ARTIGO ORIGINAL
O Doloroso Percurso por Tratamento: Experiência de Mulheres com Câncer de Mama em um Estado do Nordeste do Brasil
The Painful Journey for Treatment: the Experience of Women with Breast Cancer in a Northeastern Brazilian State
El Doloroso Recorrido por el Tratamiento: la Experiencia de Mujeres con Cáncer de Mama en un Estado del Noreste de Brasil
https://doi.org/10.32635/2176-9745.RBC.2025v71n3.5176
Rosalva Raimundo da Silva1; Mauricéa Maria de Santana2; Adriana Falangola Benjamin Bezerra3; Jurema Telles de Oliveira Lima4; Tereza Maciel Lyra5
1,2,5Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Instituto de Pesquisas Aggeu Magalhães. Recife (PE), Brasil. E-mails: rosalva_jupi@hotmail.com; mauriceasantana@gmail.com; tereza.lyra@fiocruz.br. Orcid iD: http://orcid.org/0000-0003-2096-9815; Orcid iD: https://orcid.org/0000-0001-5822-3889; Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-3600-7250
3Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Recife (PE), Brasil. E-mail: adriana.bbezerra@ufpe.br. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-5278-3727
4Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira. Recife (PE), Brasil. E-mail. jurematsales@gmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0003-2671-3570
Endereço para correspondência: Rosalva Raimundo da Silva. Residencial The Sun, Lote 4, SHTN Trecho 2 – Asa Norte. Brasília (DF), Brasil. CEP 70800-220. E-mail: rosalva_jupi@hotmail.com
RESUMO
Introdução: O câncer de mama é um dos maiores desafios de saúde pública no Brasil e no mundo em razão de suas altas taxas de incidência, prevalência e mortalidade. Objetivo: Analisar a integralidade do cuidado às mulheres com câncer de mama na Rede de Atenção à Saúde do Estado de Pernambuco, considerando a dimensão do ser integral. Método: Pesquisa qualitativa conduzida com usuárias em tratamento de câncer de mama nas diferentes Macrorregiões de Saúde do Estado, utilizando entrevistas semiestruturadas. Resultados: Evidenciaram-se fragilidades significativas na integralidade da assistência às mulheres, especialmente no enfrentamento de necessidades biopsicossociais frequentemente negligenciadas, sobretudo em contextos de vulnerabilidade socioeconômica. Usuárias relataram desafios relacionados a longas distâncias para o tratamento, falta de apoio logístico adequado, dificuldades financeiras que impactam na alimentação e sustento familiar, e ausência de suporte contínuo nos diferentes níveis de atenção. Conclusão: As barreiras enfrentadas pelas mulheres reforçam a necessidade de estratégias que garantam a integralidade do cuidado, como programas de navegação, implementação da linha de cuidado e uma melhor coordenação assistencial. Também se destaca a importância da educação em saúde como ferramenta crítica para empoderar as mulheres em busca de seus direitos e cuidados integrais.
Palavras-chave: Neoplasias da Mama; Assistência Integral à Saúde; Mulheres; Atenção à Saúde.
ABSTRACT
Introduction: Breast cancer is one of the biggest public health challenges in Brazil and worldwide due to its high rates of incidence, prevalence, and mortality. Objective: To analyze the comprehensiveness of care for women with breast cancer in the Health Care Network of the State of Pernambuco, considering the integral nature of the human being. Method: Qualitative research conducted with women undergoing breast cancer treatment in different State Health Macroregions, using semi-structured interviews. Results: Significant fragilities in the comprehensiveness of care were identified, especially in addressing frequently neglected biopsychosocial needs, particularly in contexts of socioeconomic vulnerability. Women reported challenges related to long distances for treatment, lack of adequate logistical support, financial difficulties impacting food and family sustenance, and the absence of continuous support at different levels of care. Conclusion: The barriers faced by women highlight the need for strategies that ensure comprehensive care, such as navigation programs, the implementation of care pathways, and improved care coordination. The importance of health education is also emphasized as a critical tool to empower women in securing their rights and comprehensive care.
Key words: Breast Neoplasms; Comprehensive Health Care; Women; Delivery of Health Care.
RESUMEN
Introducción: El cáncer de mama es uno de los mayores desafíos de la salud pública en el Brasil y en el mundo debido a sus altas tasas de incidencia, prevalencia y mortalidad. Objetivo: Analizar la integralidad del cuidado de las mujeres con cáncer de mama en la Red de Atención a la Salud del Estado de Pernambuco, considerando la dimensión del ser integral. Método: Investigación cualitativa realizada con mujeres en tratamiento de cáncer de mama en las diferentes Macrorregiones de Salud del Estado, utilizando entrevistas semiestructuradas. Resultados: Se evidenciaron debilidades significativas en la integralidad de la atención a las mujeres, especialmente en el enfrentamiento de necesidades biopsicosociales frecuentemente desatendidas, especialmente en contextos de vulnerabilidad socioeconómica. Las mujeres reportaron desafíos relacionados con las largas distancias para el tratamiento, la falta de apoyo logístico adecuado, dificultades financieras que impactan la alimentación y el sustento familiar, y la ausencia de apoyo continuo en los diferentes niveles de atención. Conclusión: Las barreras enfrentadas por las mujeres refuerzan la necesidad de estrategias que garanticen la integralidad del cuidado, como programas de navegación, la implementación de la línea de cuidado y una mejor coordinación asistencial. También se destaca la importancia de la educación en salud como herramienta crítica para empoderar a las mujeres en la búsqueda de sus derechos y cuidados integrales.
Palabras clave: Neoplasias de la Mama; Atención Integral de Salud; Mujeres; Atención a la Salud.
INTRODUÇÃO
O câncer de mama é uma das questões de saúde pública mais graves globalmente, destacando-se como a principal causa de morte por câncer entre mulheres no Brasil, exceto na Região Norte, onde ocupa o segundo lugar, atrás do câncer do colo do útero. Excluindo-se os tumores de pele não melanoma – tipo de câncer mais frequente no país –, para o triênio 2023-2025, estimam-se 73.610 novos casos anuais no Brasil, sendo 2.880 no Estado de Pernambuco. Em 2023, a doença resultou em 20.054 mortes no país, incluindo 865 no Estado de Pernambuco1,2.
É uma doença complexa em que o diagnóstico precoce desempenha um papel crucial no tratamento bem-sucedido, aumenta as taxas de sobrevivência e reduz os custos do tratamento no Sistema Único de Saúde (SUS). Contudo, uma vez diagnosticada, a mulher enfrenta uma série de desafios que vão além das complicações físicas, abrangendo também aspectos psicológicos e sociais. A mastectomia, procedimento comum no tratamento, pode gerar estigmas que afetam profundamente a identidade feminina e as relações sociais, intensificando sentimentos de vulnerabilidade3. Esse estigma pode criar barreiras emocionais, como vergonha e isolamento, dificultando a recuperação e adaptação à nova realidade. Além disso, mulheres em situação de vulnerabilidade socioeconômica tendem a enfrentar maiores obstáculos durante o tratamento do câncer, não apenas por limitações financeiras, mas também pela falta de acesso a informações sobre seus direitos, o que compromete o exercício pleno da cidadania e o acesso a cuidados adequados4.
Identificar as demandas individuais e considerar o contexto social de cada usuária tornam-se essenciais para o cuidado integral5. A atenção à saúde da mulher com câncer de mama deve incluir não apenas tratamentos médicos, mas também apoio psicológico, reabilitação e redes de suporte, como programas de navegação, que consistem em intervenções organizadas para guiar e apoiar usuários ao longo de sua jornada no sistema de saúde, essenciais para identificar barreiras no acesso ao cuidado, melhorar o acompanhamento e fortalecer a continuidade assistencial6,7.
A integralidade, princípio fundamental do SUS, propõe um cuidado que engloba a totalidade do indivíduo8. Orientada pelas necessidades de saúde das pessoas, a integralidade transcende as demandas biomédicas, incluindo o contexto de vida e as condições emocionais de cada indivíduo9. Esse princípio visa promover uma visão holística, com a expressão “olhar a pessoa”, considerando a vivência e a experiência dos indivíduos e envolvendo articulações intersetoriais para atender de forma abrangente às suas necessidades10,11. Deve-se buscar no SUS a consolidação de uma assistência humanizada e contextualizada, superando a visão reducionista da doença e fortalecendo o cuidado inclusivo e integral12.
O objetivo deste estudo é analisar a integralidade do cuidado à mulher com câncer de mama na Rede de Atenção à Saúde (RAS) do Estado de Pernambuco, com foco na dimensão do ser integral.
MÉTODO
Foi realizada uma pesquisa de abordagem qualitativa, baseando-se no princípio da integralidade e nas dimensões do ser integral9. O estudo ancorou-se no referencial teórico-metodológico da fenomenologia empírica13 a partir das percepções e vivências de usuárias com câncer de mama.
O local do estudo foi o Estado de Pernambuco, que possui dez serviços de referência oncológica que tratam o câncer de mama, distribuídos em suas quatro Macrorregiões de Saúde (Figura 1).

Figura 1. Macrorregiões de Saúde do Estado de Pernambuco e distribuição das Unacon e Cacon. Pernambuco, Brasil, 2023
Legendas: Unacon = Unidades de Alta Complexidade Oncológica; Cacon = Centros de Assistência de Alta Complexidade Oncológica.
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Macrorregião I - Metropolitana (Regiões de Saúde I, II, III e XII) - 4 Unacon e 1 Cacon, todos na Região I (Município Recife) |
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Macrorregião II - Agreste (Regiões de Saúde IV e V) - 3 Unacon, sendo 2 na IV Região (município Caruaru) e 1 na V Região (Município Garanhuns) |
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Macrorregião III - Sertão (Regiões de Saúde VI, X e XI) - 1 Unacon na região da VI Região (Município Arcoverde) |
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Macrorregião IV - Vale do São Francisco e Sertão do Araripe (Regiões de Saúde VII, VIII e IX) - 1 Unacon na VIII Região (Município Petrolina) |
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Municípios com os serviços de referência em Alta Complexidade Oncológica (Unacon/Cacon) |
A seleção das mulheres foi intencional, baseada em critérios que garantissem a representatividade das quatro Macrorregiões de Saúde do Estado de Pernambuco. Foram entrevistadas nove mulheres em tratamento de câncer de mama, sendo cinco na Unidade de Alta Complexidade Oncológica (Unacon) Hospital do Câncer de Pernambuco e quatro no Centro de Assistência de Alta Complexidade Oncológica (Cacon) Instituto de Medicina Professor Fernando Figueira (Quadro 1).
Quadro 1. Distribuição das usuárias por serviço, Macrorregião de Saúde e código de identificação. Pernambuco, Brasil, 2023
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Macrorregião de Saúde |
Unacon HCP |
Código texto |
Cacon IMIP |
Código texto |
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I |
2 usuárias |
U1-M1; U2- M1 |
1 usuária |
U3- M1 |
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II |
1 usuária |
U1-M2 |
1 usuária |
U2-M2 |
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III |
1 usuária |
U1-M3 |
1 usuária |
U2-M3 |
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IV |
1 usuária |
U1-M4 |
1 usuária |
U2-M4 |
Legendas: HCP = Hospital do Câncer de Pernambuco; IMIP = Instituto de Medicina Professor Fernando Figueira.
A escolha dessas unidades se deu pelo fato de atenderem usuárias com câncer de mama de todos os municípios do Estado, o que possibilitou uma visão abrangente da trajetória de cuidado até o tratamento oncológico. As nove mulheres entrevistadas encontravam-se em diferentes momentos do tratamento do câncer de mama, o que permitiu abarcar uma diversidade de experiências ao longo da trajetória assistencial. Três delas já haviam realizado quimioterapia, cirurgia e radioterapia, compareceram ao serviço para consultas multiprofissionais e retirada de medicação. Outras três haviam passado pela quimioterapia e pela cirurgia e estavam para iniciar a radioterapia. As três participantes restantes encontravam-se em tratamento com quimioterapia, com indicação cirúrgica prevista para após a conclusão dessa etapa. Entrevistas semiestruturadas foram realizadas com mulheres em tratamento em hospitais, em local reservado para gravação, usando o software gratuito Gravador (Apple Store) e transcritas no Cockatoo14, com correções para garantir a integridade do conteúdo. A consulta complementar aos prontuários foi realizada para aprofundar a compreensão da trajetória de cuidado das entrevistadas.
A análise dos depoimentos das mulheres seguiu a técnica de análise de conteúdo segundo Bardin15, articulada à abordagem da fenomenologia empírica conforme delineada por Giorgi13. Essa combinação metodológica permitiu captar, de forma sistemática e rigorosa, os sentidos atribuídos pelas usuárias às suas vivências ao longo da jornada de cuidados no tratamento do câncer de mama. Inicialmente, os depoimentos foram transcritos na íntegra e submetidos a uma leitura flutuante, buscando uma imersão no conteúdo e a identificação preliminar das unidades de significação. Em seguida, com base nos procedimentos da análise de conteúdo, foi realizada a codificação dos dados, considerando o contexto das falas, a repetição de temas e a carga afetiva dos relatos. Essa etapa permitiu a identificação de núcleos de sentido relevantes. Esses núcleos foram então agrupados em categorias analíticas, ancoradas nas dimensões da integralidade propostas no Caderno de Atenção Básica12, que orientou o eixo interpretativo do estudo: dimensão da percepção sobre saúde-doença, saberes e cultura; dimensão condições de trabalho e renda; e dimensão condições físicas e orgânicas.
O estudo foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa do Instituto de Pesquisas Aggeu Magalhães (CAAE: 67124722.2.0000.5190); do Hospital do Câncer de Pernambuco (CAAE: 67124722.2.3001.5205); e do Instituto de Medicina Professor Fernando Figueira (CAAE: 67124722.2.3002.5201), sob os números dos pareceres 6142468, 6219126 e 6298573, respectivamente, de acordo com a Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) n.º 466/1216.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Das nove participantes, três tinham menos de 50 anos e seis estavam entre 50 e 60 anos. Uma se identificou como preta, quatro como brancas e quatro como pardas. Utilizaram-se os termos conforme a autodeclaração, respeitando a forma como cada uma expressou sua identidade racial. Quatro eram solteiras e cinco casadas, oito mencionaram ter filhos. Quanto à escolaridade, três tinham ensino superior completo, três, ensino médio completo e três, ensino fundamental incompleto.
As usuárias que residem na Macrorregião I apresentaram uma média de deslocamento de 12 km, com tempo estimado de 47 minutos. As usuárias das Macrorregiões II, III e IV, que buscaram atendimento na Macrorregião I, enfrentaram trajetos muito mais longos, com médias de 173 km (~4 horas), 489,5 km (~9 horas) e 608,5 km (~10 horas), respectivamente.
Dimensão da percepção sobre saúde-doença, saberes e cultura
Compreender a percepção das mulheres sobre saúde-doença na neoplasia maligna de mama inclui abordar seu nível de escolaridade e conhecimento sobre o curso da doença, considerando intervenções nas fases de suscetibilidade (promoção à saúde), pré-clínica (rastreamento), clínica (tratamento) e de incapacidade residual (paliativo). Apesar das diferenças na escolaridade, a maioria não tinha acesso regular aos serviços de saúde para acompanhamentos preventivos, como demonstram as narrativas a seguir:
Faz um bom tempo que eu não ia para o médico. Muito tempo mesmo (U2-M1).
Nenhum, não ia, nem para postos, nem para nada. Médico nenhum, não procurava (U3- M1).
É papel da Atenção Primária à Saúde (APS)5 identificar e realizar visitas ativas às pessoas que não procuram regularmente o serviço, além de fortalecer a educação em saúde voltada à promoção e prevenção. Compreender os fatores que atrasam o diagnóstico do câncer de mama permite desenvolver intervenções eficazes. A informação adequada facilita decisões oportunas para buscar atendimento. Inicialmente, todas as participantes ignoraram os sintomas, atribuindo-os a estresse, sobrepeso ou problemas passageiros, como evidenciado pelos depoimentos.
Primeiro, eu percebi na axila, aí disse a meu esposo, e ele ‘não, acho que é porque tu tá acima do peso, deve ser por isso’. Quando foi um dia, percebi na mama. Aí ele disse ‘é bom tu ir no médico’. Eu disse ‘é, depois eu vou’. Eu acho que isso passou uns seis meses (U2-M2).
Deu uma íngua na axila e doendo. Trabalhava numa escola, fazendo merenda para 300-500 alunos, quando reclamava, a irmã que era enfermeira, dizia, ‘não, você pega o balde, aí fica com a dor’ [...] marcaram um ultrassom na mama, por minha conta [usuária custeou o exame], ela disse que tinha um nódulo muito grande (U2-M3).
Os depoimentos ressaltam a importância de as usuárias conhecerem os sinais e sintomas da doença e tomarem decisões oportunas na busca pelo serviço de saúde. Um estudo com mulheres com câncer de mama identificou a associação dos sintomas a outros problemas17. O desconhecimento pode atrasar a busca pelo diagnóstico, resultando em estádios avançados, maior custo e menor sobrevida5-13,15,17,18. A informação deve alcançar toda a população, pois familiares e amigos influenciam a decisão das mulheres19.
Além do conhecimento, fatores como responsabilidades familiares e condições de vida impactaram a busca por atendimento. Uma usuária adiou a procura por ser cuidadora do esposo acidentado.
Foi na época que meu marido teve acidente, quase morre. E então eu não podia tratar do caroço. Ou eu tratava do meu marido, ou tratava de mim. Aí, a gente começou, toda noite a gente media, eu e ele, na mão. Isso foi dentro de um ano. E eu sentindo, e nós só medindo o tamanho do caroço. [...] Aí, ficou incomodando. Aí, quando foi um dia, ele doeu bastante, aí eu fui ao médico lá, ele ficou me dando mofina de 4 em 4 horas. Quando ele me dava mofina, era como quem tirava a dor e jogava fora, mas com 4 horas eu ficava sem aguentar [...] eu tinha dois anos que estava com esse tumor (U1-M3).
Ao assumir o papel de cuidadora, a mulher negligenciou seu autocuidado em favor do esposo. Essa negligência reflete falhas estruturais, como a ausência de visitas regulares da APS, que poderiam ter identificado precocemente seu problema. A lacuna na busca ativa e no cuidado contínuo evidencia uma responsabilidade compartilhada entre a APS e a dinâmica de gênero. A divisão tradicional de papéis, que impõe às mulheres a responsabilidade pelo cuidado, se sobrepõe, muitas vezes, às suas necessidades pessoais, especialmente quando há dificuldades econômicas e falta de suporte adequado20, levando-as a priorizar os outros. Isso reforça a necessidade de discutir o impacto das normas de gênero na saúde e de uma APS mais ativa para reduzir a sobrecarga individual no controle do câncer de mama.
Todas as usuárias destacaram a necessidade de ampliar o acesso à informação, especialmente para as menos escolarizadas, como sintetiza o depoimento da U2-M4:
As pessoas que não têm conhecimento, que não têm informação, deixam de se cuidar. Então, assim, todo dia a dia, toda hora é hora de se cuidar, de se proteger e prevenir. E tem assim, ah, você teve câncer porque você quis, porque você não se cuidou. Não. Mas se você tiver uma prevenção, se você tiver um acompanhamento, informações mais claras, mais simples, para o nível das pessoas que realmente precisam dele, do tratamento, do atendimento, porque comigo foi fácil, porque eu tenho a informação, o conhecimento, e depois eu sei onde buscar, onde pesquisar, o que precisa para amenizar o tratamento, tudo. Mas tem muitas pessoas, a maioria não tem esse entendimento. Aí elas morrem mais na mente. Porque a mente não ajuda a você fazer o tratamento. Porque diz câncer, câncer é fatal, câncer mata. Mas às vezes não é o câncer que mata, é a desinformação.
O relato destaca a importância de disseminar informações sobre doenças em linguagem acessível. Estados e municípios devem desenvolver planos locais de educação em saúde para aprimorar a promoção, prevenção e tratamento do câncer de mama. Espaços educativos alinhados à Política Nacional de Educação Popular em Saúde são estratégias eficazes21.
As participantes avaliaram positivamente o Outubro Rosa, mas ressaltaram a necessidade de esclarecer o significado das cores alusivas e de promover a conscientização ao longo do ano, não apenas em outubro.
Creio que mais informações, nas unidades básicas, voltadas para a mulher. As doenças não têm meses de cores, as doenças não têm meses, elas têm pessoas, têm seres humanos. As pessoas divulgam: vai fazer a mamografia “outubro rosa”. Elas vão naquele mês e, se passarem, não vão mais porque acham que não têm (U2-M4).
O depoimento destaca a necessidade de campanhas de conscientização objetivas e contínuas, evitando que a população associe o mês alusivo como único momento para exames preventivos. A campanha deve considerar disparidades geográficas para alcançar populações historicamente afetadas pela falta de acesso à saúde, pois desigualdades podem intensificar a carga emocional em grupos vulneráveis20. Programas de navegação podem aumentar a eficácia do cuidado, especialmente entre os mais vulneráveis6,7.
Todas as usuárias relataram ter recebido orientações adequadas sobre a doença e o tratamento.
A orientação vem completa [...] tanto a mastologista como o oncologista falaram que teria que começar logo com a quimio para ver se o tumor, como ele ia reagir, regredir [...] já foi dito que seria um tratamento demorado. Eu teria que fazer a mastectomia, perder uma mama, faria também o esvaziamento da axila, posterior fazer radioterapia. Foi tudo muito explicado, então eu entrei sabendo o que eu iria fazer (U1-M1).
A comunicação assertiva é essencial no tratamento do câncer de mama, garantindo orientações claras sobre condutas e duração. As mulheres buscam informações sobre prognóstico, impactos na rotina e retomada da vida cotidiana22,23. Com o avanço do tratamento, novas dúvidas surgem, exigindo materiais educativos adaptados e espaços para esclarecimento24. Programas de navegação em rede fortalecem o cuidado contínuo e a comunicação entre usuárias e serviços de saúde, identificando necessidades individuais6,7. A capacitação dos profissionais para comunicação eficaz, compreensão da doença e conhecimento da RAS fortalece a confiança e promove um cuidado empático, centrado na pessoa24.
Além de conhecer a doença, as usuárias destacaram a importância de compreender seus direitos como pessoas com câncer, presente no relato de uma usuária da Macrorregião 3.
A médica disse que quem tinha câncer podia trabalhar, mas eu disse ‘e sem enxergar direito, como é que eu trabalho?’ Eu estou sem a visão [...] A gente não consegue o benefício, corta, aí quem não tem conhecimento de procurar um advogado, não tem (U2-M3).
A abordagem integral é um direito da usuária, mas a fragmentação do cuidado entre os níveis assistenciais tem comprometido sua efetividade. A APS, principal coordenadora do cuidado, deve garantir acompanhamento contínuo, independentemente do ponto da RAS, considerando as características individuais durante o tratamento24.
A falta de conhecimento sobre os direitos, somada à fragmentação entre os níveis assistenciais, pode impactar negativamente a vida da mulher, como relata uma usuária da Macrorregião 2:
No início, eu vinha de lotação. Foram muitos gastos que eu tive, vinha pagando 90,00 por pessoa. E meu esposo sempre me acompanhando. Aí, quer dizer, 180,00 para vir e 180,00 para voltar. Eu fiquei nisso de outubro até maio. Aí, depois, eu descobri o TFD (U2-M2).
O depoimento evidencia a descontinuidade do cuidado pela APS e a ausência de programas de navegação, essenciais para identificar barreiras como acesso limitado, desconhecimento de direitos e dificuldades financeiras. Esses programas podem impactar positivamente a vida das mulheres, garantindo-lhes suporte adequado e respeito às suas singularidades6-7. A limitação no acesso a serviços e informações jurídicas é um entrave significativo, pois muitas desconhecem seus direitos médicos e legais4. Nessa perspectiva, a assistência social durante o tratamento desempenha um papel fundamental na orientação e no apoio às mulheres no enfrentamento do câncer23-25.
A dimensão da percepção sobre saúde-doença, saberes e cultura entre mulheres entrevistadas indicou que o nível de escolaridade das mulheres não teve influência sobre o autocuidado, a prevenção e a busca imediata por serviços ao notarem sintomas, destacando a necessidade de revisar as abordagens de educação em saúde em todos os níveis de atenção. O fortalecimento da educação em saúde pode ser alcançado por meio da Educação Popular em Saúde nos diversos níveis de atenção à saúde, e de seus processos práticos (ação-reflexão-ação), pois a mudança de práticas vai além da simples transmissão de informações, envolvendo a reflexão sobre autonomia e o empoderamento do indivíduo como parte essencial do cuidado integral à saúde.
Dimensão condições de trabalho e renda
As condições de trabalho e renda influenciam o cuidado integral, afetando o acesso aos serviços de saúde e a adesão ao tratamento. Entre as nove usuárias, duas servidoras públicas obtiveram licença por câncer de mama; duas autônomas acessaram o auxílio-doença do Instituto Nacional do Seguro Social; uma recebeu benefício da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS); outra, vinculada a um sindicato rural, recebe metade de um salário, sujeito a reavaliações; duas ficaram sem renda e sem benefícios; e uma manteve suas atividades profissionais durante o tratamento.
Minha condição é péssima. Não consegui nada de minha doença. Estou tentando o auxílio-doença. As condições financeiras são muito ruins (U1-M3).
Falei com o pessoal da associação dos agricultores familiares [...] conseguiu marcar uma perícia em Petrolina. Fui à noite e passei a noite na rodoviária, no outro dia, bem cedo, eu fui para o INSS [...] ela me perguntou se eu tinha um atestado, e mostrei todos os meus papéis [...] ela falou assim, ‘a senhora já recebeu?’ [...] recebi a metade de um salário [...] ‘só isso?’, eu disse: só. ‘Mas ele [médico] já sabia que a senhora estava com câncer?’ Já. Aí, ela olhou tudo direitinho e disse que para eu receber até março. O auxílio não é definitivo, ele é temporário (U1-M4).
Eu preferi ficar trabalhando, porque, para o psicológico, não ficar em casa [...] eu fazia quimio na quinta-feira, na sexta-feira eles me liberaram (U3- M1).
As dificuldades financeiras enfrentadas por mulheres com câncer de mama durante o tratamento impactam profundamente sua qualidade de vida, especialmente entre autônomas, que relatam maiores desafios do que as empregadas25.
Algumas usuárias tentaram acessar o benefício da LOAS, porém apenas uma obteve sucesso após acionar a justiça para assegurar o direito.
Até hoje eu não consegui a minha aposentadoria pelo LOAS. Eu não consigo comprovar a minha miserabilidade, por eu não ter verba, eu não ter como comprovar. Moro de favor (U1-M1).
Só o auxílio-doença, que se transformou em aposentadoria, coloquei na justiça, porque eles cortaram na pandemia, quando mais a gente precisava. Passei um ano e três meses sem receber. Aí, durante esse tempo, a família ajudava. Botamos na justiça e foi negado, depois entrou novamente como se fosse a LOAS, que é uma coisa que anda mais rápido.
Demorou, aí negaram, ele botou novamente, aí, agora, ele se transformou numa aposentadoria (U2-M3).
A LOAS é uma lei federal que garante um salário-mínimo mensal a idosos sem renda (a partir de 65 anos) e a pessoas com deficiência incapacitadas para o trabalho, com reavaliação bienal e laudo médico do INSS26. Os depoimentos destacam a necessidade de integrar a assistência social da Unacon/Cacon às secretarias municipais de saúde para fortalecer o cuidado às pessoas com câncer. A análise individualizada é essencial para reduzir desigualdades, iniquidades e mitigar impactos da doença. O apoio social melhora a qualidade de vida durante o tratamento, prevenindo ansiedade e incerteza27,28.
Uma das usuárias que não conseguiu o auxílio-doença relatou sequelas em razão do tratamento, e tem dificuldades para retornar ao mercado de trabalho:
Eu não consegui voltar para o mercado de trabalho. Por conta da minha deficiência com o braço, perdi o movimento da mão, não consigo mais auxiliar [...] a gente tem muita orientação do hospital, volte a estudar, se conseguir, volte para o mercado de trabalho. Mas o mercado de trabalho não tem esse olhar, não é o hospital (U1-M1).
Mulheres que não retomaram ao trabalho após o câncer de mama apresentam maior queda na qualidade de vida em comparação às que permaneceram empregadas29. O retorno ao mercado exige apoio integrado de hospitais, empregadores, sociedade civil, políticas públicas e família, com ações de reabilitação, inclusão e autonomia profissional para prevenir incapacidade prolongada e atender às necessidades individuais30.
A falta de suporte financeiro adequado impacta o acesso e a adesão ao tratamento. Seis mulheres provedoras relataram preocupações com a escassez de recursos, como mencionado pela usuária U2-M3: “O pouco que eu ganho ainda faço a feira [...], são cinco pessoas em casa”.
Essas circunstâncias mostram que a falta de suporte financeiro adequado cria barreiras para que essas mulheres recebam um cuidado integral que respeite suas necessidades biopsicossociais e suas condições de vida30.
Embora o Tratamento Fora do Domicílio (TFD) esteja garantido para usuárias das Macrorregiões II, III e IV, todas enfrentaram custos extras. Quatro relataram que o transporte municipal cobre apenas até a casa de apoio, sendo o deslocamento interno na capital por conta própria, o que gera dificuldades financeiras.
Ele deixa na casa de apoio. E a gente vem com o da gente mesmo [...] gasta da casa de apoio para cá (U1-M4).
Essa vinda, eles dão à gente o carro da prefeitura. Para deixar, ele deixa, mas para pegar no hospital, não. Para voltar, todo mundo se reúne na casa de apoio. Como hoje, por exemplo, eu só tenho 30,00 para voltar. Eu pago 20,00 de Uber daqui para a casa de apoio, então só tenho 10,00 para chegar em casa. Era para ter carro do hospital para levar para casa de apoio, não era para o paciente gastar. Porque muita gente não tem. A gente deixa de comer no caminho para pagar o carro para ir para casa de apoio (U1-M3).
O TFD deve ser acionado quando não há alternativas de tratamento no município ou Macrorregião de origem31. A inexistência de diretrizes claras para o acesso e a organização do TFD entre os municípios contribui para aprofundar as desigualdades no cuidado em saúde, afetando principalmente pacientes em situação de maior vulnerabilidade social. A precariedade ou ausência de transporte público adequado compromete a adesão ao tratamento oncológico, especialmente entre as usuárias do SUS que não dispõem de recursos próprios para arcar com deslocamentos frequentes. Além disso, a deficiência nas estratégias de monitoramento e na avaliação dos serviços de oncologia e dos fluxos de acesso resulta em deslocamentos desgastantes e, muitas vezes, desnecessários32. Para mitigar esses impactos, é fundamental que secretarias de saúde acompanhem o perfil dos usuários e otimizem os fluxos assistenciais31.
Compreender a dimensão das condições de trabalho e renda é fundamental para garantir que mulheres com câncer de mama não enfrentem barreiras adicionais impostas pela fragmentação e desorganização da RAS. Embora as diretrizes orientem que o tratamento ocorra preferencialmente na Macrorregião de origem, muitas mulheres optam espontaneamente por centros de referência como o Hospital do Câncer de Pernambuco e o Instituto de Medicina Professor Fernando Figueira, que concentram quimioterapia, cirurgia, radioterapia e equipe multiprofissional. Essa escolha expressa a busca por um cuidado integral e resolutivo, e evidencia fragilidades nas Unacon das Macrorregiões II, III e IV. Reforça-se, assim, a urgência de fortalecer a capacidade assistencial descentralizada, sem comprometer a continuidade e a integralidade do cuidado oncológico.
Dimensão condições física e orgânica
Receber o diagnóstico de câncer de mama é uma experiência difícil, gerando reações variadas, como medo, raiva e ansiedade.
Quando eu descobri, fiquei desesperada, sem chão, apavorada. Quando se recebe uma notícia dessa, se tivesse um buraco no chão, entrava. [...] se você não for muito forte, se arrebenta (U1-M2).
O preparo dos profissionais e o suporte psicológico são essenciais, pois as consequências do diagnóstico podem ser devastadoras28-33. O estadiamento da doença influencia a conduta terapêutica; cinco usuárias foram diagnosticadas em estádio avançado, incluindo duas com metástase.
Já tinha atingido os ossos, não estava só na mama, eu já puxava a perna direita [...] foi preciso retirar toda a mama e fazer o esvaziamento axilar (U2-M1).
Ela dizia que estava no fígado, que eu tinha metástase (U1-M3).
Os relatos reforçam a importância do diagnóstico precoce, essencial para a sobrevida1,2,5,6. A maioria das mulheres destacou problemas psicológicos, sendo a ansiedade a mais citada.
Além da doença, o medo, angústia, ansiedade, tudo o que não presta (U1-M2).
Tem hora que bate uma depressão, eu fico com muita ansiedade, eu aumentei 9 kg. (U1-M4).
Inclusive, eu fiquei tão nervosa, que quando eu fui para o psicólogo, quase que eu não deixava ele falar (U1-M2).
O suporte psicológico contínuo é fundamental, pois o medo da morte e as incertezas geram grande angústia28-34. Apenas uma usuária não teve acesso ao serviço, enquanto as demais tiveram pelo menos uma consulta, mas metade não deu continuidade. A continuidade do suporte psicológico em todas as fases do tratamento é vital para o cuidado integral, prevenindo a falta de atendimento, como no caso da usuária que ficou sem consulta psicológica. As implicações psicológicas devem ser abordadas em todas as etapas do cuidado35. E embora o medo da morte preocupe as usuárias, a determinação de superar a doença e o apoio familiar as motiva a prosseguir com o tratamento.
Eu não quero desistir, vou vencer! [...] não quero me entregar [...] tenho muito medo de morrer, deixar minha família [...] tenho uma filha especial, quem vai tomar de conta da minha filha? Meu marido acidentado é doente... [...] (U1-M3).
Esse depoimento destaca a importância da abordagem multiprofissional, pois o medo da morte e a preocupação com a família intensificam o sofrimento36. Por outro lado, uma usuária relatou que o câncer ressignificou sua vida, proporcionando-lhe mais autonomia:
Nenhum medo. A gente tem a vida antes do câncer e depois do câncer. [...] ver a vida com outros olhos [...] eu não tenho medo porque minha vida é hoje. Você só parte, se tiver de partir (U2-M4).
Essa fala reforça as estratégias de resiliência e crescimento pessoal observadas em mulheres que enfrentaram a doença37.
No que diz respeito às mudanças físicas em razão do tratamento oncológico, algumas mulheres relataram os desafios com a perda dos cabelos e da mama:
Foram tantos desafios. Meu cabelo começou a cair. Durante o período que eu fiquei sem cabelo, não conseguia me olhar no espelho. Estou conseguindo agora, um pouco, mas não consigo olhar onde ficava minha mama. Não consegui ainda, nem toco e nem olho (U2-M2).
Eu tenho uma amiga que tirou os dois seios. E ela já fez cinco vezes. E o corpo dela rejeita. Eu não quero mais ser cortada, não quero mais ser furada, eu não quero mais isso. Pode ser que mais tarde eu mude de ideia, mas até então, eu não quero (U2-M2).
Compreender a percepção da mulher com câncer de mama sobre sua imagem corporal e os impactos na qualidade de vida pode orientar profissionais de saúde nas intervenções, minimizando efeitos negativos, pois fatores psicossociais e socioculturais influenciam a imagem corporal38. O medo de rejeitar a prótese levou a mulher a não aceitar a reconstrução mamária. É importante enfatizar que a reconstrução é um direito da mulher39 e a decisão deve considerar as orientações da equipe multiprofissional sobre riscos e benefícios, respeitando o desejo e a condição clínica de cada mulher. O temor de perder a mama novamente pode desestimular a cirurgia reconstrutora, pois algumas mulheres acreditam que, por questões estéticas, não devem correr riscos de complicações35.
Observou-se que o contexto social tem impactado na condição orgânica das usuárias das Macrorregiões II, III e IV. Duas mulheres destacaram que as longas distâncias geram custos adicionais que comprometem suas necessidades básicas, como a garantia de alimentação durante as idas à Macrorregião I para tratamento.
[...] fica passando fome [...] porque não tem dinheiro de se alimentar [...] se você não se alimenta direito, então, como é que vai ter uma reação boa no seu corpo? (U1-M2).
Eu sou diabética, eu passo muito tempo sem comer. Sem comer eu até passo, mas sem água, não, porque eu sinto muita sede. Uma aguinha daquela é 3,00. Fico muito tempo sem comer, passo mal, [...] eu já viajei muito com fome (U1-M3).
É fundamental que Estados, municípios e serviços de oncologia implementem protocolos de acesso que orientem os profissionais no encaminhamento adequado das usuárias, considerando o desenho da rede e os serviços mais próximos de sua residência. Além disso, é necessário reavaliar as estratégias de uso do TFD, levando em conta os custos com viagem, alimentação e pernoite, para garantir suporte financeiro e físico adequado durante o tratamento.
Outras dificuldades com longas viagens foram mencionadas pelas usuárias das Macrorregiões II, III e IV.
A gente sai 21:00 da noite e chega aqui 5:00 da manhã. É muito cansativo (U1-M3).
Eu saio 5:00 da tarde, chega aqui 4:00 da manhã [...]. Tem que voltar no mesmo dia (U1-M4). São 10 horas de viagem, 10 horas e meia (U2-M3).
Barreiras logísticas no acesso ao tratamento podem comprometer o bem-estar e a continuidade do cuidado oncológico. Os deslocamentos extensos para a capital, onde realizam seus tratamentos, impactam diretamente as condições físicas e orgânicas dessas mulheres, exigindo delas um esforço significativo em contextos de vulnerabilidade física decorrentes do próprio tratamento oncológico. Além do cansaço extremo, essas viagens frequentemente envolvem longos períodos sem repouso adequado, necessidade de paradas para alimentação, o que nem sempre é possível, dado que muitas usuárias informaram não ter condições financeiras para se alimentar adequadamente durante o trajeto.
O tratamento fora da Macrorregião impõe desafios biológicos, psicológicos e financeiros para mulheres com câncer de mama. Em países como Estados Unidos e Japão, 90% dos pacientes oncológicos residem a menos de uma hora dos serviços de tratamento40,41. Apesar das longas distâncias e custos adicionais para ir à Macrorregião I, as usuárias destacam percepções positivas sobre o atendimento na Unacon Hospital do Câncer de Pernambuco e no Cacon Instituto de Medicina Professor Fernando Figueira, reconhecidas pela oferta de tratamento oncológico integral42, com o acesso a uma equipe multiprofissional completa, essencial no enfrentamento da doença.
[...] é importante frisar que nós temos um acompanhamento maravilhoso, tudo o que a gente precisa tem aqui [...] sem esse grupo aí é complicado. Nós temos direito à odontologia, psicologia, nutrição, serviço social que nos acolhe. [...] Tenho amigas fazendo esse tratamento em outros hospitais e elas não têm o que tenho aqui (U1-M1).
A ausência de regulação no acesso ao tratamento oncológico, associada à lógica da demanda espontânea, leva muitas mulheres a buscarem, por iniciativa própria ou mesmo por encaminhamentos realizados por profissionais de saúde sem seguir um fluxo regulatório formalizado, centros de referência que concentrem todas as etapas terapêuticas em um único local. Esse movimento reflete a desarticulação da rede e a inexistência de uma linha de cuidado estruturada, ao mesmo tempo em que impõe desafios relevantes aos serviços oncológicos, especialmente às Unacon situadas nas Macrorregiões II, III e IV. Essas unidades apresentam limitações na oferta de cuidado integral e no acesso a equipes multiprofissionais, favorecendo a concentração da demanda na Macrorregião I. Tal cenário evidencia a necessidade de fortalecimento da capacidade resolutiva dos serviços descentralizados, assim como do papel estratégico da APS na coordenação do cuidado e na ordenação dos fluxos assistenciais42.
A dimensão das condições físicas e orgânicas no tratamento do câncer de mama é importante para avaliar a qualidade de vida das pacientes durante as diversas fases do tratamento. As condições das Macrorregiões de Saúde e as pactuações entre municípios requerem um diagnóstico situacional e uma avaliação dos serviços de atendimento oncológico disponíveis. É essencial criar fluxos assistenciais que considerem as desigualdades territoriais, a capacidade instalada das Macrorregiões e a coordenação entre diferentes Regiões, visando garantir um cuidado integral e equitativo.
CONCLUSÃO
A integralidade do cuidado vai além do setor saúde, exigindo que os profissionais ampliem sua visão sobre as demandas das usuárias, humanizando a prática para além da doença. A estrutura atual da rede de atenção e do planejamento oncológico impõe barreiras adicionais às mulheres com câncer de mama, como a ausência de fluxos assistenciais adequados, resultando em iniquidades de acesso e dificuldades na identificação das múltiplas necessidades das mulheres.
Apesar da existência de serviços de oncologia em cada Macrorregião, o TFD acaba sendo mais utilizado do que o necessário em razão da falta de estruturação da RAS. Essa estratégia precisa ser reavaliada, levando em conta que as mulheres enfrentam desafios que vão além das distâncias geográficas, afetando até mesmo necessidades básicas, como o direito a uma alimentação digna.
A integralidade deve considerar as necessidades específicas e a equidade de acesso para as usuárias, especialmente para casos de alta suspeição e metastáticos, que exigem uma linha de cuidado diferenciada e estratégias rápidas para evitar atrasos nos exames, uma vez que o câncer é sensível ao tempo. As estratégias de enfrentamento ao câncer devem incluir processos educativos e comunicativos fundamentados na educação popular em saúde.
É fundamental que o enfrentamento ao câncer receba prioridade na agenda pública, com vontade política para garantir o cuidado adequado na rede de atenção ao câncer e a prioridade que as pessoas afetadas merecem. Para promover a integralidade, é essencial garantir acompanhamento contínuo durante o tratamento. Os resultados indicam a necessidade urgente de programas de navegação em rede para superar barreiras clínicas e socioeconômicas, atendendo às singularidades das mulheres. Recomenda-se a criação de equipes de navegação que atuem fora do ambiente hospitalar, com definição de funções claras e capacitação contínua.
Este estudo, entretanto, apresenta limitações. Ao focar prioritariamente em três dimensões da integralidade, outras dimensões igualmente relevantes, como o suporte psicológico, familiar, espiritual, além dos aspectos relacionados ao retorno ao trabalho e à reinserção social, não foram exploradas. Também não foram contempladas de forma sistemática as perspectivas intersetoriais que envolvem políticas de assistência social, trabalho, transporte e alimentação. O aprofundamento dessas dimensões é essencial para uma compreensão mais ampla da integralidade e poderá ser objeto de futuras investigações.
Os resultados possuem relevância social e científica, podendo contribuir para o planejamento da Rede de Prevenção e Controle do Câncer. As melhorias necessárias podem beneficiar não apenas o tratamento oncológico, mas também outras condições, ao organizar a rede de cuidados considerando as necessidades biopsicossociais e a complexidade do cuidado, que deve transcender a doença.
CONTRIBUIÇÕES
Todos os autores contribuíram substancialmente na concepção e no planejamento do estudo; na obtenção, análise e interpretação dos dados; na redação e revisão crítica; e aprovaram a versão final a ser publicada.
DECLARAÇÃO DE CONFLITOS DE INTERESSE
Nada a declarar.
DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS
A disponibilização dos dados pode ser solicitada ao autor correspondente, com apresentação de justificativa razoável, dadas as restrições éticas e de privacidade.
FONTES DE FINANCIAMENTO
Não há.
REFERÊNCIAS
16. Conselho Nacional de Saúde (BR). Resolução n° 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos [Internet]. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2013 jun 13 [acesso 2025 fev 10]; Seção 1:59. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html
36. Hewitt M, Herdman R, Holland J, editores. Meeting psychosocial needs of women with breast cancer. Washington, DC: National Academies Press; 2004.
Recebido em 19/3/2025
Aprovado em 30/4/2025
Editor-associado: Mario Jorge Sobreira da Silva. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-0477-8595
Editora-científica: Anke Bergmann. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1972-8777
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