EDITORIAL

 

Inteligência Artificial nas Ações de Controle do Câncer: Solução ou Problema?

Artificial Intelligence in Cancer Control Actions: Solution or Problem?

Inteligencia Artificial en Acciones de Control del Cáncer: ¿Solución o Problema?

 

 

https://doi.org/10.32635/2176-9745.RBC.2025v71n3.5291

 

 

Alessandra de Sá Earp Siqueira1; Martins Fideles dos Santos Neto2; Camila Belo Tavares Ferreira3; Telma de Almeida Souza4

 

1,3,4Instituto Nacional de Câncer (INCA), Coordenação de Ensino (Coens). Rio de Janeiro (RJ), Brasil. E-mails: asiqueira@inca.gov.br; camila.ferreira@inca.gov.br; tsouza@incagov.br. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0003-3852-7580; Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1423-513X; Orcid iD: https://orcid.org/0000-0003-2786-1890

2INCA/Coens. Hospital de Câncer de Barretos, Grupo de Estudos e Intervenção Socioeducacional (GEISATEC). E-mail: martins.neto@ensino.inca.gov.br. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0003-2996-2222

 

Endereço para correspondência: Alessandra de Sá Earp Siqueira. Rua Marquês de Pombal, 125, 3º andar – Centro. Rio de Janeiro (RJ), Brasil. CEP 20230-240. E-mail: asiqueira@inca.gov.br

 

 

A inteligência artificial (IA) tem ganhado espaço crescente na área da saúde, com promessas de acelerar diagnósticos, personalizar tratamentos e ampliar o acesso ao cuidado nessa área. Na oncologia, ferramentas baseadas em machine learning e deep learning já demonstram capacidade de identificar padrões moleculares complexos, prever riscos de recorrência e auxiliar na escolha terapêutica. No entanto, apesar de seu potencial disruptivo, a adoção de IA nas ações de controle do câncer ainda levanta uma série de questões éticas, técnicas e regulatórias. Diante desse cenário, é necessário refletir criticamente: a IA representa uma solução ou um novo desafio para a prevenção e controle do câncer?

 

O número de artigos na literatura tem crescido bastante nos últimos três anos com promessas de uma verdadeira revolução digital.

 

A IA preditiva com a sua capacidade de promover análises preditivas tem sido objeto de grandes promessas para acelerar a descoberta de tratamentos oncológicos. Modelos baseados em deep learning, como o analisado por Aziz et al.1, ilustram bem o paradoxo atual. Embora ofereçam alto desempenho na triagem molecular, são limitados por sua baixa capacidade de generalização, uma vez que foram treinados com dados físico-químicos descontextualizados de variáveis populacionais, ambientais e institucionais. Isso compromete sua aplicabilidade clínica real, especialmente em contextos diversos dos centros onde foram originalmente desenvolvidos. A ausência de validação externa robusta, como alertado por Butt et al.2, torna os achados pouco confiáveis quando aplicados fora do escopo original, exigindo cautela antes de sua incorporação à rotina assistencial.

 

O uso da IA generativa traz algumas possibilidades de inovações. A ciência aberta, associada à análise de grande volume de dados, amplia ainda mais esse potencial. Quando a IA é utilizada para os big data, o desafio central é os dados primários imputados e a validação dos sistemas. Chen et al.3 destacam que, mesmo em países com infraestrutura avançada, a disponibilidade de dados clínicos estruturados é limitada por barreiras legais, éticas e operacionais. Além disso, muitos modelos são considerados "caixas-pretas", apontando a falta de transparência na tomada de decisão algorítmica e dificultando a interpretação de seus resultados por profissionais da saúde. Essa falta de explicabilidade pode gerar desconfiança clínica, limitar a tomada de decisão compartilhada e acentuar desigualdades já existentes no acesso ao cuidado oncológico.

 

Ferramentas como ChatGPT-4o e Watson for Oncology (WFO) mostram avanços importantes, como maior clareza na comunicação de informações médicas, mas ainda enfrentam desafios consideráveis. Em casos do uso dessa tecnologia para melhoria de sistemas baseados em linguagem natural, o desafio pode ser ainda maior. Kinikoglu e Isik4 alertam que a natureza estática das bases de conhecimento utilizadas torna essas IA suscetíveis à desatualização, oferecendo recomendações potencialmente ultrapassadas. Mais preocupante ainda, como destaca Ebner et al.5, é a possibilidade de essas ferramentas fornecerem informações fictícias ou sem respaldo científico, comprometendo a confiança na sua utilização em ambientes clínicos.

 

Um dos principais benefícios da IA está relacionado à medicina de precisão. Muito se tem investido na ciência para a implementação de uma medicina personalizada e personificada com terapias-alvo na área da oncologia. As plataformas atuais utilizadas e citadas na literatura, tais como a WFO, apesar de muito úteis e promissoras, também apresentam limitações. Kim et al.6 demonstram que o desempenho do sistema em câncer de pulmão metastático é satisfatório, mas falha em estágios iniciais da doença, por não captar nuances clínicas relevantes. Isso evidencia uma limitação estrutural da IA atual: sua dificuldade em interpretar variáveis contextuais e subjetivas que são fundamentais na oncologia de precisão, como sintomas inespecíficos, preferências dos pacientes e status funcional detalhado.

 

As limitações de adaptação regional agravam ainda mais esse quadro. Liu et al.7, ao avaliarem o WFO na China, revelaram que mais de um terço das recomendações do sistema eram incompatíveis com a prática clínica local. Entre os fatores envolvidos, estavam o uso de medicamentos não reconhecidos pelo sistema e características fisiológicas da população que inviabilizavam condutas padrão sugeridas pela IA. Paradoxalmente, países com escassez de especialistas e sobrecarga de profissionais de saúde são justamente os que mais demandam suporte tecnológico, o que exige que essas ferramentas sejam profundamente sensíveis às realidades sociais locais. É essencial atentar, ainda, para questões estruturais como a ausência de regulamentação clara e de diretrizes específicas para o uso clínico de IA em saúde, bem como sua responsabilização legal, a fim de garantir a segurança das práticas e um passo importante para a integração segura da IA na prevenção e controle do câncer.

 

Apesar dos desafios, não se pode negligenciar os benefícios já visíveis da IA na oncologia. Além da telemedicina, telerreabilitação e monitoramento remoto, as ferramentas de apoio à decisão clínica, bem como a triagem automatizada de exames e priorização de pacientes, têm demonstrado impacto positivo na eficiência dos serviços e na redução de atrasos no diagnóstico. Bongurala et al.8 demostram como as aplicações de IA, incluindo sistemas avançados de imagem, descoberta de medicamentos e suporte à decisão clínica, aumentam a precisão, a personalização e a eficiência.

 

Keshavarz et al.9, em uma revisão sistemática da literatura, relatam como a IA pode ser superior aos modelos clínicos isolados na área da radiologia e com predição da resposta ao tratamento, sobrevida global e tempo até a progressão no hepatocarcinoma.

 

As IA auxiliam oferecendo suporte à decisão, ao tratamento individualizado e à integração de resultados relatados pelo paciente e dados clínicos, o que pode otimizar e aproximar a ciência e os dados da prática clínica, melhorando os resultados dos pacientes e reduzindo custos. Tratamentos personalizados associados a monitoramento remoto vêm sendo utilizados para gerenciar as pesquisas e a prática clínica dos pacientes com maior rapidez, o que permite mudanças nas decisões terapêuticas e possivelmente a melhoria da qualidade de vida dos pacientes.

 

O caminho mais promissor está na aplicação dessa tecnologia de forma crítica, ética e cientificamente embasada. A IA veio para auxiliar os seres humanos em seu dia a dia. Para que essa tecnologia seja uma verdadeira revolução na oncologia, é preciso aumentar as possibilidade de modelos auditáveis, explicáveis, validados externamente e construídos com dados representativos de múltiplas populações e realidades clínicas.

 

Em síntese, a IA na oncologia não é, por si só, uma solução, nem um problema. É uma ferramenta poderosa, cujo valor depende da forma como é desenvolvida, validada e integrada à prática clínica. Seu uso responsável requer rigor metodológico, transparência, atualização constante e sensibilidade às complexidades humanas e institucionais envolvidas na prevenção do câncer e no cuidado oncológico. Assim, a IA pode deixar de ser um risco potencial para se tornar uma aliada real na luta contra o câncer.

 

REFERÊNCIAS

1.  Aziz M, Ejaz SA, Zargar S, et al. Deep learning and structure-based virtual screening for drug discovery against NEK7: a novel target for the treatment of cancer. Molecules. 2022;27(13):4098. doi: https://doi.org/10.3390/molecules27134098

2.  Butt SR, Soulat A, Lal PM, et al. Impact of artificial intelligence on the diagnosis, treatment and prognosis of endometrial cancer. Ann Med Surg (Lond). 2024;86(3):1531-9. doi: https://doi.org/10.1097/ms9.0000000000001733

3.  Chen M, Copley SJ, Viola P, et al. Radiomics and artificial intelligence for precision medicine in lung cancer treatment. Semin Cancer Biol. 2023;93:97-113. doi: https://doi.org/10.1016/j.semcancer.2023.05.004

4.  Kinikoglu O, Isik D. Evaluating the performance of ChatGPT-4o oncology expert in comparison to standard medical oncology knowledge: a focus on treatment-related clinical questions. Cureus. 2025;17(1):e78076. doi: https://doi.org/10.7759/cureus.78076

5.  Ebner F, Hartkopf A, Veselinovic K, et al. A comparison of ChatGPT and multidisciplinary team meeting treatment recommendations in 10 consecutive cervical cancer patients. Cureus. 2024;16(8):e67458. doi: https://doi.org/10.7759/cureus.67458

6.  Kim MS, Park HY, Kho BG, et al. Artificial intelligence and lung cancer treatment decision: agreement with recommendation of multidisciplinary tumor board. Transl Lung Cancer Res. 2020;9(3):507-14. doi: https://doi.org/10.21037/tlcr.2020.04.11

7.  Liu C, Liu X, Wu F, et al. Using artificial intelligence (watson for oncology) for treatment recommendations amongst chinese patients with lung cancer: feasibility study. J Med Internet Res. 2018;20(9):e11087. doi: https://doi.org/10.2196/11087

8.  Bongurala AR, Save D, Virmani A. Progressive role of artificial intelligence in treatment decision-making in the field of medical oncology. Front Med (Lausanne). 2025;12:1533910. doi: https://doi.org/10.3389/fmed.2025.1533910

9.  Keshavarz P, Nezami N, Yazdanpanah F, et al. Prediction of treatment response and outcome of transarterial chemoembolization in patients with hepatocellular carcinoma using artificial intelligence: a systematic review of efficacy. Eur J Radiol. 2025;184:111948. doi: https://doi.org/10.1016/j.ejrad.2025.111948

 

 

 

Recebido em 15/5/2025

Aprovado em 15/5/2025

 

Editora-científica: Anke Bergmann. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0002-1972-8777

 

 

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