EDITORIAL

Prioridades e Desafios para a Prevenção e Vigilância do Câncer

Priorities and Challenges for Cancer Prevention and Surveillance

Prioridades y Desafíos para la Prevención y Vigilancia del Cáncer

 

 

https://doi.org/10.32635/2176-9745.RBC.2025v71n1.5051

 

Gulnar Azevedo e Silva1; Roberto de Almeida Gil2

 

1Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Instituto de Medicina Social Hesio Cordeiro (IMS). Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mail: gulnar@ims.uerj.br. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0001-8734-2799

2Instituto Nacional de Câncer (INCA), Direção-Geral. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mail: roberto.gil@inca.gov.br. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0001-9684-415X

 

Endereço para correspondência: Gulnar Azevedo e Silva. Rua São Francisco Xavier, 524, Reitoria, Térreo – Maracanã. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. CEP 20550-900. E-mail: gulnar@ims.uerj.br

 

 

Em tempos atuais, o mundo vive grandes desafios não só causados por mudanças climáticas como também decorrentes de conflitos geopolíticos sérios, e o debate sobre a longevidade humana volta com grande força. Avanços importantes na saúde pública, iniciados a partir do século XIX, moldaram de forma impactante a transição demográfica, elevando progressivamente a expectativa de vida dos seres humanos. Os recentes ganhos para o prolongamento da vida aconteceram em função da redução de mortes na idade média e na terceira idade1.

 

Esses períodos do curso da vida são exatamente aqueles nos quais as doenças cardiovasculares e o câncer são as principais causas de morte. Estimativas feitas, com base em dados de 127 países em 2019, mostraram que as doenças cardiovasculares são a primeira causa de morte em 70 países, entre eles Brasil e Índia, e o câncer aparece em segundo lugar2. No entanto, em 57 países, o câncer já se coloca em primeiro lugar. Mantendo-se essas tendências, projeta-se que o conjunto de cânceres será responsável pela primeira causa na maior parte dos países ainda neste século.

 

A projeção do peso do câncer no perfil de morbimortalidade das populações continuará trazendo grande desafio para os sistemas de saúde e para a economia. É urgente que os gestores de saúde em todo o mundo se esforcem para minimizar os efeitos do adoecimento das populações em decorrência dos diversos tipos de câncer. Com isso, é necessário que se invista em ações de saúde pública para enfrentar esse quadro no qual a prevenção e a vigilância do câncer se tornam prioridade das autoridades políticas em todos os países. Nesse contexto, as políticas de câncer precisam estar baseadas em dados consistentes de estudos epidemiológicos e dos sistemas de informação em saúde, permitindo avanço no conhecimento sobre a causalidade, bem como no campo da avaliação de ações de detecção precoce e acesso ao diagnóstico e tratamento.

 

Os primeiros relatos sobre prevenção de câncer foram publicados na literatura médica no século XVIII. Em 1727, Le Clerc propôs extirpar pólipos e tumefações antes que se tornassem cancerosos; em 1775, Pott descreveu a relação causal entre a exposição à fuligem e o câncer escrotal em limpadores de chaminé3.

 

No clássico estudo The causes of cancer: quantitative estimates of avoidable risks of cancer in the United States today, publicado em 1981, Doll e Peto4 analisaram a variação da mortalidade por câncer em adultos de 35 a 64 anos em diferentes áreas geográficas e consideraram os resultados de alguns estudos epidemiológicos. Os autores concluíram que 25% a 40% das mortes por câncer poderiam ser atribuídas ao tabagismo, 10% a 70% à alimentação inadequada, 4% à ocupação e 2% à poluição. Estudos5 subsequentes indicam que, além desses fatores, há o papel multiplicador da obesidade e do estilo de vida sedentário. A natureza multifatorial da causalidade dos cânceres tem como premissa que a prevenção pode ser possível se levar em conta as inúmeras vias etiológicas decorrentes do acúmulo e da integração de exposições a diferentes fatores de risco ao longo da vida.

 

O grande desafio para a prevenção primária do câncer está ligado aos efeitos da globalização, que têm gerado mudanças demográficas significativas, e ao aumento do sedentarismo, acometendo de forma mais grave países de média e baixa rendas.

 

A última publicação do Global Cancer Statistics6 (Globocan) estimou para 2022 a existência de 20 milhões de casos e de 10 milhões de mortes por câncer em todo o mundo, sendo o tipo mais incidente o de pulmão (12,4%), seguido dos cânceres de mama, colorretal, próstata e estômago. Embora o aumento da mortalidade proporcional seja maior nos países de alta e média rendas, não há dúvida de que ocorrerá nos países mais pobres onde esse crescimento trará maior impacto para os seus sistemas de saúde.

 

Com a evidência científica atual sobre os fatores de risco reconhecidamente cancerígenos, é possível prever que uma proporção importante de todos os tipos de câncer poderia ser prevenida com medidas efetivas de prevenção primária, e que a mortalidade pode ser reduzida por meio de ações que garantam a detecção precoce.

 

No Brasil, um estudo que analisou a contribuição de fatores relacionados ao estilo de vida, infecções, agentes ocupacionais e ambientais estimou que 34% dos casos entre mulheres e 35% entre homens, assim como 46% e 39% de mortes, respectivamente, poderiam ser evitados7.

 

Os fatores que mais pesaram foram o tabagismo, infecções, baixa ingesta de frutas e hortaliças, excesso de peso, fatores reprodutivos e inatividade física. Ainda em relação aos fatores de risco cancerígenos, em 2020, pela primeira vez na história, 194 países se comprometeram a eliminar o câncer cervical (mais de 95% dos casos relacionados ao HPV), objetivo que parece ser alcançável em todo o mundo com estratégias de rastreamento, com testes moleculares de HPV mais acessíveis, otimização da oferta de serviços de tratamento e vacinação contra o HPV em dose única.

 

A busca de compreensão sobre as causas de câncer continua sendo intensa em todo o mundo e tem ganhado força quando integra as diversas áreas do conhecimento científico. Ainda existem muitas lacunas a serem preenchidas, mas com certeza o acúmulo de evidências produzidas até o momento é suficiente para fundamentar estratégias de prevenção que precisam ser implementadas globalmente.

 

No Brasil, a experiência que vem sendo construída desde a década de 1980 com o controle do tabagismo tem mostrado a efetividade de medidas legislativas, educacionais e reguladoras, as quais fizeram com que a prevalência de fumantes caísse substancialmente no país nas últimas décadas8.

 

Seguindo o exemplo do tabagismo, muitas outras políticas ainda precisam ser instituídas com medidas legislativas e económicas, de forma a promover mudanças em grande escala, visando eliminar ou controlar exposições de risco prevalentes e que podem ser modificadas. Estratégias eficazes de prevenção devem se ancorar em estudos epidemiológicos que permitam comparações futuras e melhoria da vigilância em saúde.

 

É fundamental que sejam definidas as prioridades de investigação considerando a grande diversidade populacional e as enormes desigualdades socieconômicas no país. Os grupos populacionais mais desfavorecidos e vulnerabilizados, vivendo em condições precárias, são os que estão mais expostos aos fatores de risco para o câncer e serão eles que sofrerão as maiores consequências da falta de acesso ao diagnóstico oportuno e ao tratamento de qualidade.

 

REFERÊNCIAS

1. Olshansky SJ, Carnes BA. Inconvenient truths about human longevity. J Gerontol A Biol Sci Med Sci. 2019;74(Supl1):S7-12. doi: https://www.doi.org/10.1093/gerona/glz098

2. Bray F, Laversanne M, Weiderpass E, et al. The ever-increasing importance of cancer as a leading cause of premature death worldwide. Cancer. 2021;127(16):3029-30. doi: https://www.doi.org/10.1002/cncr.33587

3. Lippman SM, Hawk ET. Cancer prevention: from 1727 to milestones of the past 100 years. Cancer Res. 2009;69(13):5269-84. doi: https://www.doi.org/10.1158/0008-5472.CAN-09-1750

4. Doll R, Peto R. The causes of cancer: quantitative estimates of avoidable risks of cancer in the United States today. J Natl Cancer Inst. 1981;66:1191e308.

5. Hermelink R, Leitzmann MF, Markozannes G, et al. Sedentary behavior and cancer-an umbrella review and meta-analysis. Eur J Epidemiol. 2022;37(5):447-60. doi: https://www.doi.org/10.1007/s10654-022-00873-6

6. Bray F, Laversanne M, Sung H, et al. Global cancer statistics 2022: GLOBOCAN estimates of incidence and mortality worldwide for 36 cancers in 185 countries. CA Cancer J Clin. 2024;74(3):229-63. doi: https://www.doi.org/10.3322/caac.21834

7. Azevedo e Silva G, Moura L, Curado MP, et al. The fraction of cancer attributable to ways of life, infections, occupation, and environmental agents in Brazil in 2020. Plos One. 2016;11(2):e0148761.

8. Portes LH, Machado CV, Turci SRB, et al. A política de controle do tabaco no Brasil: um balanço de 30 anos. Ciênc saúde coletiva. 2018;23(6):1837-48.

 

 

 

Recebido em 2/12/2024

Aprovado em 2/12/2024

 

Editora-científica: Anke Bergmann. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1972-8777

 

 

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