e o perfil de sobrevida do participante de estudos clínicos em câncer, o impacto orçamentário para os patrocinadores ao garantir o acesso a esses programas na oncologia seria mínimo, tornando essa medida uma solução viável, justa e ética.

 

As novas diretrizes da Lei n.º 14.874/20243, além das temáticas destacadas anteriormente, impactam diretamente todo o ecossistema da pesquisa. O atual momento é de expectativa e inquietude das partes envolvidas, as quais aguardam as publicações dos documentos regimentais complementares para a regulação efetiva da pesquisa com seres humanos no Brasil. Espera-se com otimismo que os potenciais benefícios da lei superem os gargalos e promovam um ambiente ético-científico eficaz e próspero para o desenvolvimento tecnológico do país.

 

 

REFERÊNCIAS

1. Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Coordenação de Pesquisa Clínica em Medicamentos e Produtos Biológicos. Relatório anual de atividades 2020/2021. Brasília, DF: Agência Nacional de Vigilância Sanitária; 2022.

2. Peig D, Fujioka W, Miguel A, et al. A importância da pesquisa clínica para o Brasil. Rev Bras Pesqui Clín. 2022;12(3):123-30.

3. Presidência da República (BR). Lei No 14.874, de 28 de maio de 2024. Dispõe sobre a regulamentação de produtos biológicos no Brasil. Diário Oficial da União, Brasília. 2024 maio 28; Seção 1:3-5.

4. Conselho Nacional de Saúde (BR). Resolução CNS n.º 346, de 13 de janeiro de 2005. Aprova as diretrizes e normas para a pesquisa em saúde. Diário Oficial da União, Brasília,DF. 2005 jan 13; Seção 1:23.

5. Conselho Nacional de Saúde (BR). Resolução n° 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2013 jun 13; Seção I:59.

6. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (BR). Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) n.º 38, de 24 de setembro de 2013. Aprova o Regulamento Técnico sobre a produção, o controle e a comercialização de produtos biológicos. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2013 set 25; Seção 1:31

 

 

 

Recebido em 13/9/2024

Aprovado em 13/9/2024

 

Editora-científica: Anke Bergmann. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1972-8777

 

 

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