ARTIGO DE OPINIÃO
Efeito do Álcool na Tomada de Decisão: Potencial Impacto na Detecção Precoce do Câncer
The Effect of Alcohol on Decision-Making: Potential Impact on Early Cancer Detection
El Efecto del Alcohol en la Toma de Decisiones: Posible Repercusión en la Detección Precoz del Cáncer
https://doi.org/10.32635/2176-9745.RBC.2025v71n3.5284
Jainne Martins-Ferreira1; Adriana Tavares de Moraes Atty2; Laura Mello Schmidt3; Anna Carolina de Almeida Portugal4
1,3,4Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Psicologia. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mails: jainne@gmail.com; lauramelloschmidt@gmail.com; portugal.aca@gmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-5318-5294; Orcid iD: https://orcid.org/0009-0001-3917-0942; Orcid iD: https://orcid.org/0000-0003-3693-9979
2Instituto Nacional de Câncer. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mail: adrianaatty@gmail.com. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0003-2271-746X
Endereço para correspondência: Adriana Tavares de Moraes Atty. Rua Marquês de Pombal 125, 7º andar – Centro. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. CEP 20230-240. E-mails: adrianaatty@gmail.com; aatty@inca.gov.br
INTRODUÇÃO
O álcool, embora cause um grande impacto na saúde pública, está entre as drogas mais populares do mundo, desempenhando uma função nas sociedades e em várias culturas1. A associação do uso do álcool à sensação de euforia e relaxamento, assim como o alívio experienciado após o uso em situações de estresse, ansiedade e depressão, o torna muito atrativo, levando à repetição do comportamento de consumo e, consequentemente, à formação de hábitos prejudiciais, que, por sua vez, geram déficits na recompensa, considerada um processo cognitivo. Esses déficits elevam os níveis de estresse dos indivíduos e comprometem a sua capacidade de tomar decisões adequadas2.
Dados da Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel)3, em 2023, indicaram que 20,8% da população brasileira com 18 anos ou mais apresentaram padrão de consumo de álcool abusivo, sendo maior em homens (27,3%) do que em mulheres (15,2%), mas com tendência de aumento no último grupo.
As consequências desse uso se agravam quanto mais novo se inicia o ato de beber, impactando nas atividades diárias e nas relações sociais do indivíduo, além de tornar o cessamento do consumo do álcool mais difícil4. Além disso, o córtex pré-frontal do adolescente ainda está em maturação e o sistema de recompensa está hiperativado. Assim, os adolescentes se tornam mais sensíveis aos efeitos de recompensa do álcool e menos afetados pelos seus aspectos negativos5.
O consumo de bebidas alcoólicas é um importante fator de risco para várias doenças crônicas, assim como para o câncer, segunda causa de óbito no Brasil. Descrito como substância carcinogênica para humanos, na décima quinta edição do relatório sobre substâncias carcinogênicas do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos6, há fortes evidências da ação do álcool no desenvolvimento dos cânceres de boca, laringe, esôfago, fígado, colorretal e mama7.
Faz-se necessário destacar que não há dose segura para o consumo de bebidas alcoólicas. Ainda que não seja possível definir um consumo considerado seguro, quanto menor o consumo, menor o risco de desenvolver doenças8.
DESENVOLVIMENTO
Para além da ação carcinogênica do álcool, o uso prolongado causa tanto déficits cognitivos quanto mudanças estruturais no cérebro9. No âmbito da neurociência cognitiva, entre os diversos déficits neuropsicológicos associados ao consumo crônico de álcool, a disfunção executiva emerge como o comprometimento mais prevalente e clinicamente significativo10,11. As funções executivas, localizadas primariamente no córtex pré-frontal, englobam um conjunto complexo de processos cognitivos de alta ordem. Tais funções são cruciais para a modulação do comportamento orientado a objetivos e para a adaptação eficaz a contextos novos ou desafiadores, que podem comprometer a adesão às ações de prevenção primária ou secundária. Segundo Bechara et al.12, o córtex pré-frontal desses usuários sofre alterações, resultando em prejuízo no processo de tomada de decisão.
Da perspectiva biológica da tomada de decisão, assume-se que esta é resultado de diferentes etapas, sendo elas: (1) a identificação das possibilidades existentes; (2) a avaliação de riscos, perdas e ganhos, assim como o intervalo de tempo esperado entre a ação e suas consequências; (3) a escolha da ação ou do comportamento; (4) a análise das consequências observadas com base nas consequências aguardadas; e (5) o aprimoramento de representações prospectivas por meio da aprendizagem com os efeitos das ações13.
A conectividade de áreas estruturais/corticais localizadas no córtex pré-frontal é fundamental para o desempenho das funções executivas14. A ampla conexão que o córtex pré-frontal tem com outras áreas corticais, bem como com regiões subcorticais, contribui para a definição de redes neuronais distintas capazes de exercer o controle comportamental. Redes neuronais implicam sinapses e neurotransmissão. O glutamato, principal neurotransmissor excitatório do sistema nervoso central, é fundamental no processamento de informações implicadas em funções cognitivas e tem sua sinalização perturbada pelo álcool15.
O uso crônico do álcool promove alterações estruturais e funcionais que perduram e acarretam distúrbios na rede de conexão estabelecidas entre o córtex pré-frontal e outras áreas corticais, bem como em regiões subcorticais. Dessa maneira, as funções executivas podem sofrer comprometimento. Pfefferbaum et al.16 demonstraram que o uso crônico do álcool em humanos leva à observação de diferentes padrões de atividade do córtex pré-frontal. Esses padrões sugerem mudanças na maneira como o cérebro processa uma tarefa executiva, mesmo que o indivíduo não apresente déficits na realização de determinadas tarefas executivas.
Um estudo realizado por Dao-Castellana et al.17 apontou a redução do metabolismo da glicose em indivíduos que faziam uso crônico de álcool nas áreas mediofrontal e dorsolateral esquerdo do córtex pré-frontal. Anteriormente, em 1993, Adams et al.18 publicaram um artigo em que a redução do metabolismo de glicose no córtex medial frontal apresentou correlação com a baixa capacidade de raciocínio abstrato e a capacidade de mudar a estratégia cognitiva diante de demandas ambientais, avaliadas por meio do Teste de Wisconsin de Classificação de Cartas (WCST).
Além disso, usuários crônicos de álcool demonstraram comprometimento nas habilidades de multitarefa, refletindo déficits na memória de trabalho. Essa disfunção cognitiva se relaciona com um padrão de tomada de decisão de alto risco, sugerindo uma ligação entre a capacidade da memória de trabalho e a propensão a escolhas arriscadas nesses indivíduos19.
Sabe-se que o uso crônico de álcool pode levar a alterações estruturais cerebrais bem como prejuízos cognitivos9. Um estudo investigou a presença da síndrome de disfunção executiva (DES) em 17 pacientes com alcoolismo crônico sem amnésia, que já estavam livres de álcool e desintoxicados há pelo menos três semanas (relato próprio). Os resultados indicaram déficits significativos em diversas áreas das funções executivas, apesar de memória e inteligência preservadas, sugerindo que a DES pode afetar uma proporção considerável de pacientes com alcoolismo crônico10.
Desse modo, pode-se pressupor que o comprometimento cognitivo causado pelo álcool interfere na adesão ao tratamento de cessação do consumo20, e questiona-se se as alterações no córtex pré-frontal de consumidores de álcool podem prejudicar a identificação dos sinais de alerta para alguns tipos de câncer e afetar a capacidade de tomada de decisão em buscar os serviços de saúde. McCaffrey et al.9 levantam o questionamento do quanto os pacientes com câncer de cabeça e pescoço realmente compreendem a dimensão da sua doença, tendo em vista que existem, em mais ou menos 16% deles, falhas nas funções executivas, relacionadas ao processo de tomada de decisão.
Em um estudo realizado por Ahmed et al.21, os pesquisadores avaliaram a relação entre o consumo de álcool e a adesão a comportamentos de autocuidado em pessoas com diabetes. Utilizando dados de 65.996 adultos, o estudo mostrou que o consumo de álcool estava inversamente associado à adesão a comportamentos recomendados, como monitoramento da glicose, uso de medicamentos e práticas de dieta e exercício. Além disso, indivíduos que interromperam o consumo de álcool apresentaram maior adesão a esses comportamentos.
Qualquer iniciativa de organizar a rede de atenção à saúde para prevenção primária que vise à interrupção do consumo do álcool precisa da adesão do usuário e pode ser comprometida, pois, como apontam Cunha e Novaes20, é necessário considerar o impacto dos déficits cognitivos na eficácia dos atendimentos e a necessidade de empregar técnicas de reabilitação cognitiva que atenuem as alterações encontradas em usuários crônicos de álcool.
Do mesmo modo, é possível que comprometimentos em decorrência do uso do álcool também afetem o intervalo de tempo entre o indivíduo perceber algum sinal ou sintoma e a decisão de buscar pelo serviço de saúde22. Em seu estudo sobre transtornos por uso de álcool, Schukit23 mostra que as mulheres com esses distúrbios, em geral, levam menos tempo do que os homens entre o começo dos seus problemas até a procura por ajuda.
Existe muita literatura científica sobre o álcool como uma substância carcinogênica e sobre o seu efeito no cérebro, mas pouco há acerca de como as alterações cognitivas advindas do consumo crônico do álcool podem interferir na prevenção do câncer, seja na adesão a ações que visem interromper o consumo da substância, prevenindo o desenvolvimentos de tumores malignos relacionados ao álcool, seja na tempestividade da procura pelo serviço de saúde diante da identificação de uma alteração que deva ser investigada. Acredita-se que seja necessário haver mais pesquisas para entender o impacto direto do álcool na cognição e na tomada de decisão do paciente com câncer, na compreensão da doença e na procura e aderência ao tratamento. Outros artigos9,24,25 também apontam essa necessidade.
CONCLUSÃO
A detecção precoce do câncer é um dos pilares centrais para o sucesso terapêutico e a redução da mortalidade associada à doença. A adesão a estratégias preventivas, como exames de rastreamento e reconhecimento de sinais e sintomas iniciais, depende fortemente da capacidade cognitiva do indivíduo de avaliar riscos, priorizar sua saúde e agir proativamente. Nesse contexto, o consumo de álcool, notadamente em níveis abusivos ou crônicos, pode representar um fator crítico de interferência na tomada de decisão voltada à saúde.
CONTRIBUIÇÕES
Todos os autores contribuíram substancialmente na concepção e no planejamento do estudo; na obtenção, análise e interpretação dos dados; na redação e revisão crítica; e aprovaram a versão final a ser publicada.
DECLARAÇÃO DE CONFLITOS DE INTERESSE
Nada a declarar.
DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS
Não foram usados dados no artigo.
FONTES DE FINANCIAMENTO
Não há.
1. Sudhinaraset M, Wigglesworth C, Takeuchi DT. Social and cultural contexts of alcohol use: influences in a social-ecological framework. Alcohol Res. 38(1):35-45.
2. Yang W, Singla R, Maheshwari O, et al. Alcohol use disorder: neurobiology and therapeutics. Biomedicines. 2022;10(5):1192.
3. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente. Vigitel Brasil 2023: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2024.
4. Chaves LCMR, Frazão IDS, Oliveira LMD, et al. Conhecimento de adolescentes sobre álcool e outras drogas e sua opinião acerca das tecnologias educacionais. Rev Enferm UFSM. 2022;12:e9.
5. Papalia DE, Martorell G. Desenvolvimento humano. 14. ed. Porto Alegre: Amgh; 2021. 768 p.
6. National Toxicology Program. 15º Report on Carcinogens. Raleigh; Durham; Chapel Hill: HHS; 2021. doi: https://doi.org/10.22427/NTP-OTHER-1003
7. Rumgay H, Murphy N, Ferrari P, et al. Alcohol and cancer: epidemiology and biological mechanisms. Nutrients. 2021;13(9):3173.
8. Pivetta M. Limite considerado como consumo moderado de álcool cai no mundo. Aumento de casos de câncer e de outras doenças associadas a poucas doses de bebida desafia a noção de beber com parcimônia. Rev Pesq FAPESP. 2023;327:12-9.
9. McCaffrey JC, Weitzner M, Kamboukas D, et al. Alcoholism, depression, and abnormal cognition in head and neck cancer: a pilot study. Otolaryngol Head Neck Surg. 2007;136(1):92-7.
10. Ihara H, Berrios G, Londres M. Group and case study of the dysexecutive syndrome in alcoholism without amnesia. J Neurol Neurosurg Psych. 2000;68(6):731-7.
11. Brion M, D’Hondt F, Pitel AL, et al. Executive functions in alcohol-dependence: a theoretically grounded and integrative exploration. Drug Alcohol Depend. 2017;177:39-47.
12. Bechara A, Dolan S, Denburg N, et al. Decision-making deficits, linked to a dysfunctional ventromedial prefrontal cortex, revealed in alcohol and stimulant abusers. Neuropsychol. 2001;39(4):376-89.
13. Kluwe-Schiavon B, Sanvicente-Vieira B. Tomada de decisão nos transtornos relacionados ao uso de substâncias. In: Diniz LFM, Kluwe-Schiavon B, Grassi-Oliveira R, editores. Julgamento e tomada de decisão. São Paulo: Pearson Clinical Brasil; 2018. p. 243-67.
14. Fonseca V. Papel das funções cognitivas, conativas e executivas na aprendizagem: uma abordagem neuropsicopedagógica. Rev Psicopedag. 2014;31(96):236-53.
15. Zaleski M, Morato GS, Silva VAD, et al. Aspectos neurofarmacológicos do uso crônico e da síndrome de abstinência do alcool. Rev Bras Psiquiatr. 2004;26(supl 1):40-2.
16. Pfefferbaum A, Rosenbloom M, Deshmukh A, et al. Sex differences in the effects of alcohol on brain structure. AJP. 2001;158(2):188-97.
17. Dao-Castellana MH, Samson Y, Legault F, et al. Frontal dysfunction in neurologically normal chronic alcoholic subjects: metabolic and neuropsychological findings. Psychol Med. 1998;28(5):1039-48.
18. Adams KM, Gilman S, Koeppe RA, et al. Neuropsychological deficits are correlated with frontal hypometabolism in positron emission tomography studies of older alcoholic patients. Alcoholism Clin & amp Exp Res. 1993;17(2):205-10.
19. Brevers D, Bechara A, Cleeremans A, et al. Impaired decision-making under risk in individuals with alcohol dependence. Alcohol Clin Exp Res. 2014;38(7):1924-31.
20. Cunha PJ, Novaes MA. Avaliação neurocognitiva no abuso e dependência do álcool: implicações para o tratamento. Rev Bras Psiquiatr. 2004;26(supl 1):23-7.
21. Ahmed AT, Karter AJ, Liu J. Alcohol consumption is inversely associated with adherence to diabetes self‐care behaviours. Diabetic Med. 2006;23(7):795-802.
22. Weller D, Vedsted P, Rubin G, et al. The Aarhus statement: improving design and reporting of studies on early cancer diagnosis. Br J Cancer. 2012;106(7):1262-7.
23. Schuckit MA. Alcohol-use disorders. Lancet. 2009;373(9662):492-501.
24. Williams AM, Lindholm J, Siddiqui F, et al. Clinical assessment of cognitive function in patients with head and neck cancer: prevalence and correlates. Otolaryngol Head Neck Surg. 2017;157(5):808-15.
25. Williams AM, Lindholm J, Cook D, et al. Association between cognitive function and quality of life in patients with head and neck cancer. Otolaryngol Head Neck Surg. 2017;143(12):1228.
Recebido em 12/5/2025
Aprovado em 13/5/2025
Editora-científica: Anke Bergmann. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1972-8777
![]()
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.