ARTIGO DE OPINIÃO

 

História do Programa INCA Livre do Cigarro e seus Desdobramentos no Programa Nacional de Controle do Tabagismo: Avanços e Desafios da Abordagem Assistencial

History of the 'INCA Smoke-Free Program' and its Developments within the National Tobacco Control Program: Advances and Challenges of the Care Approach

Historia del 'Programa INCA Libre del Cigarrillo' y sus Desarrollos en el Programa Nacional de Control del Tabaquismo: Avances y Desafíos del Enfoque Asistencial

 

 

https://doi.org/10.32635/2176-9745.RBC.2025v71n3.5236

 

Luciana da Silva Alcantara1; Gustavo Wagner Mello Ferreira Caboclo2; Vera Lúcia Gomes Borges3; Isabel Dolores Cid Taboada Almeida4

 

1-4Instituto Nacional de Câncer (INCA). Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mails: lalcantara@inca.gov.br; gustavo.caboclo@inca.gov.br; vborges@inca.gov.br; ialmeida@inca.gov.br. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0001-8957-4104; Orcid iD: https://orcid.org/0009-0000-6661-4142; Orcid iD: https://orcid.org/0000-0003-4822-4110; Orcid iD: http://orcid.org/0009-0007-4754-6894

 

Endereço para correspondência: Luciana da Silva Alcantara. Alameda São Boaventura, 894, Apartamento 402 – Fonseca. Niterói (RJ), Brasil. CEP 24120-192. E-mails: lalcantara@inca.gov.br

 

 

INTRODUÇÃO

"Não se esqueça de me dar palitos e um cigarro pra espantar mosquitos1."

 

Assim cantou Noel Rosa em sua famosa composição em parceria com Vadico, Conversa de Botequim1, na qual o freguês faz várias solicitações ao garçom em um ambiente de fascínio boêmio, associado à liberdade. O ano era 1935 e, passados quase 100 anos da criação dessa icônica letra, pode-se afirmar que o consumo de cigarro pode até ter perdido o glamour de outrora, mas continua sendo uma das principais causas evitáveis de câncer no Brasil e no mundo, sendo responsável por aproximadamente 22% das mortes globais por essa doença, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS)2.

 

No Brasil, estima-se que aproximadamente 12% de todas as fatalidades registradas no território nacional estejam vinculadas ao uso do tabaco, resultando em um custo total que gira em torno de 153 bilhões de reais. Esse valor abrange não apenas despesas com assistência médica, mas também perdas de produtividade e cuidados associados ao tabagismo. Desse total, os diversos tipos de câncer relacionados ao consumo de tabaco contabilizam cerca de 10 bilhões de reais3. Tal situação se manifesta em um país que, ao longo dos anos, se consolidou como o maior exportador de folhas de fumo do mundo, ao mesmo tempo em que se estabelece como uma referência internacional no enfrentamento do tabaco, um paradoxo que evidencia a importância de políticas públicas efetivas e de uma assistência abrangente para os fumantes4.

 

DESENVOLVIMENTO

A história do tratamento da dependência da nicotina no INCA

Os primeiros esforços para controlar o tabagismo dentro do Instituto Nacional de Câncer (INCA), segundo Portes4, remontam a 1997, com a criação do Programa INCA Livre do Cigarro (PIL), estabelecido pela Portaria MS n.º 30, de 18 de fevereiro de 1997. Essa normativa determinou que o uso de produtos do tabaco que geram fumaça na instituição fosse limitado a áreas especificamente designadas para tal – os fumódromos – e instituiu uma comissão responsável pela supervisão do programa. Esse projeto inovador tinha um duplo propósito: facilitar a criação de ambientes isentos da fumaça do tabaco nas dependências do Instituto e oferecer suporte para o tratamento da dependência de nicotina, reconhecendo que o tabagismo transcende um mero hábito, configurando-se como uma condição de dependência4.

 

Em sua fase inicial, o PIL focou no tratamento dos funcionários do INCA que apresentavam dependência da nicotina, sendo notável que cerca de 70% da equipe que desejava cessar o uso do tabaco apresentava um alto ou muito alto grau de dependência. Essa realidade explicava a persistência no uso, mesmo entre profissionais de saúde cientes dos danos causados pelo tabaco e das repercussões em suas atividades profissionais. O programa foi crucial para estabelecer ambientes hospitalares livres de fumo, servindo como modelo para a implementação de políticas semelhantes em outras instituições de saúde da época5.

 

A partir de 1999, as atividades do programa, que inicialmente ocorriam em local distante do Hospital do Câncer I (HCI), foram transferidas para dentro da unidade hospitalar, facilitando o acesso. Assim, o Centro de Estudos para Tratamento da Dependência da Nicotina foi inaugurado no ano 2000, desde então com o tratamento voltado aos funcionários do Instituto e seus familiares, seguido do desenvolvimento de importante ensaio clínico, com pacientes provenientes da população6.

 

Em 2001, uma pesquisa realizada em colaboração com o Serviço Social do HCI identificou que os pacientes também buscavam apoio para superar a dependência de nicotina, levando à inauguração, em setembro de 2002, de uma sala especialmente dedicada ao tratamento de fumantes5.

 

O sucesso do programa, demonstrado por uma taxa de 67,4% de abstinência após seis meses, motivou sua ampliação para incluir também os familiares dos pacientes. Entre 1º de janeiro de 2000 e 3 de março de 2011, 1.391 pessoas foram atendidas, sendo 903 diagnosticadas com câncer5. O conhecimento acumulado foi compilado em importantes publicações científicas, consolidando a experiência do INCA no tratamento da dependência da nicotina. Nesse processo evolutivo, o Centro de Estudos para Tratamento da Dependência da Nicotina do INCA continua atuando de maneira efetiva no contexto da assistência, alinhado às diretrizes nacionais de tratamento da dependência de nicotina.

 

Do modelo interno à implementação de um programa nacional

A abordagem adotada pelo Centro de Estudos fundamenta-se no modelo implementado pelo INCA/Ministério da Saúde para o Programa Nacional de Controle do Tabagismo (PNCT), oficializado por meio da Portaria GM/MS nº 502, de 1º de junho de 20237, que estabelece compromissos nos três níveis da federação para a abordagem do programa no Sistema Único de Saúde (SUS).

 

Nesse contexto, o modelo de tratamento desenvolvido e testado no INCA recebeu adaptações específicas para atender a um público em tratamento oncológico com elevado grau de dependência, resultando em modificações protocolares significativas: incremento do número de sessões semanais; atendimentos individuais personalizados; ênfase nos benefícios de cessar o uso do tabaco, mesmo diante da manifestação da doença associada ao seu consumo; busca ativa apoiada por dados gerenciais do Instituto; inclusão dos familiares no processo; colaboração intersetorial para o encaminhamento de pacientes; suporte medicamentoso para a maioria dos atendidos e a integração com o tratamento das condições subjacentes.

 

Esse trabalho desenvolvido internamente no INCA tem sido fundamental para o aprimoramento constante do Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Tratamento do Tabagismo (PCDT)8. Essas diretrizes preconizam uma abordagem integrada que combina aconselhamento comportamental e farmacoterapia, aplicada tanto em consultas individuais quanto em grupos. A avaliação clínica inicial criteriosa determina a necessidade de medicação, como adesivos e goma de mascar de nicotina, além da bupropiona, disponibilizada gratuitamente pelo SUS. O atendimento também inclui suporte psicológico e interdisciplinar, essenciais para minimizar os impactos físicos e emocionais da cessação.

 

Além disso, é importante destacar que um elemento fundamental do tratamento no INCA é o grupo de manutenção, destinado a pacientes que conseguiram interromper o uso do tabaco. Esse grupo auxilia na identificação dos fatores que fomentam o consumo e na formulação de estratégias para lidar com a abstinência. Nesse contexto, o grupo de manutenção, atualmente conduzido por uma psicóloga, se configura como uma abordagem terapêutica crucial no processo de tratamento e acompanhamento dos integrantes, visando prevenir recaídas, fortalecer a motivação para a abstinência e oferecer suporte emocional contínuo.

 

É relevante mencionar, ainda, que o grupo também funciona como um ambiente seguro para a troca de experiências entre os participantes, representando uma oportunidade valiosa para cultivar um sentimento de pertencimento e solidariedade, o que se revela essencial para a continuidade do processo de cessação do tabagismo. Ademais, são abordados temas relacionados ao enfrentamento do câncer, manejo de sintomas físicos e emocionais e formação estratégias para lidar com o estresse, refletindo a compreensão de que o abandono do tabagismo é um percurso dinâmico e não linear, que requer acompanhamento, especialmente para pacientes oncológicos, cuja vulnerabilidade é ampliada pelas exigências do tratamento e pelo impacto emocional da doença.

 

Da experiência local à capacitação nacional

A experiência acumulada no tratamento da dependência da nicotina no INCA fundamenta um dos pilares mais importantes das iniciativas do Instituto: a capacitação de profissionais de saúde em todo o território nacional. Essa atividade tem ampliado significativamente o alcance do PNCT, possibilitando que o modelo bem-sucedido implementado no Instituto seja replicado e adaptado às diversas realidades do país.

 

Entre os anos de 2020 e 2021, os cursos de formação profissional on-line foram implementados, substituindo os presenciais em razão da pandemia da covid-19. Essa iniciativa resultou na capacitação de 22.431 profissionais de saúde, abrangendo as Regiões Centro-Oeste, Nordeste, Norte, Sudeste e Sul, durante o período de 2020 a 20249. O impacto dessas iniciativas se reflete no crescimento do número de fumantes que recebem tratamento pelo SUS, atualmente estimado em mais de 200 mil indivíduos a cada ano9.

 

Nesse sentido, o trabalho desenvolvido internamente no Instituto, com o tratamento oferecido a pacientes oncológicos, funcionários e seus familiares, serve como um laboratório para o aprimoramento contínuo das metodologias aplicadas em escala nacional. As adaptações, desafios e soluções encontradas no dia a dia do atendimento no INCA são sistematizadas e incorporadas às capacitações, enriquecendo o programa nacional e fortalecendo seu impacto nas diferentes Regiões do país.

 

CONCLUSÃO

O INCA, com seu histórico de liderança e inovação, permanece sendo um pilar essencial na trajetória do controle do tabagismo no Brasil, atuando como articulador do PNCT e engajando estados, municípios e organizações não governamentais. A experiência bem-sucedida do tratamento da dependência da nicotina no Instituto, iniciada com o PIL, evoluiu para um modelo abrangente que hoje beneficia fumantes em todo o território nacional por meio do SUS.

 

A sinergia entre os serviços oferecidos internamente no INCA e a disseminação de conhecimento e competência técnica para a rede pública revela como iniciativas locais bem estruturadas podem evoluir para políticas públicas impactantes. O fluxo contínuo de troca entre a prática clínica cotidiana no Instituto e as diretrizes nacionais de combate ao tabagismo propicia ajustes e melhorias constantes, culminando em um programa mais sólido e alinhado às demandas da população brasileira.

 

No entanto, novos desafios, como os dispositivos eletrônicos para fumar, as desigualdades no acesso ao tratamento e as novas estratégias da indústria do tabaco, exigem respostas inovadoras e contínuas. Ao integrar experiências internacionais e fortalecer as iniciativas nacionais, é possível avançar ainda mais na redução dos impactos do tabagismo.

 

 

CONTRIBUIÇÕES

Todos os autores contribuíram substancialmente na concepção e no planejamento do estudo; na obtenção e análise dos dados; na redação e revisão crítica; e aprovaram a versão final a ser publicada.

 

 

DECLARAÇÃO DE CONFLITOS DE INTERESSE

Nada a declarar.

 

 

DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS

Todos os conteúdos subjacentes ao texto do artigo estão contidos no manuscrito.

 

 

FONTES DE FINANCIAMENTO

Não há.

 

 

REFERÊNCIAS

1.    Rosa N, Vadico. Conversa de Botequim [música]. Rio de Janeiro: Odeon Records; 1935.

2.    Instituto de Efetividade Clínica e Sanitária, Palacios A, Pinto M, et al. A importância de aumentar os impostos do tabaco no Brasil [Internet]. Buenos Aires: Instituto de Efetividade Clínica e Sanitária; [2020]. [acesso 2025 jan 25]. Disponível em https://actbr.org.br/uploads/arquivos/IECS-2021.pdf Acesso em: 18 fev 2025.

3.    Instituto de Efetividade Clínica e Sanitária, Pinto M, Bardach A, et al. O tabagismo no Brasil: morte, doença e política de preços e impostos. Buenos Aires: Instituto de Efetividade Clínica e Sanitária; [2024]. [acesso 2025 jan 25]. Disponível em https://tabaco.iecs.org.ar/wp-content/uploads/2024/05/20TABAQUISMO-BRASIL.pdf

4.    Portes LH. Política de controle do tabaco no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2020.

5.    Cantarino C, Santiago CC. O tratamento de tabagismo para o paciente com câncer. Rede Câncer [Internet]. 2011;16:38-40. [Acesso 2024 dez 3]. Disponível em: https://ninho.inca.gov.br/jspui/bitstream/123456789/15029/1/Artigo.pdf

6.    Otero UB, Perez CA, Szklo M, et al. Ensaio clínico randomizado: efetividade da abordagem cognitivo-comportamental e uso de adesivos transdérmicos de reposição de nicotina, na cessação de fumar, em adultos residentes no Município do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saúde Pública. 22(2):439-49. doi: https://doi.org/10.1590/S0102-311X2006000200021

7.    Ministério da Saúde (BR), Gabinete da Ministra. Portaria GM/MS nº 502, de 1º de junho de 2023. Institui o Programa Nacional de Controle do Tabagismo (PNCT) no âmbito do Sistema Único de Saúde [Internet]. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2023 jun 13 [acesso 2024 dez 18]; Edição 110; Seção 1:60. Disponível em: https://ninho.inca.gov.br/jspui/bitstream/123456789/14185/1/Portaria%20n.%20502-23.pdf

8.    Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Atenção Especializada à Saúde. Portaria Conjunta nº 10 de 16 de abril de 2020. Aprova o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas do Tabagismo [Internet]. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2020 abr 24 [acesso 2024 dez 18]; Edição 78; Seção 1:214. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-conjunta-n-10-de-16-de-abril-de-2020-253756566

9.    Instituto Nacional de Câncer [Internet]. Rio de Janeiro: INCA; [sem data]. Dados e números do tratamento para cessação do tabagismo no Brasil, 2022 ago 25. [acesso 2024 dez 18, atualizado em 2025 maio 19]. Disponível em: https://www.gov.br/inca/pt-br/assuntos/gestor-e-profissional-de-saude/programa-nacional-de-controle-do-tabagismo/dados-e-numeros

 

 

 

Recebido em 10/4/2025

Aprovado em 12/6/2025

 

Editora-científica: Anke Bergmann. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1972-8777

 

 

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