ARTIGO DE OPINIÃO
Qual Formação Oferecer a Técnicos em Citopatologia com a Incorporação de Testes Moleculares no Rastreio do Câncer do Colo do Útero?
What Training Should Be Offered to Cytopathology Technicians with the Incorporation of Molecular Tests in Cervical Cancer Screening?
https://doi.org/10.32635/2176-9745.RBC.2025v71n4.5099
Daniela Alves Santana1; Mario Lucio Cordeiro Araújo Junior2; Paulo Roberto Soares Stephens3
1Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Instituto Oswaldo Cruz (IOC), Laboratório de Inovações e Terapias, Ensino e Bioprodutos (LITEB). Instituto Nacional de Câncer (INCA). Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mail: danielasantana@aluno.fiocruz.br. Orcid iD: https://orcid.org/0009-0006-3819-1596
2INCA. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mail: mario.junior@inca.gov.br. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-3823-7690
3Fiocruz, IOC, LITEB. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mail: stephens@ioc.fiocruz.br. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0001-6389-1371
Endereço para correspondência: Daniela Alves Santana. Rua Cordeiro da Graça, 156 – Santo Cristo. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. CEP 20220-400. E-mail: daniela.santana@inca.gov.br
INTRODUÇÃO
A associação bem estabelecida entre o câncer do colo do útero e a infecção persistente de papilomavírus humano (HPV) de alto risco permitiu o desenvolvimento de testes biomoleculares e novas estratégias para a triagem de lesões cervicais pré-neoplásicas1.
Desde 2014, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda a transição de programas que usam a citologia na triagem do câncer do colo do útero para programas baseados em testes moleculares para detecção do HPV, quando houver recursos disponíveis2. Essa recomendação é por causa da maior sensibilidade do teste de HPV em comparação com a citologia, em intervalos maiores de rastreio3.
No Brasil, em março de 2024, o Ministério da Saúde tornou pública a decisão de incorporar, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), os testes moleculares para rastreamento do câncer cervical4.
Essa mudança vai impactar na redução do número de exames de citologia cervical, método de triagem primária em vigor e que representa uma das atividades mais executadas pelos técnicos em citopatologia5.
De acordo com as diretrizes e orientações para a formação do técnico em citopatologia, do Ministério da Saúde, o eixo formativo de ações e procedimentos intrínsecos aos exames no campo da citologia corresponde à maior carga horária presente na organização de conteúdo curricular para essa categoria6.
Diante dessa questão, torna-se fundamental pensar no processo formativo e na atuação desse profissional diante da incorporação do novo método de triagem do câncer cervical.
DESENVOLVIMENTO
Atuação do técnico em citopatologia
A adoção da técnica descrita por Papanicolaou para a detecção precoce do câncer do colo do útero foi um marco para o desenvolvimento de campanhas de rastreamento desse câncer, que evidenciou o importante papel desempenhado pelos técnicos em citopatologia no âmbito da saúde pública7.
O técnico em citopatologia, conhecido também como citotécnico, atua em laboratórios classificados como serviços de diagnóstico por citopatologia ou anatomia patológica, realizando os procedimentos técnicos e a análise microscópica de líquidos, fluidos orgânicos, secreções, esfregaços e raspados6.
Desde a introdução do exame de Papanicolaou até os dias de hoje, a leitura de lâminas de citologia ginecológica corresponde à atividade mais executada pelos técnicos em citopatologia, além de ser o conteúdo mais recorrente entre as questões específicas de citopatologia nas provas de concursos públicos para essa categoria profissional5.
Testes moleculares para rastreio do câncer do colo do útero
No Brasil, as ações para a incorporação do programa de rastreamento organizado baseado na detecção de testes de DNA-HPV oncogênico já estão sendo implementadas. A Portaria SECTICS/MS n.º 3, de 7 de março de 20244, condicionou a incorporação do teste à atualização das Diretrizes Brasileiras para o Rastreamento do Câncer do Colo do Útero do Ministério da Saúde, considerando o prazo de 180 dias para disponibilização de tecnologias no SUS.
De acordo com a publicação preliminar das diretrizes, a recomendação para mulheres de risco padrão é a realização de teste de DNA-HPV oncogênico com genotipagem parcial ou estendida como método de rastreamento primário para o câncer do colo do útero. A repetição do teste de DNA-HPV oncogênico é recomendada em intervalos de cinco anos, após resultado negativo. Quando a amostra for positiva, será recomendado encaminhamento para colposcopia após resultado de teste de DNA-HPV oncogênico, mostrando a presença dos tipos 16 e/ou 18. O exame citopatológico (citologia reflexa) será realizado após um teste de DNA-HPV oncogênico positivo para tipos diferentes de 16 e/ou 18. Se a citologia estiver alterada ou se mostrar insatisfatória, a mulher deverá ser encaminhada para realização de colposcopia8.
Com a incorporação desse novo protocolo, ocorrerá uma redução considerável no quantitativo de citologia no SUS, impactando diretamente os profissionais que atuam realizando esse exame, incluindo o técnico em citopatologia. Dessa forma, é necessário pensar na atuação desse profissional para que a sua formação esteja de acordo com as exigências do mercado de trabalho.
O caminho a seguir
A prática da citotecnologia está passando por mudanças. Rockson9 aponta para uma nova era de educação em citotecnologia em razão das novas diretrizes de rastreamento. Nesse contexto, é fundamental reconhecer que a atuação dos técnicos em citopatologia vai além da triagem de lâminas de citologia ginecológica. O novo currículo define o escopo atual e a sua participação em práticas cada vez mais avançadas. Os domínios englobados nessa estruturação incluem morfologia celular no reconhecimento de padrões celulares associados a processos de doenças benignas e malignas, aplicação de técnicas de histotecnologia e imuno-histoquímica, apoio técnico na confecção de material para avaliação rápida no local durante procedimentos de aspiração por agulha fina e uso de dispositivos de triagem assistidos por computador projetados para auxiliar na localização de células anormais.
Rockson9 destaca ainda que as habilidades discutidas já são praticadas por alguns profissionais, mas, em muitos casos, foram adquiridas mais pela prática do que pela educação formal, reforçando a importância da sua inserção no currículo.
Mukherjee et al.10 descreveram a experiência do programa de citotecnologia do estado de Nebraska, destacando a incorporação de novas competências à formação, entre as quais se incluem tecnologias complementares como colorações especiais, imuno-histoquímica, imunocitoquímica e diagnóstico molecular.
No Brasil, o Instituto Nacional de Câncer (INCA)11 atua há mais de 30 anos na formação de técnicos em citopatologia, tendo o curso mais tradicional na formação desses profissionais, ofertando vagas para todas as Regiões do país. No plano de curso de 2023 do curso técnico em citopatologia, o INCA incorporou conteúdos relacionados à histopatologia e à imuno-histoquímica, com o objetivo de ampliar o campo de atuação profissional dessa categoria.
Com a finalidade de continuar fortalecendo a formação profissional e ampliar os conteúdos curriculares em consonância com as demandas globais, o INCA está promovendo a reestruturação do curso, visando alinhar a qualificação técnica às novas exigências e desafios do sistema de saúde.
Nesse cenário, é possível projetar que a profissão tende não apenas a se consolidar, mas também a reconfigurar sua identidade cuja formação tradicional, baseada principalmente na leitura morfológica, tende a ser ampliada para abranger uma visão mais integrada e tecnológica do processo diagnóstico.
Os desafios da mudança
Nos últimos 20 anos, tem havido, em diversos países, muita discussão sobre o futuro do campo da citopatologia10. Desde 2020, nos Estados Unidos, a área da citotecnologia é reconhecida por fornecer serviços avançados de diagnóstico e suporte médico, integrando interpretações morfológicas com tecnologias complementares para fornecer cuidados seguros e eficazes ao paciente12.
No Brasil, de acordo com o Catálogo Nacional de Cursos Técnicos (CNCT)13 do Ministério da Educação, os técnicos em citopatologia devem estar habilitados a “colaborar na investigação e implantação de novas tecnologias e executar, sob supervisão do profissional responsável de nível superior, atividades padronizadas de laboratórios referentes aos exames microscópicos em sua área técnica”13.
No entanto, destaca-se a necessidade de atualização do CNCT, a fim de promover maior alinhamento com as demandas tecnológicas atuais, facilitando, assim, a incorporação desses conteúdos nas grades curriculares dos cursos técnicos.
Sturgis et al.14 publicaram um relatório com os principais dados e resultados do Simpósio de Educação em Citologia, realizado em novembro de 2022, sob a organização da Sociedade Americana de Citopatologia e da Academia Internacional de Citologia. O documento aborda, entre outros temas, as novas possibilidades educacionais para a área. De maneira consistente, os participantes relataram que os ambientes de ensino enfrentam limitações significativas, sobretudo em função de restrições orçamentárias e de tempo disponível para a formação.
Diante desse cenário, torna-se fundamental que os centros de formação estejam alinhados com os avanços tecnológicos e se reorganizem para atender às novas demandas de saúde, especialmente no que se refere ao rastreamento do câncer. Isso requer a disponibilização de novos equipamentos e a adequação da infraestrutura para o treinamento adequado dos técnicos em citopatologia, de modo a garantir uma formação compatível com as exigências e transformações do mercado de trabalho atual.
No contexto brasileiro, observa-se, ainda, a necessidade de uma definição mais clara e normativa das atribuições dos profissionais de nível técnico e de nível superior no processamento e na análise de amostras destinadas ao diagnóstico do câncer do colo do útero, por meio de testes de DNA-HPV e da citologia reflexa. Essa delimitação é essencial para garantir a segurança, a qualidade técnica dos procedimentos laboratoriais e a adequada alocação de responsabilidades no âmbito das equipes multiprofissionais.
CONCLUSÃO
Nesse contexto, as recentes mudanças nas diretrizes para o rastreamento do câncer do colo do útero tornam ainda mais urgente a necessidade de reflexão sobre o perfil profissional do técnico em citopatologia. É imprescindível reconhecer sua importância no contexto laboratorial e promover o fortalecimento de sua identidade nos serviços de anatomia patológica, assegurando que sua formação e atribuições estejam alinhadas às transformações tecnológicas e às exigências do sistema de saúde atual.
CONTRIBUIÇÕES
Daniela Alves Santana e Paulo Roberto Soares Stephens contribuíram substancialmente na concepção e no planejamento do estudo; na obtenção, análise e interpretação dos dados; na redação e revisão crítica. Mario Lucio Cordeiro Araújo Junior contribuiu na obtenção, análise e interpretação dos dados; na redação e revisão crítica. Todos os autores aprovaram a versão final a ser publicada.
DECLARAÇÃO DE CONFLITO DE INTERESSES
Nada a declarar.
DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS
Todos os conteúdos subjacentes ao texto do artigo estão contidos no manuscrito.
FONTE DE FINANCIAMENTO
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes) – Código de Financiamento 001.
REFERÊNCIAS
1. Teixeira JC, Vale DB, Bragança JF. Cervical câncer screening program based on primary DNA-HPV testing in a Brazilian city: a cost-effectiveness study protocol. BMC Public Health. 2020;20(1):576. doi: https://doi.org/10.1186/s12889-020-08688-4
2. World Health Organization. WHO guideline for screening and treatment of cervical pre-cancer lesions for cervical cancer prevention: second edition [Internet]. Geneva: World Health Organization; 2021. [acesso em 2025 mar 18]. Disponível em: https://iris.who.int/bitstream/handle/10665/342365/9789240030824-eng.pdf?sequence=1
3. Carvalho CF, Teixeira JC, Bragança JF, et al. Cervical cancer screening with hpv testing: updates on the recommendation. Rev Bras Ginecol Obstet. 2022;44(3):264-71. doi: https://doi.org/10.1055/s-0041-1739314
4. Ministério da Saúde (BR). Portaria SECTIC/MS nº 3, de 7 de março de 2024. Torna pública a decisão de incorporar, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS, os testes moleculares para detecção de HPV oncogênico, por técnica de amplificação de ácido nucléico baseada em PCR, com genotipagem parcial ou estendida, validados analítica e clinicamente segundo critérios internacionais para o rastreamento do câncer de colo de útero em população de risco padrão e conforme as Diretrizes do Ministério da Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2023 maio 8 [acesso 2025 jan 12]; Seção I:60. Disponível em: https://www.gov.br/conitec/pt-br/midias/relatorios/portaria/2024/portaria-sectics-ms-no-3-de-7-de-marco-de-2024/@@download/file
5. Santana DA, Carvalho FL, Carvalho GG, et al. Perfil exigido em editais e provas de concursos públicos para o cargo de técnico em citopatologia. RSD. 2023;12(9):1-10. doi: https://doi.org/10.33448/rsd-v12i9.43183
6. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Técnico em citopatologia: diretrizes e orientações para a formação. Brasília, DF: MS; 2011.
7. Medrado L, Lopes RM. Conexões históricas entre as políticas de rastreamento do câncer de colo do útero e a educação profissional em citopatologia no Brasil. Trab educ saúde. 2023;21:e00969206. doi: https://doi.org/10.1590/1981-7746-ojs969
8. Ministério da Saúde (BR). Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde. Relatório de recomendações: protocolos e diretrizes. Diretrizes brasileiras para o rastreamento do câncer do colo do útero: parte i - rastreamento organizado utilizando testes moleculares para detecção de DNA-HPV oncogênico [Internet]. Brasília, DF: MS; 2024. [acesso 2025 jan 15]. Disponível em: https://www.febrasgo.org.br/images/2024/relatorio-preliminar-diretrizes-brasileiras-para-o-rastreamento-do-cancer-do-colo-do-utero-parte-i-rastreamento-organizado-utilizando-testes-moleculares-para-deteccao-de-dna-hpv-oncogenico.pdf
9. RocksonL. Cytotechnology schools: future outlook. Diagn Cytopathol. 2024;52(8):407-12. doi: https://doi.org/10.1002/dc.25281
10. Mukherjee M, Sprinkle S, Yuil-Valdes A, et al. The challenges of change.
J Am Soc Cytopathology. 2021;10(5):465-70. doi: https://doi.org/10.1016/j.jasc.2021.06.007
11. Instituto Nacional de Câncer, Fundação Oswaldo Cruz. Curso de educação profissional técnica de nível médio habilitação em citopatologia: plano de curso [Internet]. Rio de Janeiro: Inca; 2023. [acesso 2025 jan 25]. Disponível em: https://www.epsjv.fiocruz.br/sites/default/files/files/Plano%20curso%20citopatologia.pdf
12. Donnelly A, Sturgis C, Goulart R, et al. Editorial: the evolution of a profession through education: cytotechnology training program curriculum revisions in the United States. J Am Soc Cytopathol. 2021;10(5):459-64. doi: https://doi.org/10.1016/j.jasc.2021.06.001
13. Ministério da Educação (BR). Catálogo Nacional de Cursos Técnicos [Internet]. Versão 4. Brasília (DF): Ministério da Educação; 2020 [atualizado 2024 nov 29; acesso 2025 jan 25]. Disponível em: https://cnct.mec.gov.br/cnct-api/catalogopdf
14. Sturgis CD, LeBlanc JB, Smith MA, et al. Optimizing schools of cytology: discussions from the 2022 ASC/IAC cytology education symposium, north american strategies, and european symbiosis [Editorial]. Cytopathology. 2024;35(1):2-6. doi: https://doi.org/10.1111/cyt.13314
Recebido em 27/1/2025
Aprovado em 2/7/2025
Editora-científica:
Anke Bergmann. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1972-8777
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