ARTIGO DE OPINIÃO

 

 

Desafios e Estratégias no Enfrentamento da Pandemia de Covid-19 em Oncologia Pediátrica: Lições Aprendidas

Challenges and Strategies in Coping with the COVID-19 Pandemic in Pediatric Oncology: Lessons Learned

Desafíos y Estrategias para Abordar la Pandemia de COVID-19 en Oncología Pediátrica: Lecciones Aprendidas

 

 

https://doi.org/10.32635/2176-9745.RBC.2025v71n2.5079

 

Fernanda Ferreira da Silva Lima1; Arissa Ikeda Suzuki2; Lícia Neves Portela3; Luiz Claudio Santos Thuler4; Sima Esther Ferman5

 

1-,3,5Instituto Nacional de Câncer (INCA), Hospital do Câncer I (HCI), Seção de Oncologia Pediátrica. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mails: fernanda.lima@inca.gov.br; asuzuki@inca.gov.br; licia.portela@inca.gov.br; sferman@uol.com.br. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-6658-3101; Orcid iD: https://orcid.org/0000-0001-9689-5985; Orcid iD: https://orcid.org/0009-0003-3057-2720; Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-7076-6779

4INCA, Divisão de Pesquisa Clínica e Desenvolvimento Tecnológico. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mail: lthuler@gmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0003-2550-6537

 

Endereço para correspondência: Sima Esther Ferman. Chefia da Oncologia Pediátrica/HCI/INCA. Praça Cruz Vermelha, 23, 5º andar – Centro. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. CEP 23230-130. E-mail: sferman@uol.com.br

 

 

INTRODUÇÃO

O câncer infantojuvenil é uma doença potencialmente curável. Entretanto, o tratamento efetivo de crianças com câncer depende de avaliação e diagnóstico oportunos, encaminhamento para centros especializados, atuação de equipes multidisciplinares, terapia multimodal coordenada e acesso à terapia de suporte.

 

A pandemia ocasionada pelo novo coronavírus a partir do ano 2020 trouxe um desafio ainda maior ao sistema de saúde. Em resposta aos avanços no número de casos de pessoas infectadas e dos óbitos relacionados à síndrome respiratória aguda grave do coronavírus 2 (severe acute respiratory syndrome coronavirus 2 – SARS-CoV-2), a Organização Mundial da Saúde (OMS) orientou ações para a contenção da doença com medidas de isolamento e distanciamento social, entre outras1. O objetivo dessas iniciativas foi retardar a transmissão da infecção, reduzir a carga sobre os sistemas de saúde e prevenir a mortalidade subsequente2,3. As referidas medidas cursaram com quarentena, bloqueios, transporte limitado, diminuição da disponibilidade de equipes clínica em virtude da doença pelo coronavírus 2019 (coronavirus disease 2019 – covid-19), entre outros.

 

No contexto da pandemia, a prestação de cuidados oncológicos pediátricos foi modificada globalmente e uma rápida resposta foi necessária. Dessa forma, a pandemia de covid-19 imputou um estresse adicional aos sistemas de saúde e a instituições que tratam pacientes oncológicos pediátricos, especialmente em países de baixa e média rendas. As sociedades internacionais se uniram e publicaram orientações para adaptar e otimizar o diagnóstico e o tratamento do câncer infantojuvenil durante a pandemia4,5. A recomendação foi seguir o tratamento do câncer, podendo ocorrer algumas adaptações de acordo com cada tipo tumoral e com a situação do paciente5. Essas orientações foram feitas para quimioterapia, exames diagnósticos e complementares, radioterapia, cirurgias, procedimentos sob anestesia/sedação com manipulação das vias aéreas, cuidados paliativos, e tratamento de suporte em geral5.

 

Ao longo do tempo, foram surgindo publicações que mostraram que a maioria das crianças que testaram positivo para a covid-19 apresentou infecção assintomática ou com sintomas leves6. Cenário semelhante também foi observado em pacientes oncológicos pediátricos7.

 

Publicações recentes têm apontado para os impactos da pandemia no tratamento oncológico pediátrico. Em países de baixa e média rendas, especialmente na fase inicial da pandemia, foram observadas suspensões e/ou reduções de procedimentos oncológicos, assim como consultas de pacientes em acompanhamento fora de tratamento oncológico ativo8-10. Um estudo transversal global, envolvendo instituições oncológicas pediátricas em 79 países, evidenciou redução do número de casos novos de câncer nessa faixa etária, aumento da taxa de abandono do tratamento e modificações do tratamento oncológico (redução de 72% das cirurgias, 57% das quimioterapias e de 28% das radioterapias)11. As consequências em longo prazo dessas modificações ainda são incertas, mas podem influenciar o prognóstico12.

 

Assim que surgiu a informação do primeiro caso de covid-19 no Brasil, a equipe da oncologia pediátrica do Instituto Nacional de Câncer (INCA) se reuniu para traçar as estratégias a serem adotadas pelo serviço. Tais estratégias foram embasadas por discussões internas com toda a equipe e orientações do setor de infecção hospitalar do INCA. O grande desafio foi mitigar o risco de disseminação do vírus e continuar a terapia direcionada ao câncer.

 

DESENVOLVIMENTO

Oncologia pediátrica do INCA

O INCA, situado na cidade do Rio de Janeiro-RJ, Brasil, é um órgão auxiliar do Ministério da Saúde no desenvolvimento e na coordenação das ações integradas para a prevenção e o controle do câncer no Brasil. Essas ações são de natureza multidisciplinar e incluem a assistência médica e hospitalar prestada direta e totalmente gratuita aos pacientes oncológicos, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)13,14.

 

A seção de oncologia pediátrica do INCA é centro de referência para assistência e pesquisa de pacientes pediátricos oncológicos no Brasil. A abordagem de tratamento é feita por uma equipe multidisciplinar especializada na atenção às crianças e adolescentes com câncer.

 

Os pacientes são encaminhados para matrícula pelo sistema de regulação ou diretamente por meio de encaminhamento de outros serviços. São matriculados pacientes com forte suspeita de câncer, para que sejam feitos prontamente investigação diagnóstica e tratamento, no menor tempo possível.

 

No caso da oncologia pediátrica do INCA, foi implementada uma nova estrutura para enfrentar os desafios com base nos seguintes pilares: reorganização do atendimento ambulatorial, reestruturação das internações hospitalares, manutenção do tratamento oncológico e controle da adesão ao tratamento oncológico.

 

Reorganização do atendimento ambulatorial

As medidas de reorganização do fluxo de atendimento ambulatorial foram:

- Priorização das consultas de pacientes em investigação diagnóstica e tratamento ativo.

- Suspensão das consultas presenciais para pacientes em controle, por meio de contato telefônico direto com as famílias, sendo fornecida toda a orientação necessária para cada caso.

- Implementação do teleatendimento disponível 24 horas/dia e a cargo da médica responsável pela emergência pediátrica para esclarecimento de dúvidas para os pacientes em controle, fora de tratamento ativo.

- Autorização da permanência de apenas um acompanhante com o paciente durante a permanência no hospital, seja ambulatorial ou internado, e reforçada a necessidade de distanciamento social.

- Orientação quanto à necessidade de os pacientes permanecerem em casa no período entre os tratamentos.

 

Reestruturação das internações hospitalares

- Na enfermaria de pediatria, foram criados cinco leitos de isolamento, designados como “Ala covid”, com equipes multiprofissionais próprias para cada ala.

- Na emergência pediátrica, foi disponibilizado um leito de isolamento com suporte ventilatório avançado.

- No centro de tratamento intensivo pediátrico, foi instituído um leito com estrutura de isolamento onde todos os profissionais permaneceram com equipamento de proteção individual (EPI). Na ocorrência de mais um paciente suspeito ou positivo para covid-19 com necessidade de suporte intensivo, outros leitos eram adequados com estrutura de isolamento.

- Não eram permitidas visitas aos pacientes internados no período.

 

Manutenção do tratamento oncológico

- Em crianças com exame físico normal, a quimioterapia foi oferecida após a avaliação cuidadosa do risco.

- Foram evitadas quimioterapias intensas para doenças oncológicas consideradas incuráveis.

- A radioterapia, por ocasionar relativamente menor alteração no sistema imune do que a quimioterapia, foi continuada, sendo recomendada cautela em caso de quimioterapia concomitante.

- Quando a cirurgia era necessária em pacientes suspeitos ou confirmados com covid-19, o paciente recebia o preparo pré-operatório em quarto de isolamento, e eram tomadas medidas rigorosas de prevenção e controle de infecção durante a cirurgia e a anestesia, incluindo sala cirúrgica com pressão neutra em casos de suspeita ou confirmação da covid-19.

 

Controle da adesão ao tratamento oncológico

As estratégias de controle de adesão já existentes previamente no serviço foram intensificadas com:

- Rastreamento de faltas às consultas médicas no serviço de oncologia pediátrica.

- Contato telefônico com os responsáveis pela criança para identificação do motivo da falta e orientação.

- Reagendamento de consulta para pacientes em investigação diagnóstica, em tratamento e em cuidados paliativos exclusivos necessitando de suporte próximo.

- Oferecimento de suporte social, como orientações acerca de benefícios assistenciais, projetos e programas sociais (auxílio emergencial) em que o paciente e sua família poderiam ser inseridos, informação de como receber bolsa de alimentos, hospedagem e auxílio-transporte pelo INCAvoluntário e hospedagem em hotel próximo ao hospital com apoio do Instituto Ronald McDonald.

 

CONCLUSÃO

Passada a pandemia da covid-19, faz-se necessária uma reflexão sobre os desafios enfrentados e as oportunidades que surgiram, mas que trouxe tantos ensinamentos para todos. A telemedicina demonstrou ser uma ferramenta muito útil em emergências de saúde pública. O controle de adesão ao tratamento representou uma ferramenta da maior importância em um país de média renda como o Brasil. O trabalho em equipe multidisciplinar, a interação interpessoal e a comunicação eficaz entre as equipes foram fundamentais para superar os obstáculos e fortalecer a assistência à saúde.

 

 

AGRADECIMENTOS

À toda a equipe multidisciplinar que atuou incansavelmente no período de pandemia junto às crianças e adolescentes com câncer em tratamento no INCA.

 

 

CONTRIBUIÇÕES

Todos os autores contribuíram na concepção e no planejamento do estudo; na obtenção, análise e interpretação dos dados; na redação e revisão crítica; e aprovaram a versão final a ser publicada.

 

 

DECLARAÇÃO DE CONFLITO DE INTERESSES

Nada a declarar.

 

 

FONTES DE FINANCIAMENTO

Não há.

 

 

REFERÊNCIAS

1.       World Health Organization. Overview of public health and social measures in the context of COVID-19. Interim guidance [Internet]. Geneva: WHO; 2020. [Acesso 2024 dez 16]. Disponível em: https://iris.who.int/bitstream/handle/10665/332115/WHO-2019-nCoV-PHSM_Overview-2020.1-eng.pdf

2.       Broom A, Kenny K, Page A, et al. The paradoxical effects of COVID-19 on cancer care: current context and potential lasting impacts. Clin Cancer Res. 2020;26(22):5809-13. doi: https://www.doi.org/10.1158/1078-0432.CCR-20-2989

3.       Nagar H, Formenti SC. Cancer and COVID-19 - potentially deleterious effects of delaying radiotherapy. Nat Rev Clin Oncol. 2020;17(6):332-4. doi: https://www.doi.org/10.1038/s41571-020-0375-1

4.       Bouffet E, Challinor J, Sullivan M, et al. Early advice on managing children with cancer during the COVID19 pandemic and a call for sharing experiences. Pediatr Blood Cancer. 2020;67(7):1-4. doi: https://www.doi.org/10.1002/pbc.28327

5.       Sullivan M, Bouffet E, RodriguezGalindo C, et al. The COVID19 pandemic: A rapid global response for children with cancer from SIOP, COG, SIOPE, SIOPPODC, IPSO, PROS, CCI, and St Jude Global. Pediatr Blood Cancer. 2020;67(7):1-12. doi: https://www.doi.org/10.1002/pbc.28409

6.       Nikolopoulou GB, Maltezou HC. COVID-19 in children: where do we stand? Arch Med Res. 2022;53(1):1-8. doi: https://www.doi.org/10.1016/j.arcmed.2021.07.002

7.       Schlage S, Lehrnbecher T, Berner R, et al. SARS-CoV-2 in pediatric cancer: a systematic review. Eur J Pediatr. 2022;181(4):1413-27. doi: https://www.doi.org/10.1007/s00431-021-04338-y

8.       Corso MCM, Soares VJ, Amorim AMP, et al. SARSCoV2 in children with cancer in Brazil: Results of a multicenter national registry. Pediatr Blood Cancer. 2021;68(12):1-7. doi: https://www.doi.org/10.1002/pbc.29223

9.       Mukkada S, Bhakta N, Chantada GL, et al. Global characteristics and outcomes of SARS-CoV-2 infection in children and adolescents with cancer (GRCCC): a cohort study. Lancet Oncol. 2021;22(10):1416-26. doi: https://www.doi.org/10.1016/S1470-2045(21)00454-X

10.     Villanueva G, Sampor C, Palma J, et al. Impact of COVID19 in pediatric oncology care in Latin America during the first year of the pandemic. Pediatr Blood Cancer. 2022;69(10):1-12. doi: https://www.doi.org/10.1002/pbc.29748

11.     Graetz D, Agulnik A, Ranadive R, et al. Global effect of the COVID-19 pandemic on paediatric cancer care: a cross-sectional study. Lancet Child Adolesc Heal. 2021;5(5):332-40. doi: https://www.doi.org/10.1016/S2352-4642(21)00031-6

12.     Moreira DC, Qaddoumi I, Chen Y, et al. Outcomes of SARSCoV2 infection in 126 children and adolescents with central nervous system tumors. Pediatr Blood Cancer. 2023;70(8):1-11. doi: https://www.doi.org/10.1002/pbc.30402

13.     Brown S, Belgaumi A, Kofide A, et al. Failure to attend appointments and loss to follow-up: a prospective study of patients with malignant lymphoma in Riyadh, Saudi Arabia. Eur J Cancer Care (Engl). 2009;18(3):313-7. doi: https://www.doi.org/10.1111/j.1365-2354.2008.01037.x

14.     Paim J, Travassos C, Almeida C, et al. The brazilian health system: history, advances, and challenges. Lancet. 2011;377(9779):1778-97. doi: https://www.doi.org/10.1016/S0140-6736(11)60054-8

 

Recebido em 27/12/2024

Aprovado em 6/1/2025

 

Editora-científica: Anke Bergmann. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1972-8777

 

 

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